O Poder de Circe
Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.
Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.
*Poema publicado originalmente na coletânea Meadowlands (1996), com o título “Circe’s Power”. Editado em Portugal na
antologia Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro (2001), da
Assírio & Alvim, numa tradução de José Alberto Oliveira. A antologia
encontra-se atualmente esgotada
Paisagem/3
Nos fins do outono uma rapariga deitou fogo
a um trigal. O outono
fora muito seco; o campo
ardeu como palha.
Depois não sobrou nada.
Se o atravessávamos, não víamos nada.
Nada havia para colher, para cheirar.
Os cavalos não compreendem –
Onde está o campo, parecem dizer.
Como tu ou eu a perguntar
onde está a nossa casa.
Ninguém sabe responder-lhes.
Não sobra nada;
resta-nos esperar, a bem do lavrador,
que o seguro pague.
É como perder um ano de vida.
Em que perderias um ano da tua vida?
Mais tarde regressas ao velho lugar –
só restam cinzas: negrume e vazio.
Pensas: como pude viver aqui?
Mas na altura era diferente,
mesmo no último verão. A terra agia
como se nada de mal pudesse acontecer-lhe.
Um único fósforo foi quanto bastou.
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.
O campo crestado, seco –
a morte já a postos
por assim dizer.
*Terceira parte do poema “Landscape”, de Averno (2006), traduzido por Rui Pires Cabral. Os versos foram publicados no n.º 12 da revista Telhados de Vidro, da editora Averno, em maio de 2009
Disponível em: https://observador.pt/2020/10/08/leia-aqui-o-poema-o-poder-de-circe-de-louise-gluck-premio-nobel-da-literatura-de-2020
Nobel para Louise Glück: uma
poesia da desolação e do milagre
O nome da
norte-americana Louise Glück foi anunciado pela Academia
Sueca esta quinta-feira ao meio-dia como Nobel da Literatura
2020, numa cerimónia transmitida
online a partir de Estocolmo.
O júri escolheu-a pela “sua inconfundível voz poética, que com austera beleza
torna universal a existência individual”. Actualmente a viver em Cambridge,
Massachussetts, nos EUA, Louise Glück, de 77 anos, é professora de Língua
Inglesa na Universidade de Yale.
O
secretário permanente da academia, Mats Malm, disse
que Louise Glück ficou “surpreendida e feliz” quando lhe
telefonaram bem cedo para os EUA a dar a notícia. A sua poesia é caracterizada
por “uma busca de claridade”, justificou a academia, com temas que passam pela
infância, pela vida familiar e pelo relacionamento com pais e irmãos.
“Nos seus
poemas ‘o eu’ escuta o que resta dos seus sonhos e ilusões e ninguém é mais
duro ao confrontar as suas próprias ilusões. Mas ainda
que Glück nunca tenha negado a relevância do contexto autobiográfico,
não deve ser encarada como um poeta confessional. Glück almeja
o universal, e nessa procura inspira-se nos mitos e nos temas clássicos
presentes na maior parte dos seus trabalhos. As vozes de Dido, Perséfone e
Eurídice – as abandonadas, as castigadas, as traídas – são máscaras para ‘um
eu’ em transformação, tão pessoal quanto universalmente válido”, justifica o
presidente do Comité do Nobel Anders Olsson.
“Com as
antologias The Triumph of Achilles (1985) e Ararat (1990),
Glück encontrou uma audiência crescente nos Estados Unidos e no estrangeiro”,
diz Olsson, observando que em Ararat se “reúnem três características
que se tornarão recorrentes em livros posteriores: o tópico da vida familiar,
uma inteligência austera e um refinado sentido de composição que marca o
livro no seu conjunto”.
Lembrando
que a própria Glück referiu ter “descoberto nesses poemas como
utilizar a dicção comum na sua poesia”, o presidente do Comité do Nobel
sublinha o carácter “deceptivo” desse seu “tom naturalista”: “Deparamo-nos com
imagens nítidas e quase brutais de dolorosas relações familiares, descritas com
candura e sem vestígio de ornamento poético”. Olsson vê ainda
“um traço muito revelador da sua própria poesia” quando Glück, nos seus
ensaios, “cita o tom urgente em Eliot, a arte da escuta interior em Keats ou o
silêncio voluntário em George Oppen”. Mas “na sua própria severidade e
recusa em aceitar simples premissas de fé, ela parece-se mais com Emily
Dickinson do que com qualquer outro poeta”, acrescenta.
Há muito
radicada em Cambridge, no Massachussets, Louise Glück nasceu em Nova
Iorque em 1943 numa família de emigrantes judeus vindos da Hungria (o seu pai,
Daniel Glück, inventou com um cunhado, nos anos 30, a lâmina x-acto) e foi criada
em Long Island, tendo-se debatido com problemas de anorexia nervosa nos anos
finais do liceu. Frequentou depois o Sarah Lawrence College e a Universidade de
Columbia, onde teve como influente mentor o poeta Stanley Kunitz, mas não
chegou a licenciar-se, o que não a impediu de ensinar poesia em diversas
escolas e universidades, após alguns anos a sustentar-se com um emprego de
secretária.
Glück
estreou-se em 1968 com um livro adequadamente intitulado Firstborn, tendo
desde então publicado mais onze volumes de poesia, sendo o mais recente, Faithful
and Virtuous Night, de 2014. Desde a publicação dos seus primeiros livros que a
crítica a vem reconhecendo como um dos nomes centrais da actual poesia
norte-americana. The Wild Iris trouxe-lhe um prémio Pulitzer em 1993,
no mesmo ano em que foi eleita para a Academia Americana das Artes e Ciências.
Em 2004 sucedeu a Billy Collins como “poeta laureado” nos Estados Unidos, e
recebeu ainda vários outros prémios, incluindo o National Book Award, atribuído
a Faithful and Virtuous Night.
Ela
própria contou ter tido um bloqueio criativo após a publicação do livro de
estreia, que só conseguiu resolver quando começou a ensinar poesia – “no
momento em que comecei a ensinar, comecei a escrever: foi um milagre” – e que
justifica o hiato de sete anos até à publicação de The House on Marshland,
em 1975. Este segundo livro foi bem acolhido por vários críticos, que nele
reconheceram uma voz singular que a autora ainda não teria verdadeiramente
encontrado no primeiro. E esta quinta-feira, ao telefone com a Academia Sueca,
quando lhe pediram que indicasse por onde deviam os novos leitores que o Nobel
da Literatura decerto lhe irá trazer entrar na sua obra, ela mesma avisou que
não deveriam começar pelo seu livro de estreia.
Numa
entrevista ao PÚBLICO, durante o passado mês de Maio, o
escritor Teju Cole revelava que andava ler a poesia
de Louise Glück. E no ano passado, também ao PÚBLICO, a escritora Lisa
Halliday dizia que a poesia de Louise Glück tinha
enformado o seu tom e contagiado o seu ritmo na escrita de Assimetria.
A par da
sua obra poética, Louise Glück publicou também colectâneas de ensaios sobre
poesia, a última das quais – American Originalityt: Essays on Poetry –
saiu em 2017. No anterior Proofs and Theories, de 1994, dá-nos uma chave
para a sua poesia ao sublinhar que “escrever não é decantar a personalidade” e
que “a verdade, na página [de um livro], não precisa de ter sido vivida, mas é
antes tudo o que pode ser contemplado”. E quando recebeu a nomeação oficial de
“poeta laureado”, atribuída pela Biblioteca do Congresso, e lhe pediram que
escolhesse uma amostra da sua poesia, destacou os cinco versos finais de um
poema do livro The Seven Ages, de 2001: “Immunity to time, to change.
Sensation/ of perfect safety, the sense of being/ protected from what we
loved—// And our intense need was absorbed by the night/ and returned as
sustenance.”
Profunda
conhecedora do cânone, são muitas as vozes – de Homero ou Dante a poetas
contemporâneos como T.S. Eliot ou Wallace Stevens – que ecoam nesta poesia. Mas
sem abdicar da complexidade da sua visão, esta é também uma poesia que não
abdica de ser comunicante e quer poder ser lida com proveito pelo leitor não
especializado.
É uma
poesia atravessada pelo sofrimento e pela desolação, “familiarizada com a
escuridão”, como escreveu o poeta e crítico Peter Campion no New York
Times numa recensão de 2014 a Faithful and Virtuous Night. Mas
o mesmo Campion observa que uma razão para Glück se ter confirmado, ao longo
das últimas décadas, como “um nome tão central na poesia Americana (…) é o seu
notável talento para recapturar o milagre”. Apesar de toda a sua “desabusada
austeridade”, argumenta Campion, é “um grande poeta da renovação”. Mas adverte
que “não se trata de optimismo”, já que “para Glück e para os que falam nos
seus poemas, a mera sobrevivência é já um quase inacreditável milagre”.
O modo
como a sua poesia por vezes emerge da desolação e da treva para lugares mais
luminosos foi também notado pelo presidente do Comité Nobel, que sugeriu que “o
decisivo instante de mudança é muitas vezes marcado por um humor cortante”,
como acontece nos versos finais do livro Vita Nova (1999), título que
alude ostensivamente à Vita Nuova de Dante: “I thought my life was
over and my heart was broken./ Then I moved to Cambridge.”
Não há
livros de Glück editados em Portugal, mas um dos seus poemas, O Poder de
Circe (do livro Meadowlands, de 1996), foi traduzido pelo poeta
José Alberto Oliveira para ser incluído na colectânea Rosa do Mundo – 2001
Poemas para o futuro, organizada pelo editor Manuel Hermínio
Monteiro e editada pela Assírio & Alvim em 2001. O poema abre com
estes versos: “Nunca transformei ninguém em porco./ Algumas pessoas são
porcos; faço-os/ parecerem-se a porcos.// Estou farta do
vosso mundo/ que permite que o exterior disfarce o interior”. Mais
tarde, em 2009, o poeta, artista plástico e tradutor Rui Pires Cabral publicou
no n.º 12 da revista Telhados de Vidro dois poemas de Glück do
livro Averno, de 2006, incluindo
o extenso Paisagem (Landscape), em seis partes, e Um Mito de
Devoção, no qual a poetisa norte-americana revisita o mito de Perséfone e que
se inicia com estas estrofes: “Decidido a amar
aquela rapariga/ Hades construiu-lhe um duplicado
da terra,/ tudo igual, até o prado,/ mas com uma cama no
meio.// Tudo igual, incluindo a luz do sol,/ pois não seria fácil a
uma rapariga nova/ passar tão bruscamente da luz intensa à completa
escuridão”.
"Uma
grande honra"
Num ano
especial por causa da pandemia
de Covid-19, já se sabe que não irá acontecer o habitual banquete
organizado para os laureados em Estocolmo. Segundo o jornal sueco The Local,
a cerimónia em que os vencedores recebem das mãos do rei Carlos Gustavo o
prémio Nobel, geralmente agendada para 10 de Dezembro em Estocolmo, será
substituída por uma cerimónia transmitida digitalmente nesse mesmo dia, com os
premiados a receberem os prémios nos seus próprios países. Os vencedores
deste ano serão convidados para uma cerimónia a realizar-se em 2021 onde
poderão comemorar ao lado dos laureados do próximo ano, assumindo que a crise
pandémica já estará resolvida por essa altura.
A escolha
da poetisa norte-americana não foi uma surpresa total, já que se esperava que o
vencedor fosse uma mulher, muitos apostavam que 2020 assinalaria o regresso da
poesia, e o nome de Louise Glück surgia nas listas de favoritos das casas de
apostas, ainda que em lugar modesto, muito atrás de candidatas como a
guadalupense Maryse Condé, a canadiana Anne Carson, a russa Lyudmila Ulitskaya
ou a ficcionista americana de origem caribenha Jamaica Kincaid. Se o poeta mais
recentemente galardoado – caso exceptuemos Bob Dylan – tinha sido o sueco Tomas
Tranströmer em 2011, é preciso recuar 24 anos, até 1996, para encontrarmos a última
poetisa que tinha recebido o prémio: a polaca Wisława Szymborska.
Depois de
o Nobel da Literatura ter causado polémica em
2016, quando foi atribuído a Bob Dylan, de ter estado suspenso em virtude
de uma sucessão de escândalos em 2018, e de
no ano passado ter voltado a gerar controvérsia com a escolha de Peter
Handke, acusado de simpatias pró-sérvias na guerra dos Balcãs, Louise Glück
pode bem ser considerada uma aposta segura, ao mesmo tempo que parece marcar a
vontade da Academia Sueca de mostrar que não se sente obrigada a satisfazer as
pressões contemporâneas que exigem ver distinguidos autores que não sejam
homens, brancos e ocidentais.
Numa entrevista telefónica disponibilizada esta tarde pela
Academia Sueca, Louise Glück, ainda atarantada com a notícia e sem ter
tomado café, disse que não tinha nenhuma ideia sobre o que significava para ela
ter sido galardoada com o Prémio Nobel da Literatura. Confessou que um dos seus
primeiros pensamentos foi o de que ia perder todos os seus amigos, porque a
maior parte deles são escritores. Ainda sem saber muito bem o que significa
estar entre os que já receberam este prémio, reconheceu que é “uma grande
honra” recebê-lo, apesar de entre os premiados haver alguns que não admira.
“Mas depois penso naqueles que admiro, alguns premiados muito recentemente”,
concluiu.
Em termos
práticos, regozijou-se com o facto de o dinheiro do prémio (dez milhões de
coroas suecas, correspondentes a um pouco menos de um milhão de euros) lhe ir
permitir comprar uma casa em Vermont. Mas o que verdadeiramente a preocupa é o
impacto que a visibilidade deste prémio possa ter na vida das pessoas que
a rodeiam e que ela ama e cuja intimidade ela gostaria que fosse preservada.
com Isabel Coutinho
https://www.publico.pt/2020/10/08/culturaipsilon/noticia/-premio-nobel-literatura-2020-1934431
CARREIRO, José. “Louise
Glück, Prémio Nobel da Literatura de 2020”. Portugal, Folha de Poesia,
10-10-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/10/louise-gluck-premio-nobel-da-literatura.html
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