Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo
poeta Amichai
por Gonçalo M. Tavares
Yehuda Amichai (1924-2000), um dos
grandes poetas hebraicos. Publicou o primeiro livro em 1955, Agora e
Outros Dias, esteve ligado à universidade e foi professor de escola
preparatória. A poesia marcou todo o seu percurso. Amichai tem um livro com o
título: Agora no Ruído – Poemas. E é isso: a poesia como aquilo que
aparece subitamente no meio do ruído, uma forma de luz quando alguém parece ter
perdido a visão. Pensar por exemplo em alguém que está perdido e quando escuta
certos versos encontra o caminho como se os versos fossem uma espécie de
indicações de itinerário.
Há sempre a questão religiosa e militar
como pano de fundo, porém é a questão da família que está no centro de grande
parte da obra de Amichai:
“a porta da minha casa é
a filha menor da porta do céu”
a filha menor da porta do céu”
Nestes versos, vemos esse modo de mudar
de escala em poucos segundos e também de mostrar que a única forma de acabar
algo é começar no início e com passos pequenos. Não se começa com um único
salto diretamente para o fim. A única porta, portanto, a que tens acesso é a da
tua casa e é dela, diz Amichai, que deverás fazer uma porta grande, essencial.
Em Amichai, a relação com o pai está
sempre a infiltrar-se nos versos:
“(…) quando o meu pai morreu
tiraram-no do seu lugar e o lugar ficou vazio
como um poço no meio da estrada com a tampa de ferro
levantada”
tiraram-no do seu lugar e o lugar ficou vazio
como um poço no meio da estrada com a tampa de ferro
levantada”
Esta precisão da metáfora quando fala da
ausência: um poço, um buraco no meio da estrada: a ausência do pai. Noutro
poema, esta precisão de novo:
“toda a noite gritaram os teus sapatos
vazios
junto à tua cama”
junto à tua cama”
Uma ausência corporal que é anunciada
por objetos.
Há uma ternura certeira e comovente
quando se fala de relações familiares:
“Um velho cego põe-se de joelhos
para atar o sapato do seu neto”
para atar o sapato do seu neto”
A mãe também está presente, claro, nos
versos de Amijai:
“A minha mãe era a nave espacial da
salvação”
A salvação física, psicológica e
religiosa rapidamente colocada num campo muito terreno – é a mãe que salva e
não uma religião ou um Messias – e, ao mesmo tempo, vista, essa salvação,
como algo de extraordinário, fora das possibilidades normais: a mãe como algo
terrestre e não terrestre – uma “nave espacial” – mistura muito frequente na
poesia de Amijai.
Diga-se que esta afetividade presente na
poesia de Amichai é quase sempre muito corporal:
“apoia a tua cabeça no meu ombro
porque o meu ombro
sabe coisas”
porque o meu ombro
sabe coisas”
Um ombro sabe coisas, coisas não
intelectuais, coisas não racionais. O ombro não sabe matemática nem linguística
nem a história de um país. Um ombro sabe o que sabe a sua anatomia e a sua
fisiologia. E sabe o essencial: ficar forte ao lado de uma cabeça que está em
queda; o ombro não deixa a cabeça do outro desamparada. O ombro ali fica,
sólido, como se fosse uma matéria eternamente estável. Está ali ao lado e podes
pousar nele, no ombro, a cabeça. O ombro sabe coisas bem mais importantes do
que aquelas que se aprendem na escola: o ombro sabe estar calado e ser só um
apoio. Ombro, pois, que em determinados momentos se torna mais importante que o
cérebro ou o raciocínio.
Há também na poesia do poeta hebraico a
sensação de que o dia exterior, as notícias e a realidade dura que andam em
circulação fora de casa não são o essencial. O essencial está situado da porta
da casa para dentro.
Num poema que se chama “Amor antes de
começar o Sabat”, Amichai dá esta imagem bem simples, mas decisiva:
“Dentro do quarto, sujo a tua pele
com dedos do jornal do dia”
com dedos do jornal do dia”
Eis dois versos típicos de Amichai: há o
exterior, o mundo – e o que se ama dentro de casa. Há nesta passagem, à
primeira vista, uma evidência que parece meramente física, como todos, aliás,
já tivemos essa experiência: o material, a tinta dos jornais, suja os dedos,
eis o concreto. Mas se olharmos com mais atenção para estes dois versos veremos
que já não parece ser apenas a tinta que suja a pele do corpo amado, mas as
próprias notícias, o próprio conteúdo que a tinta escrevera no papel. Como se o
século e os seus acontecimentos perturbassem o toque amoroso, o sujassem.
Yehuda Amichai, grandíssimo poeta
hebraico, que todos devemos ler para conhecer melhor essa parte do mundo.
“Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo poeta Amichai”, Gonçalo M. Tavares, UP Magazine # 146 (rubrica “Bagagem de Mão – Cidades & Homens” da revista de bordo da TAP Air Portugal) 2019-12-01. Disponível em http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/cultura-e-sentimentos-uma-viagem-guiada-pelo-poeta-amichai/
CARREIRO, José. “Yehuda
Amichai, poeta hebraico lido por Gonçalo M. Tavares”. Portugal, Folha
de Poesia, 22-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/cidades-homens-yehuda-amichai-poeta.html
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