Konstantin Korotkov |
Não me chamo Platão nem Aristóteles e não tenho qualquer competência filosófica ou teológica para falar sobre a existência e natureza da alma. Feita esta advertência, deixem-me falar-vos da minha alma (pois sobre a vossa seria presunção pronunciar-me).
Pessoalmente, não tenho dúvida de que o meu corpo veio ao mundo apetrechado dessa coisa que nunca a medicina legal encontrará na eventualidade de eu vir a ser autopsiado. Não sei se a minha alma continuará viva depois de eu morrer e não sei se já estava viva antes de eu nascer. As explicações religiosas sobre a alma (sejam elas cristãs, hindus ou outras) deixam-me perplexo, numa recusa de dar o mergulho no oceano da fé irracional, que é mar onde já não me apetece nadar.
No entanto, sinto que a minha alma não existe independentemente da existência de um Ente Divino (aqui o alemão dá tanto jeito, com o seu género neutro: “Göttliches Wesen”), a que por vezes chamei Deus e agora não chamo nada, preferindo que tudo o que se passa entre Ele e a minha alma aconteça sob a capa do anonimato.
Às vezes parece-me impossível que, depois da minha morte, a minha alma parta para Ele porque não imagino que Lhe sirva de alguma coisa. Ele havia de querê-la para quê? Até porque quando eu morrer ela estará tudo menos assepticamente limpa, antes de mais porque não sou daqueles que acreditam ser a alma uma coisa cuja brancura deva ser salvaguardada a todo o custo pela lixívia da castidade.
Não, a minha alma quando eu morrer não estará inexperiente de vivências sexuais ou amorosas, nem de vivências que foram sexuais e amorosas. Porque a alma – pelo menos a minha –, se serve para alguma coisa, serve essencialmente como órgão do auto-conhecimento; e nesse processo o sexo e o amor têm um papel fundamental a desempenhar. E cá para mim, sem essas vivências a minha alma evaporar-se-ia à minha morte bem “coisinha”, para não dizer mesmo parvinha.
O corpo, na verdade, é como o disco externo da alma. Estão sempre ligados e é ele que faz em grande parte o trabalho dela. Goethe escreve “infindável é o trabalho que a alma nos exige” (Ifigénia na Táurida). Mas sem o corpo, sem as coisas próprias do corpo, esse trabalho fica por fazer. Adaptando a metáfora desportiva sugerida por Platão, quando assemelha a alma a um auriga que tem de controlar dois cavalos, o corpo tem de estar em forma para cumprir esse trabalho infindável até ao fim. Por isso a incontinência alcoólica, tabágica, cafeínica, glicémica, psicofarmacológica, erótica etc. impede o corpo de estar em forma para assumir o trabalho da alma, o que é muito diferente de dizermos que, a bem da alma, não devemos beber, fumar, comer ou fazer amor. Claro que devemos beber, comer, tomar café e fazer amor.
Os padres gregos da igreja, como João Clímaco e outros, aconselhavam a martirização do corpo como forma de subir a escada que leva ao céu. Já antes Platão dissera que os prazeres são como pregos que impedem a alma de se libertar do corpo. Ora bem: libertar do corpo. Será que é isso que ela quer? Desligá-la do corpo não será desligá-la da tomada, da sua única fonte vital de energia? No fundo, não terá a alma tanto a beneficiar do corpo, como o corpo tem a beneficiar da alma?
O corpo não é o inimigo da alma. É essa a minha crença. Ambos precisam do mesmo sustento, que a ambos “liberta”: a verdade. Não falo de uma verdade teológica, filosófica ou outra. Falo apenas da limpidez autêntica da verdade, em todos os nossos actos, gestos e palavras. Assim, o inimigo da alma não é o corpo; o inimigo da alma é o contrário da verdade.
Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-04
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