UMA ESTRADA QUE LEVASSE AO MAR
1.
Talvez a temática mais insistente de Luís Miguel Nava possa transgredir a pauta de expectativas
que o "leitor normal" tem em relação ao lirismo. Talvez a construção
enredada, e extremamente meticulosa, dos seus poemas seja uma provocação para
os apreciadores de formas escultoricamente elegantes e supostamente
espontâneas. Talvez ainda a visceralidade desta escrita possa aparecer a alguns
como uma falta de tacto ou um defeito de gosto. Talvez. Mas estas mesmas razões
levam-me a pensar que nos encontramos, e sobretudo com o seu livro mais recente,
"Vulcão" (Quetzal), perante uma das experiências literárias mais originais,
perturbantes e apaixonantes da poesia portuguesa contemporânea.
Seja nos testos de configuração mais tradicional,
seja nos fragmentos
em prosa, que se aproximam por vezes da pura ficção narrativa, a marca inicial
na obra de Luís Miguel Nava pode ser designada como uma forma emaranhada de dispor das
palavras e de desenrolar o fio sintático da exposição. E isto verifica-se
não apenas pela recusa de uma ordenação sequencial
de sujeito a predicado, mas também pelo gosto de começar quase sempre por uma ponta
perdida, um complemento desgarrado, uma circunstância fortuita, para depois nos
impor um verdadeiro percurso por entre as palavras - "uma estrada que
levasse ao mar"; e o leitor só pode repetir com o autor que "tinha de
por ali haver uma estrada que levasse ao mar, que no seu halo matinal nos
envolvesse, entre neblinas e fragrâncias, dessas que, até quando o escuro se apodera
das raízes, continuam
sempre a verdejar". Significa isto que o trabalho de leitura implica um esforço
de desenredamento que corresponda à densidade do emaranhado textual. Contudo,
nada mais fácil para um leitor que goste de avançar por
dentro das palavras e do tecido que as une, e vá deixando nelas, como marcas na
floresta, incisões de cumplicidade e reconhecimento. Esta poesia é sempre um movimento
de simplificação. Quando a ele se adere, e aceitamos o rigor na sinalização
dos caminhos,
tudo se toma fácil e partilhável.
Existe ainda uma segunda marca distintiva,
que á a iniludível crueldade, entre a memória erótica e a brutalidade
cirúrgica, das formas de abordar a matéria do corpo. Embora o tema essencial seja
deliberadamente “clássico”, tanto na poesia como na filosofia, e tenha
essencialmente a ver com as relações entre a alma
e o corpo, o que em nós resiste de início
a esta forma de abordagem é o modo insistentemente imaterial como o corpo se decompõe
e o modo pesadamente físico como a alma se encosta em nós à roupa e às vísceras,
mas sobretudo o brutal curto-circuito que se opera do lugar do sujeito e da consciência:
“estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida...". Entre
o poço e o céu, entre o pus e a luz, não há lugar, bem previsto nem cativo, para
o sujeito lírico, e sobretudo não há identidade confortável que se possa
assumir. Com enorme precisão no traço, e uma sempre vincada visualidade, cada texto de
Luís Miguel Nava implica a construção em nós próprios de um corpo glorioso, isto
é, de um lugar de
encontro, sideração e amor.
2.
Leia-se O primeiro
poema: "A carne que os guindastes/ suspendem, minha,/ rente à
fosforência/ no
abismo dos dias,// a mesma onde a rasura/ do
tempo abre interstícios/ estendendo-a no mármore,// as
máquinas que os astros/ perfuram erguem-na às alturas/ do
espaço ou das colunas/ de que se nutre o tempo,// noite onde
os astros/ escondem
as raízes/ ou
ramo de glicínias/ em dedos sufocados, carne/ onde inda vibram/ do extinto
amor os ecos."
Como se pode facilmente ver, a entrada na
matéria (expressão perfeitamente adequada às circunstâncias) não é sintaticamente
evidente, uma vez que "a carne que... as máquinas erguem-na às alturas",
embora este fio de sentido se duplique no facto de as máquinas que erguem serem
aparentemente equivalentes aos "guindastes que suspendem" que
aparecem na proposição relativa. De caminho, essa carne subjetiva-se através de
um possessivo, "minha", e ganha um estatuto de fronteira "rente à fosforência"
(que se irá repetir
na vibração final proposta pela forma clássica "do extinto
amor os ecos"), mas, ao mesmo tempo, torna-se mortuariamente anónima, ao deixar
que "o tempo nela abra interstícios", "estendendo-a no
mármore". Também não podemos deixar de vacilar um pouco
na expressão "que os astros perfuram" (e que é mais facilmente compreensível
se lermos noutra ordem: "as máquinas
que perfuram os astros", o que designa
nelas uma espécie de gigantismo e violência), tendo em conta que
os mesmos astros vão também surgir na sua relação com as “raízes”, imagem que aparece
comparada a uma outra em que se inscreve a dureza muda da relação
amorosa: "ou ramo de glicínias em dedos sufocados". Note-se que um
processo de transporte poético suspende esta “carne" ao verso anterior,
isto é, aos "dedos
sufocados”, tal como um guindaste a ergue antes de entregar o corpo ao demorado
esvaziamento da sua carga afetiva (e podemos ler "carga" no sentido elétrico, como uma pilha carregável e descarregável).
Toda a experiência do leitor é deste
tipo, isto é,
corresponde a um percurso rigorosamente balizado pela surpresa das palavras, pela
guinada das viragens semânticas, pela passagem incessante do exterior e do
interior, do microcosmos ao macrocosmos, pelos ângulos sintáticos, e pelas convulsões
e espasmos da matéria verbal. Alguns poderão pensar que estamos aqui perante a superstição
formal da
textualidade, o que seria, ou será, um rastro dos anos 60, mas
é preciso sublinhar que em Luís Miguel Nava todo o poema é sempre muito mais do
que isso, é um corpo que a si mesmo se agride,
de si mesmo se desenreda, e em si mesmo
se inventa como palavra, luz, irradiação, apelo ou chama libidinal, e as
palavras acabam por ser, também elas, remetidas para o estatuto de pensos, ligaduras,
restos de um lívido imaginário hospitalar, como gazes antiaderentes que emudecem as feridas
e as iluminam por dentro. Que fica depois disto?
Uma forma extrema, e agudíssima, de
pensamento, mas de um pensamento reduzido à mais volátil e precária das marcas:
"O que comera ao meio-dia encostou-se-lhe à memória, como a única coisa a que
naquele momento ainda pudesse ir buscar alguma claridade. Vira nessa
manhã um abutre poisado sobre o lavatório. Por causa disso, esquecera-se da cafeteira
ao lume, tendo-a já depois encontrado quase vazia e o vidro da janela todo
embaciado. Será também assim o pensamento, perguntou para si própria: algo volátil,
capaz de embaciar um vidro?"
Num texto final, Luís
Miguel Nava explica os mecanismos e fitos do seu trabalho: "Não foi sem
dificuldade que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às
tuas mãos, leitor,
para aí, como um
deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o
branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo
Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que,
na enigmática expressão de Sá Carneiro, a saudade se trava." As
dificuldades também nós as sentimos. A errância dos desertos está presente
nesta leitura. Mas compensa: em cada instante, em cada página,
"entre as nossas mãos e a alma", alguma
coisa acontece. Podem chamar-lhe amor. Ou,
se preferirem, "a ininterrupta convulsão do oceano".
"Uma estrada que levasse ao mar", crónica
de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 20 de maio de 1995.
“Vulcão, de Luís
Miguel Nava – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 23-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/luis-miguel-nava-por-eduardo-prado.html
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