sexta-feira, 6 de março de 2020

O Anjo Camponês, Rui Nunes


«O anjo é sem enquanto, não o teve, não o tem, nem o terá. Sabe desde sempre o que chamavam ao filho de Hilde, chamavam-lhe tortulho, chamavam-lhe maricas, não tinha nome, e continua sem ele, morto, restituir-lhe-ão aquele que o baptismo lhe deu: na cripta de Rosenheim, a omissão ficará reduzida a um traço entre duas datas. Envelheceu, o anjo.» Rui Nunes, O Anjo Camponês







A coragem do deserto: o corpo todo para ler Rui Nunes

De há uns anos para cá, cada livro de Rui Nunes acontece como último, com insinuações testamentárias. Como uma dessorada despedida da escrita face a si mesma.
Por: Diogo Martins, Jornal i, 06/03/2020, 13:14


Poderia dizer-se, logo a rasgar, que O Anjo Camponês não acrescenta nada de novo à bibliografia do seu autor, Rui Nunes. Isto é: reconhecemos neste seu último livro as mesmas obsessões, idênticos motivos, segregações de imagens que se foram tornando reconhecíveis na sua escrita, definidoras de um estilo, de uma procura, de uma visão. Coisas assim: o lixo que se acumula, os resíduos que repelem qualquer alibi – seja ele metafísico, literário, discursivo –, o mal disseminado até no mais ínfimo pormenor, o nosso destino comum – sermos perseguidos pelo “tempo-lobo” ou pelo “tempo-lodo”, até nos tornarmos num “corpo sem enigma” –, o flagelo da guerra, o trauma de existir – e de escrever – após Auschwitz, após tudo. Após, inclusive, o fim do mundo.
Porque é sempre no fim do mundo que estamos: de bicos de pés na fina navalha desta ficção primordial a que nos habituamos a habitar segundo a segundo, notícia a notícia, tragédia a tragédia. E é sempre, por isso, que, de há uns anos para cá, cada livro de Rui Nunes acontece como último, com insinuações testamentárias. Como uma dessorada despedida da escrita face a si mesma, face à estranha e obscura força que a move, que a incita, ainda assim, a desvelar-se, a emergir do fundo branco do papel, inventando o seu próprio lugar: aquele onde o autor cria a possibilidade de se suspender o tempo, o horror, os truques ao desbarato com que hoje se fazem romances e afins.
Um outro escritor que, à semelhança de Rui Nunes, tem com a literatura um salutar desdém é Thomas Bernhard, para quem o começo de um texto era sempre algo de muito penoso e difícil. Ao contrário do “imbecil”: esse, diz o austríaco, “fabrica filhos ou livros, faz um filho, um livro no qual multiplica, ininterruptamente, filhos e livros. É-lhe indiferente: de todos os modos, não pensa. O imbecil não conhece dificuldades, levanta-se, barbeia-se, sai à rua, deixa-se atropelar, é-lhe indiferente” (in Trevas, ed. Hiena, trad. Ernesto Sampaio). Esta inanidade, conscienciosamente extensível à azáfama literária, só surpreenderá quem apanhar O Anjo Camponês sem ter contactado antes com outros livros do autor. Daí que, a páginas tantas, entre parênteses rectos, como se do corpo da página se escalavrasse uma súbita chaga feroz (e note-se que a vanitas maneirista é um motivo recorrente no livro: “a cabeça de vaca ou o torso de Miguel Dominguín, tanto faz”), surja um intervalo onde se lê: “as belas-letras. Aplica-te. Esforça-te. Até tornares a dor, a morte, o mundo, uma ficção. Dá a cada palavra uma história completa para poderes esquecer. / As belas-letras arquivam. Tão bem!”.

“Sou eu”
Não é das passagens mais violentas do autor no que à promoção do literário diz respeito. Mas é, de resto, num tom menor, a perseverança de Rui Nunes em manter-se fiel a mais ninguém a não ser a si mesmo, à fúria que lhe move a mão sobre o papel, sem qualquer deslumbramento, mas sempre nesta oclusa obstinação em existir, resistir: “O que escrevo é meu. Abaixo o alibi. Meu, meu, é quanto. Não é uma luz, nem um deus qualquer, com um nome qualquer, nem a inspiração, nem a expiração. Sou eu. O dono do meu desprotegimento. O dono do meu medo. Sou eu. A minha cobardia. Sou eu e um deus que me rejeita. Eu e um deus que rejeito. Sou eu e o futuro da minha morte.”
A passagem estende-se por mais algumas linhas, depois por outras condensações verbais, noutros fragmentos, disseminando-se um pouco por todo o livro. A voz deste “Sou eu” expulsa qualquer retrato estável, nem se deixa anquilosar no comodismo de uma certeza. Reconhece-se na afirmação do seu contínuo estranhamento, na explosão multímoda de agenciamentos: esse eu é igualmente o pedaço de carne na montra de um talho; é o velho na rua que repugna os transeuntes; é o insólito teatro cujas marionetas são anjos galhofeiros, entretidos com o absurdo da condição humana (à epígrafe do livro – um poema de Carlos de Oliveira no qual “o anjo camponês” compõe integralmente um verso –, Rui Nunes encarregar-se-á de proceder às mais bizarras perversões criativas). O eu devém igualmente a dispersão quase abjeccionista a que se presta uma extensa passagem perto do fim, num arrazoado delirante de imagens pautado pela reiteração “Que grande pedrada” – que é, tão-só, o modo de o autor se estar nas tintas para tudo o que seja escrever bem, o modo de fazer soar nas malhas do texto uma gargalhada diabolicamente livre.

Expulsos de qualquer regresso
Este “Sou eu” contagia-se também pela evocação de uma personagem mítica que já antes havia surgido, primeiro, em Suíte e Fúria (2018) e, depois, num poema intitulado “Reminiscências”, publicado na edição n.º 23 da revista Telhados de Vidro (ed. Averno): a figura de Ulisses. Mas de mítico, na verdade, só preserva o halo do seu nome. Ulisses, aqui, é aquele que nunca regressa a Ítaca, à sua amada Penélope e ao seu filho Telémaco: “não tinha partido, […] a viagem fora um contínuo regresso. Um sonho. Como são todos os regressos”. À sua volta, apenas uma praia deserta, com lixo a dar à costa e gaivotas esgravatando os detritos.
Ora, o que não regressa evidencia-se, logo nas primeiras páginas, sob a forma de uma “sobrevivência”, para empregarmos um termo caro a Aby Warburg, ou de uma “imagem dialéctica”, segundo Walter Benjamin: a marca de violência que, no presente, mantém viva a fome insaciável do passado. Daí que esse “Sou eu” assuma igualmente o corpo de um tal de Odisseus (equivalente grego de Ulisses), motorista de um camião que “atravessa a europa” (assim, em minúscula) e que, “no interior de uma câmara frigorífica”, transporta um dos muitos signos da infâmia com que hoje se lê o tempo presente: “corpos uns contra os outros, dobrados uns sobre os outros, abraçados uns aos outros: não mais do que um corpo único. Quando os tirarem do grande contentor, não será corpo a corpo, mas bocado a bocado, como quem parte uma árvore […] transformar-se-ão em notícia, lida no minuto seguinte de um ecrã, entre o café e o cigarro.”
O “sou eu” resvala, desorganiza-se, denota o pormenor monstruoso que, sob a agressão de uma lupa, faz desabar qualquer forma edificante, seja ela a verdade (da) metafísica, seja ela a ideia mais pueril de beleza: “E as grandes coesões desmoronam-se: / estamos sós. / Na intimidade de uma ruína.” Eis a derradeira urgência desse “sou eu”, o móbil da intensidade desta escrita (e que constitui a sua coragem): mostrar os estados extremos a que se chega por via dessa intimidade com o resta, exigindo da literatura nada menos que o impossível. Isto: o modo como “vemos sem uma frase”. Quando voz e silêncio, palavra e imagem, trabalham no sentido de tornar o desamparo – o que vem a ser isto? como é que eu leio isto? – tão íntimo quanto a nossa respiração. Tão íntimo e, porventura, tão necessário “para ultrapassar o esquecimento, para que, pelo menos, uma interrogação sobreviva, uma impaciência” – esse não-sei-quê em alguém que o incita a duvidar, a fincar o pé, a atirar uma pedra contra uns quantos poderosos canalhas que, como o Joker de Heath Ledger, só desejam ver o mundo arder.

Da letra ao gesto
No mesmo texto de Thomas Bernhard previamente citado, o autor de Trevas alude à “obscuridade total” dos seus livros como um modo de contrariar a “iluminação normal” da “prosa ordinária”. “Na escuridão”, explica, “tudo se torna claro. Não só as aparições, […] também a linguagem. Há que imaginar páginas totalmente negras: a palavra fica mais clara.” Por fim, este quase protocolo de leitura: “Quando se abre um dos meus livros, acontece o seguinte: é preciso imaginar que se está no teatro, ao virar da primeira página sobe um pano, aparece o título, escuridão completa, e desse fundo, dessa escuridão, surgem as palavras”.
Páginas absolutamente negras parecem-se, às avessas, com os vazios totalmente brancos das páginas de Rui Nunes. O negrume impede-nos de ver, tal como o excesso de luz nos encadeia. Mas aquém de quaisquer histerismos nas aproximações entre os dois autores, afiando logo as facas para dissecar um e outro em busca de genealogias literárias, o curioso aqui é o modo como o iminentemente verbal no texto joga com outros códigos, mais familiares, por exemplo, ao domínio da performance: qualquer coisa na escrita do autor que incita o corpo a mover-se, a aprofundar a angústia (e não a resolvê-la) na experimentação com outras linguagens que exacerbem isso de “ve[r]mos sem uma frase”. Qualquer coisa, ademais, que age à maneira das didascálias num texto de teatro – aqui, por exemplo, incitando o presumível actor a devir um Ulisses sem Ítaca, nómada de si mesmo: “Aprende a não chegar. / A não encontrar. / E recomeça titubeante. / Pouco a pouco iluminarás / uma incerteza com uma incerteza. // Quando chegares ao incerto, reconhecerás a tua arma”.
Numa escrita que se confunde com as suas intenções corrosivas, é comum o corpo aparecer num esplendor monstruoso: não como uma integridade minimamente coesa, mas naquilo que o restitui à decadência. O cuspo, o sangue, a tosse. A mão assim, a pele assado, num escândalo urdido de gestos, movimentos intempestivos, súbitas irrupções de caos. Como se de uma identidade subjectiva não restasse mais do que cartografia errática de gestos, libertando o corpo dos seus constrangimentos mais óbvios (a inevitabilidade de ser classificável, redutível a um nome ou a um número) e, pelo caminho, reclamasse o seu direito (o seu desejo) a permanecer secreto e absoluto, esquivo a toda a ordem de subjugações: “Sabia hoje que a maior proximidade que se consegue de alguém é descobrir nele um segredo, […] e esse conhecimento bastava-lhe para não se sentir só, para reduzir qualquer gesto ao esboço de um começo.” Sem Deus, nem o alibi da esperança, há que abrir o sujeito à condição de ser apenas “gestos sem continuidade”.

Rui Nunes segundo a Terceira Pessoa: “Terei eu a coragem do deserto?”
É com todos estes elementos que uma associação de artes performativas de Castelo Branco, a Terceira Pessoa, se predispôs a pensar os livros de Rui Nunes num projecto de criação artística intitulado Rastro, Margem, Clarão. Reunindo um colectivo de 6 actores, 3 ensaístas e 3 fotógrafos, com o objectivo de apresentar em vários teatros e espaços nacionais, de norte a sul, três performances e a edição de um livro de fotografia e ensaio, a Terceira Pessoa conseguiu com este projecto tornar-se na primeira estrutura albicastrense a receber um apoio financiado pela DGArtes (Direcção Geral das Artes) para o biénio 2020/2021, na área dos cruzamentos interdisciplinares.
O primeiro encontro da equipa deu-se a 11 de Janeiro deste ano, na Fábrica da Criatividade, em Castelo Branco, com uma conversa-performance aberta ao público: um dispositivo composto por múltiplos fragmentos provenientes de todos os livros de Rui Nunes e um círculo de cadeiras, onde actores e espectadores (muitos dos quais nunca tinham à data ouvido falar do autor) fizeram da leitura um exercício conjunto de experimentação.
Já a primeira das três performances previstas tem estreia marcada para os dias 12, 13 e 14 de Março, na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, e será levada a cabo por Ana Gil e Nuno Leão, directores artísticos da Terceira Pessoa. Segundo Nuno Leão, um dos desafios na criação deste trabalho consistiu em não desvirtuar a opacidade da escrita do autor, mas em procurar torná-la uma “espécie de lugar”, “como um deserto que nos propusemos a atravessar”. Ana Gil completa: “É uma escrita que nos abre um espaço enorme para que possamos habitá-la; não é uma habitação pacífica nem passiva, mas antes algo que nos exige o corpo todo.”
A consciência de que a leitura de Rui Nunes nunca se fez senão em silêncio e interiormente – o que, na verdade, mais do que um lugar-comum, constitui uma das obsessões constituintes desta escrita –, cedo se impôs para os dois actores como uma interrogação decisiva no desenvolvimento desta performance: “Como ler estas palavras para os outros? Como é possível que uma escrita que acontece no silêncio, nessa linguagem secreta que surge entre o leitor e a escrita, seja ‘dita’ por alguém e ‘escutada’ por outros? Durante algum tempo no processo de criação, e até na conversa-performance que iniciou este projeto em Castelo Branco, arriscámos essa leitura em voz alta. Isso fez-nos questionar verdadeiramente o impacto da nossa acção e das nossas decisões. Mas sentimos que algo se perdia nesse acto: talvez esse silêncio, essa interioridade de que falámos. Por isso, decidimos trazer o silêncio e a interioridade para o nosso estar em performance, para que a nossa presença continuasse a ser um lugar da escuta e do olhar interior sobre as coisas: os corpos, a respiração, o som, o espaço, o tempo, os outros”.
No curso destas explorações, descreve Ana Gil, uma entrevista de Rui Nunes disponível no YouTube revelou-se fulminante: “é que o autor, talvez pelo facto de já ver com dificuldade, por força de uma progressiva perda de visão, ao dizer as palavras em voz alta parece ao mesmo tempo perguntá-las. E essa relação de alguém que lê palavras para as questionar teve um eco impactante em nós e, por isso, quisemos arrastar esse conceito para a própria performance. O fundamental é que a nossa relação com a escrita de Rui Nunes continue, de alguma forma, a ser a do espanto”.





Rui Nunes. Viagem ao fim de deus

Em O Anjo Camponês, Rui Nunes leva-nos de volta a uma paisagem que só a sua escrita conhece, um território de onde Deus se ausentou e que vai construindo bocado a bocado.

Por: João Oliveira Duarte, Jornal i, 26/02/2020, 13:14


Frases cortadas a meio, como se fosse impossível continuar a escrita, páginas quase em branco, à excepção de uma frase a negrito, sinais de pontuação isolados entre dois blocos diferentes, restos, despojos, lugares de uma violência que é tanto da linguagem como da outra, muda, dos corpos. Esta é, de facto, uma paisagem já conhecida dos livros de Rui Nunes, paisagem cheia de despojos de uma guerra contra qualquer forma de pertença, contra qualquer língua ou qualquer pátria, que retorna obsessivamente a certos lugares e a certas imagens - para se medir face a eles, para os interrogar de novo, para notar a sua repetição banal, para registar a sua vulgaridade; e nada há de mais vulgar que estes corpos, estas vidas que se desconhecem a si mesmas e essas mortes. Poderíamos chamar de “estilo” a essa paisagem que vamos reconhecendo, mesmo que ela não deixe de apontar para um limiar indefinível, para um território que apenas esta escrita conhece, se esta palavra não designasse hoje um conjunto de truques retóricos que mais não são que excrescências da escrita - e, neste sentido, quanto mais estilo pior a escrita.
Em Rui Nunes, pelo contrário, encontramos aquela sobriedade que apenas a recusa sem cedências da narrativa permite - numa fúria que é aplicada a qualquer coisa que lembre ainda essa arte do romance, que está sempre demasiado entretida na sua própria celebração. É por isso que encontramos, em O Anjo Camponês, não apenas este conjunto de imagens que estão sempre a retornar, mostrando uma violência banal, pouco permeável a qualquer forma de construção romanesca, como, inclusive, certos vocábulos que mapeiam a já longa obra de Rui Nunes: “nitidez”, “pormenor”, “geometria”, “minúcia”, “transparência”; todos eles desenham, de facto, esse “tempo sem refúgio”, esses corpos abandonados a uma violência sem nome, que são sempre estrangeiros a si próprios, construídos no lugar deixado vazio por uma linguagem reduzida ao insulto e ao grito, à vozearia que Karl Kraus identifica como uma das diversas barbáries que cruza o nosso tempo e o nosso espaço.
“Atravessam a europa no interior de uma câmara frigorífica: corpos uns contra os outros, dobrados uns sobre os outros, abraçados uns aos outros: não mais do que um corpo único. Quando os tirarem do grande contentor, não será corpo a corpo, mas bocado a bocado, como quem parte uma árvore, decepa uma rês, ou arranca pedras de uma pedreira. Sob um céu encoberto, cada bocado não produzirá uma sombra: todos é o nome final que lhes restará. A partir daí, transformar-se-ão em notícia, lida no minuto seguinte de um ecrã, entre o café e o cigarro”
Não é difícil perceber que esta imagem - que este registo preciso, minucioso - arrasta atrás de si pedaços de memória, outros corpos também sem nome, outros lugares e tempos que teimam em não desaparecer; que ela convoca um lado arcaico que se está constantemente a repetir, como se fosse sempre a mesma violência, sempre os mesmos gestos, sempre os mesmos amontoados, num inferno banal de onde não se sai - mas, ao mesmo tempo, uma produção industrial de morte.
Bocado a bocado: é assim que a escrita de Rui Nunes vai construindo este deserto de onde Deus se ausentou e que mais não é que o apogeu da sua falta - e estes corpos todos que o povoam não levam nem a “Deus nem aos homens”, apenas a palavras que transformam “o corpo numa abreviatura” onde “ficas só com esse resíduo e não sabes o que fazer com ele”. Bocados de prosa, bocados de frases (“o anónimo precisa de poucas palavras”, como afirma), pedaços de corpos, “vida de frases curtas e insignificantes”, bocados de uma narrativa que vai surgindo aqui e ali: um padre que perdeu a crença e que a dada altura enlouquece.
“Aproximo o nariz dessa cabeça de vaca, ali, nos mosaicos, tem a rigidez nos olhos fechados, o endurecimento da carne entreabriu-lhe os beiços e mostra-lhe os dentes. Não é uma vaca, é a morte, no seu modo único de cada animal morto.
Ou de cada homem. 
É a morte sem um sobrevoo que a ilumine:
um Deus que não existe mostra uma inexistência: 
o velho que ninguém velará,
a criança que atravessou um continente para chegar ao seu passado. Ao teu. Ao nosso. E encontrou-o vazio.”
Não é a primeira vez que a escrita de Rui Nunes se situa neste mundo feito de detritos onde brilha apenas a falta de Deus - e só essa falta é interessante, só ela revela, de forma radical, estes corpos sem redenção, esta violência sem fim para o qual não há palavras. No entanto, a referência a Eckhart, teólogo alemão e um dos nomes maiores de uma tradição que ficou conhecida como “teologia negativa” - que consiste num dispositivo de negação de atributos a Deus -, acompanhada de citação escondida de Angelus Silesius (“o olho no qual vejo Deus é o mesmo olho no qual Deus me vê”) vem complicar a descrença desse padre que repete uma conhecida frase dos antifascistas espanhóis (“Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco”, uma referência ao atentado à bomba que matou o político próximo de Franco). Porque tal como Bacon é um pintor religioso apenas no talho, onde há essa indiscernibilidade entre homem e animal, onde a morte não tem esse “sobrevoo que a ilumine”, também a escrita de Rui Nunes é religiosa apenas perante esses corpos sem redenção, esse amontoado de carne que cria uma identidade profunda entre homem e animal - e, como referia o filósofo Gilles Deleuze, somos responsáveis “não pelos vitelos que morrem, mas sim perante eles”.
Esta viagem ao fim de Deus, “eis a minha crença,/ vazio a falar de outro vazio”, é também uma viagem ao fim da narrativa, àquilo que desta se liberta e que, em última análise, a torna impossível. Porque, para Rui Nunes, a narrativa sempre foi, tal como a musicalidade, uma outra forma de declinar esse nome vazio que projecta uma sombra imensa, esse nome que não desaparece, que corrói as coisas e que anuncia apenas “um homem a sós com os seus gestos” - uma outra declinação é esta: o poder. Este nome podre abre apenas para “grandes carcaças de boi, alinhadas como estratos geológicos, umas coladas às outras, de onde caem pingos de sangue.”. 
“os cães morrem sem Deus: enrolam-se no seu próprio pêlo e morrem, os pássaros desprendem-se das árvores e caem no tejadilho dos automóveis, as penas, de brilhantes passam a baço, ficam ali de asas semiabertas, um esvoaçar aflito que a morte interrompeu: a meia palavra de um voo”
Não se trata apenas, no entanto, de denunciar essa impostura da narrativa, para usar uma palavra próxima a outro universo, de lhe assacar uma qualquer responsabilidade de ordem ética ou moral - como se em certos temas, em certas acontecimentos, a narrativa e o romance não devessem entrar. Trata-se, pelo contrário, de mostrar que qualquer narrativa é sempre incapaz de seguir a interrogação sobre esses corpos sem redenção até ao fim, de mostrar que esta intimidade da morte, que estes pedaços de corpos, que estes espaços anónimos onde se dissemina uma pobreza sem nome lhe são irremediavelmente estranhos e estrangeiros. Não há narrativa, de facto, que consiga dar conta dessa violência arcaica, dessa repetição sem fim dos mesmos gestos inacabados, dessa vida ínfima que se situa no limiar da morte, onde há apenas distância, “resíduos de todas as paisagens, de todas as passagens” e corpos sem jeito.
“A este corpo sem jeito chamavam-lhe o quê?: o filho de Hilde? o tartamudo? O tonto, coitado? Ou gritavam-lhe: vem cá, fecha-me essa boca, limpa o cuspo dos lábios, vai buscar lenha: nem a intimidade de um insulto ou de um riso. De falta de nome em falta de nome, até à falta. Nítida como uma soletração. Hoje, é somente um corpo, de ninguém, que ninguém”.
Enquanto contarem histórias não conseguirão perceber o que são esses corpos, o que é esta solidão ou este abandono. E, no fim, apetece apenas citar Blanchot: “Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais”.

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CARREIRO, José. “O Anjo Camponês, Rui Nunes”. Portugal, Folha de Poesia, 06-03-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/03/o-anjo-campones.html


 

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