domingo, 14 de fevereiro de 2021

Espelho, Eugénio de Andrade


Fotografia de Eric Guichaoua Serra

 

ESPELHO

 

Que rompam as águas:

é de um corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,

nem outro espelho;

nunca tive outra casa.

 

É de um rio que falo;

desta margem onde soam ainda,

leves

umas sandálias de oiro e de ternura.

 

Aqui moram as palavras;

as mais antigas,

as mais recentes:

mãe, árvore,

adro, amigo.

 

Aqui conheci o desejo

mais sombrio,

mais luminoso;

a boca

onde nasce o sol,

onde nasce a lua.

 

E sempre um corpo,

sempre um rio;

corpos ou ecos de colunas,

rios ou súbitas janelas

sobre dunas;

corpos:

dóceis, doirados montes de feno;

rios:

frágeis, frias flores de cristal.

 

E tudo era água,

água,

desejo só

de um pequeno charco de luz.

 

De luz?

Que sabemos nós

dessas nuvens altas,

dessas agulhas

nuas

onde o silêncio se esconde?

Desses olhos redondos,

agudos de verão,

e tão azuis

como se fossem beijos?

 

Um corpo amei;

um corpo, um rio;

um pequeno tigre de inocência

com lágrimas

esquecidas nos ombros,

gritos

adormecidos nas pernas,

com extensas, arrefecidas

primaveras nas mãos.

 

Quem não amou

assim? Quem não amou?

Quem?

Quem não amou

está morto.

 

Piedade,

também eu sou mortal.

Piedade

por um lenço de linho

debruado de feroz melancolia,

por uma haste de espinheiro

atirada contra o muro,

por uma voz que tropeça

e não alcança os ramos.

 

De um corpo falei:

que rompam as águas.

 

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro, 1977



 

LINHAS DE LEITURA:

 

«Corpo» é neste poema reescrito por uma série de equivalentes: «pátria» (v. 3), «espelho» (v. 4), «casa» (v. 5), «rio» (vv. 6, 22, 24, 44), «tigre de inocência» (v. 45); estes elementos evocam já a infância e a mãe, que por sua vez atrai «palavras» que «moram» «aqui» (no poema, visto como casa): «mãe, árvore,/adro, amigo» (vv. 13-14), recobrindo a relação Mãe-Natureza-Aldeia-Outro. «Aqui» é pois lugar (casa, corpo?), como se confirma pelo advérbio «onde» (vv. 19 e 20), lugar «onde nasce o sol» e «a lua» (v. 20); nascer remete o leitor não só para os vv. 1 e 68, mas para a anulação de contrários já apontada: «sol» torna-se igual a «lua», «corpo» a «rio».

Faça o levantamento deste processo no poema; verá assim que o «Espelho» é o lugar de fixação do Passado, é o poema, é a tentativa de que o passado evocado («De um corpo falei», v. 67) se repita no futuro que o presente aponta («que rompam as águas», v. 68). Escrever o poema, ver-se no espelho, é pois tentar anular os contrários, estabelecer a igualdade inicial (iniciática?), eliminando a diferença, perturbadora do amor.

 

Poemas de Eugénio De Andrade - O Homem, a Terra, a Palavra. Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Paula Morão. Lisboa: Seara Nova/Editorial Comunicação, 1981

 



 

O ESPAÇO ELEMENTAR E A CONFIGURAÇÃO DO HOMEM NA POESIA DE EUGÊNIO DE ANDRADE

 

Espelho” é um poema longo, composto por versos brancos e livres, agrupados em doze estrofes de tamanhos variados, cuja temática já se revela a partir do título, espelho é aquilo que reflete algo; contudo, “o que” e “como” reflete são as discussões que esse poema suscita.

O poema é estruturado a partir de anáforas e antíteses de valor metafórico, que vislumbram dois momentos distintos. O primeiro (revelado pelas seis primeiras estrofes) apresenta o momento presente, no qual o eu-lírico propõe-se a falar de um corpo, enaltecendo suas características, dentre as quais a principal é refletir a vida. O segundo (sexta à décima segunda estrofe) volta-se a recordações passadas, fazendo questionamentos e reflexões acerca dessas vivências; e encerra-se com o fechamento de um ciclo.

Atentando para os recursos estilísticos, observa-se a principal metáfora do poema, o espelho, que, gradativamente e, sempre permeada pelos elementos da natureza, transfigura-se no corpo, na casa, no rio, em janelas sobre dunas, nos montes de feno, flores de cristal, charco de luz, pequeno tigre, e, sobretudo na palavra. Dessa maneira, os elementos naturais que estão intrínsecos à vida, aqui se revelam pelas imagens correspondidas: a terra é configurada pela pátria, casa, margem, árvore, colunas, dunas, montes de feno, pequeno tigre, muro e ramos; a água e tida pelo rio, frias flores de cristal e lágrimas; o ar é visto por “nuvens altas” e pelo adjetivo “leves” e o fogo, pelo sol, “olhos redondos agudos de verão”.

Sob essa perspectiva de leitura, a primeira transfiguração do espelho é em corpo/rio; “Que rompam as águas/é de um corpo que falo. Em seguida, por relação de contigüidade, pautada ora na anáfora, ora no paralelismo, o corpo é descrito como pátria, espelho, casa: “Nunca tive outra pátria,/nem outro espelho;/nunca tive outra casa”. Esse corpo é apresentado como um lugar, idéia justificada pela anáfora “aqui” e pelos substantivos a ele referentes: pátria, casa, desta margem. Ao longo do poema, figura-se em outras imagens, como o espelho, a água (a palavra) que tudo reflete, mas sempre volta a si: “Sempre um corpo/sempre um rio/corpos ou ecos de coluna/ E tudo era água”.

O corpo/espelho reúne em si características contraditórias (como a vida), pois ao mesmo tempo em que é figurado através de elementos concretos, como casa, pátria, rio, janelas sobre dunas, corpos doirados, flores de cristal, é um corpo que abarca em si sentimentos contraditórios (“Aqui conheci o desejo/mais sóbrio/mais luminoso/a boca/onde nasce o sol/onde nasce a lua”) e os reflete. A idéia de contrariedade também é observada pelos advérbios “nunca/sempre”.

Permeia o poema a descrição de um ciclo (do rio, da vida, da palavra/poesia). Revelando o início: “Que rompam as águas/é de um rio que falo”; “Aqui moram as palavras”; sua continuidade, reiterada pelo advérbio “sempre”: “E sempre um corpo/sempre um rio”; suas transformações: “Corpos ou ecos de colunas/rios ou súbitas janelas/sobre dunas/corpos;/dóceis, doirados, montes de feno/rios;/frágeis, frias flores de cristal” e o seu fim, que se reinicia: “De um corpo falei:/que rompam as águas”.

A corporeidade dada à palavra é vista por meio de uma linguagem plástica, que revela um movimento de metáfora pelo qual a palavra é corpo, é rio, é desejo, é boca, é flor, é luz, é olho agudo de verão, enfim, a palavra é espelho que reflete a vida (que cumpre o seu ciclo, com suas transformações), pois ela é o próprio corpo que vivencia tudo isso. Inúmeras imagens, pois, são refletidas nesse jogo de luzes e sombras, tidas pelas palavras que se repetem anaforicamente, se contradizem ou se transformam. Um exemplo dessa linguagem visual, no poema, é a imagem que se forma de um rio em movimento, claro, luminoso, fluido; sobrepondo-se à imagem de um corpo jovem, sensual, que vivencia o amor, mesclando-se à imagem da natureza, ao mesmo tempo expectadora e ativa, com a luz do verão a produção de frutos, flores na primavera; tudo isso num movimento sensual da vida, que se repete, se transforma, enfim, se reflete: “Aqui conheci o desejo”, “Desses olhos redondos/ agudos de verão/ e tão azuis/ como se fossem beijos?”, “Um corpo amei/ um corpo, um rio/um pequeno tigre de inocência”, “Aqui moram as palavras/as mais antigas/ as mais recentes”.

Na visualização das imagens emanadas pelo poema, o cromatismo é bastante importante, pois a luminosidade da vida se presentifica através das cores tidas pelos corpos que as reluzem: as sandálias de oiro às margens do rio, o desejo luminoso de um corpo, o nascimento do sol, os corpos doirados montes de feno, as flores de cristal, um pequeno charco de luz, os olhos agudos de verão e tão azuis.

A musicalidade faz-se presente nesse poema por meio das anáforas reiterativas dos mesmos sons, aliadas às aliterações das nasais /m, n/, sibilantes /f,s/ e palatais /l,lh/ proporcionam a sensação do som rumoroso, liquefeito e contínuo das águas de um rio.

Quanto à construção sintática, observa-se que o poema, numa atitude retórica, apresenta os mesmos versos no início e final do texto (com exceção do verbo final, no passado, revelando que o tempo cumpriu o seu ciclo e iniciará novamente). Contudo, os versos finais estão postos como se fossem reflexos num espelho, reiterando o plano semântico: “Que rompam as águas: é de um corpo que falo” x “De um corpo falei: que rompam as águas”. Assim, a idéia que fica é da poesia-espelho que tudo reflete, porque é a própria vida, na sua força natural da água, do amor, com suas contradições e súplicas. A palavra que no poema reflete o começo e o fim é a realidade da vida, no seu ciclo.

 

Amanda Mantovani, A palavra-imagem em poemas de Eugênio de Andrade: uma leitura dos elementos míticos: o fogo, a água, o ar e a terra como produção de sentido. Universidade Estadual de Maringá - Centro De Ciências Humanas, Letras e Artes, 2006.

 

William Pye, Narcissus (1969)

 

A POÉTICA DE EUGÊNIO DE ANDRADE E A SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO

As afirmações acerca do espaço no universo poético revelam-se por meio da palavra, como no poema “Espelho”, que apresenta a primeira transfiguração do espelho, que sucede nas palavras “corpo” e “rio”, nos versos, “Que rompam as águas / é de um corpo que falo”. O corpo é descrito nas figuras da pátria, espelho e casa: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho; / nunca tive outra casa”. Apresentado como um lugar (pátria, casa), ele se figura em outras imagens como o espelho, a água (a palavra) que tudo reflete, mas, na intenção de se encontrar, sempre volta a si própria: “Sempre um corpo / sempre um rio / corpos ou ecos de coluna / E tudo era água” (Mar de setembro, 2011, p. 132-134).

Fica evidente que a palavra adquire status de lugar, concretizado por elementos contidos nos versos, todos são o “lugar” onde a vida acontece com sua força natural e material e suas contradições, súplicas, lembranças, desejos, descobertas que, num ir e vir espelham esse ciclo de viver (começo e fim). Desvela ao homem a sua materialidade / humanidade, porque é a própria vida que faz viver: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho / Aqui moram as palavras: / Aqui conheci o desejo / E sempre um corpo / sempre um rio. (Mar de setembro, 2011, p. 132-134). Conclui-se que o poema “Espelho” é o lugar reinventado pelo poeta. Para Santos e Oliveira (2001), a imagem e o cenário apresentam-se como forma efetiva de revelação lírica e, nesse caso, a poesia torna-se o espaço em constante mudança, representa a vida e o homem na sua dialética transformação.

A palavra ao refletir o começo e o fim, a vida, o homem e suas transformações é o “lugar” (espaço poemático ou imaginário) onde as mudanças acontecem e o homem se reinventa através desse jogo metafórico e retórico de imagens construídas. Conforme Blanchot (1987), o espaço cumpre seu papel transformador e transcendental, ao promover a interiorização dos elementos, possibilitando a formação de um espaço imaginário. Nesse espaço, está presente a revelação lírica, compreendida como a consciência da célere condição humana e dos inquietantes questionamentos diante das transformações contraditórias e perturbadoras, como nos versos: “Que sabemos nós, / dessas nuvens altas, / dessas agulhas / nuas / onde o silêncio se esconde / desses olhos redondos, / agudos de verão, / e tão azuis / como se fossem beijos?” (Mar de setembro, 2011, p. 132-134).

Nos versos desse poema, os “olhos redondos agudos de verão e azuis como beijos” avistam um exemplo do que Blanchot (1987) afirma sobre as imagens caladas pelo poeta, que ecoam no texto com um profundo significado ao leitor. Ratificam a relação do homem com o espaço, proposta por Heidegger (2004) pelo distanciamento e direcionalidade, segundo as quais o homem pode outorgar ou não, o valor de existência aos elementos espaciais que o circundam, atribuindo-lhes valores e interagindo com eles. Os olhos “agudos de verão” adquirem valor vivaz e envolvente como um beijo.

 

Amanda Rodrigueiro, A poética de Eugênio de Andrade: figurações do espaço. Universidade Estadual de Maringá - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2017.

 

YannAudino /MJ

 



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***

 


William Pye_Narcissus (1969)



Que reflete o espelho?

A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência.


 

Ô miroir!

Eau froide par I 'ennui dans ton cadre gelée

Que de fois et pendant des heures, desolée

Des songes et cherchant mes souvenirs qui sont

Comme des feuilles sous ta glace au trou profond,

Je m 'apparus en toi comme une ombre lointaine,

Mais, horreur! des soirs, dans ta sévère fontaine

J'ai de mon rêve épars connu la nudité!

Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867

 

Ó espelho!

Água fria pelo tédio no teu quadro gelada

Quantas vezes durante horas, desolada

Dos sonhos e procurando as minhas recordações que são

Como folhas sob o teu vidro no poço profundo,

Apareci-me em ti como uma sombra longínqua,

Mas, horror! certas noites, na tua severa fonte

Do meu sonhar disperso conheci a nudez!

Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867

(Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra in “Espelho”, Dicionário dos Símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Lisboa: Teorema, 1994.

 

***

 

Gaston Bachelard inicialmente apresenta o espelho como um simples reflexo, mostrando que a água é o “espelho das vozes”, de Narciso e do “espelho velado”. Mas em A poética do espaço e A poética do devaneio, o espelho está voltado para o interior do ser humano. O sonhador vai além da superfície, vai à profundeza do seu ser, mirando-se em sua obra poética. Eis por que a criação artística duplica a obra e o seu criador. 

(Agripina Ferreira, Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos [livro eletrónico] Londrina : Eduel, 2013)

 

 

 





CARREIRO, José. “Espelho, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 14-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/espelho-eugenio-de-andrade.html



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