Amar!
Eu
quero amar, amar perdidamente!
Amar
só por amar: Aqui... além...
Mais
Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar!
Amar! E não amar ninguém!
Recordar?
Esquecer? Indiferente!...
Prender
ou desprender? É mal? É bem?
Quem
disser que se pode amar alguém
Durante
a vida inteira é porque mente!
Há
uma Primavera em cada vida:
É
preciso cantá-la assim florida,
Pois
se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E
se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que
seja a minha noite uma alvorada,
Que
me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca, Charneca
em Flor, 1931
***
“Amar”, de Florbela Espanca | Paráfrase do soneto, por José Junior
No primeiro
quarteto, uma voz poética manifesta o desejo de amar, e quer fazê-lo
plenamente, não importando compromissos, o lugar, os parceiros, deixando clara
sua opção pelo amor livre, o que inclui deixar de amar segundo sua vontade.
No segundo
quarteto, essa mesma voz recusa as hipóteses de apego à pessoa amada e nega a
possibilidade de amor para a vida inteira.
No primeiro
terceto, apresenta-se a efemeridade da vida, com sua única primavera, sendo
necessário cantar essa estação com a voz dada por Deus para esse fim.
No segundo terceto,
a voz poética reconhece que um dia chegará a morte, mas que esta, análoga à
noite, deve fundir-se ao dia na alvorada. Assim, perdendo-se de tanto amor,
haverá sentido para a efêmera existência.
“Amar”, de Florbela Espanca | Análise do soneto, por José Junior
Reduzida a
complexidade da manifestação do texto, a paráfrase feita já permite uma
apreensão mais clara do recorte discursivo, confirmado pelo desenho da
estrofação. Evidência disso é a distribuição do tema do amor (livre) nos
quartetos e o da efemeridade da vida nos tercetos.
Duas isotopias
temático-figurativas, repare-se, coincidem com o molde da estrofação, sendo uma
social e outra existencial. A social figurativiza o comportamento que
identifico como o amor livre, prática evidentemente transgressiva, oposta, por
exemplo, às coerções do contrato matrimonial. Já a existencial figurativiza-se
sobretudo num plano cognitivo, ou seja, na consciência da efemeridade da vida,
saber necessário para justificar a pragmática erótica, para não dizer heróica
(feminina).
O primeiro desses
temas, que toca o contrato social, apoia-se numa estrutura actancial, cujo
programa narrativo revela um sujeito de estado em conjunção com o objeto-valor,
figurativizado no paradigma do amor livre. Já o segundo, de natureza existencial,
ganha sentido como representação de uma estrutura actancial em que o sujeito de
estado, encontrando-se em conjunção com o objeto-valor vida, é cognitivamente
manipulado para assumir o programa disjuntivo da morte.
Abstraindo-se a
superfície da manifestação (o poema considerado como texto), os temas e figuras
de seu nível discursivo (simulacro da enunciação) e a estruturação actancial do
nível narrativo, é possível chegar ao nível mais profundo de abstração.
Trata-se das categorias vida/morte, para a representação do âmbito individual,
e natureza/cultura, para a tradução das convenções sociais.
Considerando-se a
categoria natureza/cultura, o esquema positivo /não-cultura implica natureza/
confere um valor eufórico para as representações da liberdade de escolha,
abonada textualmente por "amar perdidamente", expressão intensificada
pelo advérbio, ao qual se somam dêiticos adverbiais, como "aqui...
além...", e pronominais, como "Este e Aquele, ou Outro", uns e
outros semanticamente ligados ao aspecto frequentativo. Por sua vez, o esquema
negativo /não-natureza implica cultura/ é disfórico para o termo /cultura/, no
que ganham sentido manifestações argumentativas, como as provocações
dubitativas em "Recordar? Esquecer? Indiferente!... / Prender ou desprender?
É mal? É bem?" ou a simulação de desmascaramento em "Quem disser que
se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!",
concentrados no segundo quarteto, antitético, como se vê, em relação ao
primeiro.
O esquema positivo
/não-morte implica vida/ confere sentido às reiterações de "amar",
desde o próprio título, e a lexicalizações como "Primavera" ou
"florida". Já o esquema negativo /não-vida implica morte/ confere
sentido a lexicalizações como "pó, cinza e nada" ou
"noite", no terceto final.
O primeiro verso
sugere o querer: "Eu quero amar, amar perdidamente!" Como modalidade
endotática virtualizante, o querer "é a denominação de um dos predicados
do enunciado modal que rege quer um enunciado de fazer, quer um enunciado de
estado" (GREIMAS; COURTÉS, p. 406). Em outras palavras, opera-se a
atualização das categorias vida/morte e natureza/cultura na dinâmica actancial,
sabendo-se que os termos positivados no nível profundo passam a orientar os
papéis narrativos.
Como modalização,
o querer pressupõe uma manipulação e esta, por seu turno, a função de um
destinador. No poema, o destinador e o manipulador estão implícitos, mas
justamente essa implicitude os sugere como simulacro do sujeito da enunciação
no que se poderia textualizar como uma "voz da consciência" do
próprio destinatário-sujeito. Por outro lado, o percurso narrativo não se
completa, visto que não está em questão propriamente o fazer (dimensão
pragmática). Os dados textuais concentram-se na modalidade do querer sobre o
enunciado de estado, o que sugere a conjunção do sujeito com o objeto-valor,
reiteradamente representado pelo "amar", no plano da manifestação.
Esboça-se, em
contrapartida, um antissujeito que negaria o termo /vida/, afirmando seu
contrário /morte/, e que negaria o termo /natureza/, afirmando as coerções
próprias da cultura. Sugere-se, assim, pelo menos como virtualidade, um
conteúdo polêmico no fragmento narrativo estabelecido nos limites impostos pelo
texto.
A condensação da
estrutura narrativa em torno do predicado modal – o querer – explica-se pela
dimensão cognitiva de sua construção, caracterizada pela "atrofia do 'o
que acontece' do componente pragmático" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 66). É
o que se pode comprovar na apreciação do nível discursivo da geração dos
sentidos. Nesse nível, constrói-se toda uma estratégia persuasiva, quando o ser
se superpõe funcionalmente ao fazer.
Visto como
discurso, o poema representa um fazer persuasivo de um sujeito cognitivo. Para
tanto, a voz discursiva recorre, em termos de semântica discursiva, ao tema do
amor, que atualiza o termo profundo /vida/, e ao tema da liberdade afetiva, que
atualiza o termo profundo /natureza/. O poema simula a enunciação na forma de
uma debreagem enunciativa, o que se comprova no nível da manifestação pelo
emprego da primeira pessoa, desde o primeiro verso, iniciado por "Eu quero
amar".
Como o
enunciatário não é totalmente explicitado, o discurso ganha a aparência de
monólogo interior. No entanto, marcas textuais dubitativas como "Recordar?
Esquecer? Indiferente! ... / Prender ou desprender? É mal? É bem?" trazem
para o diálogo vozes polêmicas. Se são polêmicas, sugerem a virtualidade de um
antissujeito, cujo papel visa negar os termos /natureza/ e /vida/, atualizados
pelo querer, no plano narrativo, para afirmar os termos /cultura/ e /morte/.
O soneto revela
uma tendência temática nos quartetos e figurativa nos tercetos. O discurso
desenvolve-se, assim, do mais abstrato (tese e antítese) para o mais concreto
(demonstração e conclusão).
No quarteto
inicial, é proposta a tese, quando é explicitado o querer-fazer e afirmado um
estado conjuntivo com o objeto-valor representado pelo amor. Nesse quarteto, no
tocante ao tema do amor e sua figurativização, manifestada pelo infinitivo
"amar", é notória a multiplicidade de situações virtualizadas pelo
sujeito da enunciação, segundo o esquema |sujeito: eu| |fazer virtualizado
transitivo: amar| |objeto: Este / Aquele / Outro / toda a gente/ ninguém|
|circunstância: perdidamente / só por amar / aqui / além|.
Note-se a
tematização do gênero em |Este / Aquele / Outro|, o que sugere um sujeito
feminino único |eu| ante o objeto masculino múltiplo, paradigmaticamente
disposto em tripla amostragem pronominal, sendo a primeira indicativa de
proximidade (Este), a segunda de distância (Aquele) e a terceira de alternância
(Outro). O emprego dessas formas pronominais, que aliás aparecem no texto com
iniciais maiúsculas, no lugar de antropônimos ratifica a predominância do plano
temático sobre o figurativo, acentuando o caráter paradigmático da marcação
desses atores associados à masculinidade. Note-se, ainda, que a dimensão
pragmática funciona não como modalidades realizantes, mas como "pretexto
para atividades cognitivas" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 65), já que vigora
o valor modal do querer.
No segundo
quarteto, contrapõe-se a antítese, na forma de interrogações, sendo a
contra-argumentação disjuntiva ("Recordar? Esquecer?" / "Prender
ou desprender? ") e polêmica ("É mal? É bem?" / "Quem
disser") prontamente refutada pelo sujeito cognitivo, seja pelo desdém de
um "Indiferente!", seja pelo desmascaramento de "é porque
mente!". Nesse quarteto, em que aparece a contra-argumentação, as
reiterações disfóricas mostram-se antípodas da isotopia temática proposta como
tese. Na perspectiva do antissujeito, os contrapontos do conjunto virtualizado
do fazer pressupõem uma disjunção do objeto-valor representado pelo amor, o que
se confirma em /Recordar / Esquecer / Prender ou desprender/.
Ainda no segundo
quarteto, esboça-se uma experiência veridictória, manifestada pelas
interrogativas "É bem? É mal?". O sujeito cognitivo põe em dúvida a
competência do antissujeito (ou interlocutor implícito), ou seja, desautoriza
seu fazer cognitivo. A desautorização da competência do oponente configura-se
como um desmascaramento, visto que a negação do ser e a afirmação do parecer
revelam a mentira, fato confirmado no nível da manifestação: "Quem disser
que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!" Ora,
como a revelação da mentira denuncia a hipocrisia de uma vida de aparências,
sob a figurativização de um "até que a morte os separe", não resta
dúvida de que o sujeito que simula a enunciação assume-se como transgressor.
Se nos quartetos
predomina a multiplicidade de representações paradigmáticas virtualizantes da
conjunção com o objeto-valor transgressivo do amor livre, segundo a categoria
natureza/cultura, nos tercetos tem lugar a intensidade com que se representa a
conjunção erótica do sujeito com o objeto-valor vida. Para fazer-crer seu
projeto transgressor, sabendo-se que se trata de "obra do enunciador
encarregado do fazer persuasivo" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 107), o sujeito
instalado pelo enunciador propõe uma demonstração mais palpável em favor de sua
tese do amor livre.
É o que se
desenvolve no primeiro terceto, com a figurativização da primavera, cuja
isotopia reforça a tese do amor livre e natural. Para além da sazonalidade,
"Primavera" figurativiza o tema da efemeridade existencial, visto que
"Há [só] uma Primavera em cada vida", devendo ser desfrutada
"assim [=enquanto está] florida". O louvor de seu desfrute passional,
em "É preciso cantá-la", conecta outra isotopia, ou seja, o tema do
dom, figurativizado na imagem de Deus, de modo a sacralizar essa etapa
argumentativa. Como correm paralelos e euforizados os termos /vida/ e
/natureza/, não há como não identificar, sob a figurativização de uma vida
intensamente vivida, a recuperação do tema do amor livre, já extensa e
reiteradamente virtualizado nos quartetos, mas agora condensado no paradigma
metafórico da primavera.
O terceto final é
prospectivo, com sugere a entrada "E se um dia", sendo organizado
pelo tema disjuntivo da morte, figurativizado na gradação bíblica "pó,
cinza e nada" (Gênesis 3:19), que enriquece a isotopia figurativa do
sagrado, manifestada pelas ocorrências anteriores de "cantar
[louvar]", "Deus" e "deu" [o dom]. Outra figurativização
da morte vem no cronônimo alegorizante de "a minha noite".
Ressalte-se que o estado vindouro vem lexicalizado por formas do verbo ser, ou
seja, "hei-de ser" (certeza), e "seja" (probabilidade),
manifestações de ordem epistêmica, características da dimensão cognitiva do discurso,
particularmente na axiologia do fazer persuasivo/interpretativo.
Seguindo a tradição do soneto, constituindo, pois, marca da
competência enunciativa, impõe-se o recurso estilístico terminativo da chave ou
fecho de ouro, ou seja, o oferecimento de uma solução surpreendente como
arremate do discurso. Neste caso, ao recurso da gradação, no verso inicial da
estrofe, acrescentam-se dois paradoxos, manifestados pelos pares
"noite"/"madrugada" e
"perder"/"encontrar". Trata-se de variação figurativa para
o mesmo tema, que se poderia textualizar como uma vida vivida em plenitude
erótica, vale relembrar, de conotação transgressiva. No primeiro caso, é
paradoxal a superposição da noite (/morte/) ao dia (/vida/). Em outras
palavras, faz-se uma operação de aspectualização temporal, de modo a negar o
caráter terminativo da |noite/morte|, emprestando-lhe semas contextuais
durativos com a evocação da "madrugada". A aurora seria a um tempo
noite e dia, ou seja, termo complexo e figurativização da dicotomia vida/morte.
No segundo caso, inscrita no último verso do soneto, a ocorrência de
"perder-se" recupera a lexia de "amar perdidamente", que
aparece no primeiro verso, valendo ressaltar seu viés transgressivo, no que
pode provocar a sanção moral sobre o ser e o fazer livres. Enfim, superpõe-se
paradoxalmente a intensidade erótica da conjunção com a vida por sobre a
conjunção com a morte. Erotizada a morte, esta se ressignifica como
objeto-valor do querer-fazer do sujeito, cuja competência de livre disposição
sobre o amor já foi suficientemente argumentada no âmbito discursivo.
Ler mais: Discussão, com a avaliação do problema
levantado sobre a relação entre a forma conservadora e o conteúdo transgressivo
do soneto. Disponível em:
“Transgressão e segredo num poema de Florbela Espanca”, José
Leite Oliveira Junior. CASA - Cadernos de Semiótica Aplicada Vol.
11.n.1, julho de 2013.
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/
CARREIRO, José. “Eu quero amar, amar perdidamente!, Florbela Espanca”. Portugal, Folha de Poesia, 23-03-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/03/eu-quero-amar-amar-perdidamente.html
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