RETRATO ARDENTE
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Eugénio
de Andrade, Obscuro Domínio (1972)
POESIA DO
CORPO
Na poesia de Eugénio de Andrade a importância do corpo
constitui um dos mais divulgados lugares comuns do ponto de vista da receção da
sua obra. O próprio poeta, em 1979, no livro Rosto Precário
confirma esta perceção relativamente à sua poética, ao afirmar o seguinte: «na
minha poesia o corpo insurge-se, diz coisas despropositadas, põe-se a
blasfemar, chegando a pretender-se metáfora do universo».
Atenta nas seguintes linhas de leitura
propostas por Paula Morão:
- Veja
como este é o simultâneo «retrato» de um Eu e um Tu; um Tu retratado nas
partes do corpo e nos efeitos que produz sobre o Eu; um Eu que não só enuncia o Tu mas se
enuncia reagindo, por marcas aparentemente impessoalizadas que se resolvem
na «música» do último verso, condensando a «loucura», o «rumor», o «queimar».
- Esta
simultaneidade Eu/Tu é apenas um
dos estigmas de excesso presentes no poema. Note outros, como a progressão
«desce» - v. 3; «invade» - v. 4, «se junta» - v. 7, «alastra» - v. 8, e a
anulação de diferenças (como em «... pólen do fogo/se junta à nascente...»·-
fogo e água con-fundem-se).
- Note
ainda que a progressão no desejo tem a ver com a série «lábios»-«garganta»-«peito»-«flancos»
e «da cintura aos joelhos» que omite a zona que «queima», deixando-a como zona
inter-dita, na atitude do voyeur; a sugestão é bem mais eficaz que a
visão em termos de erotismo, como diz Roland Barthes: «o lugar mais erótico de
um corpo não é o ponto em que o vestuário se entreabre? [...] é a
intermitência [...] ... que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças
(as calças e a camisola), entre duas margens (a camisa entreaberta, a luva e a
manga) [...]». (O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, s/d; p. 44.)
- Veja
que a última estrofe define melhor o desejo como produto da relação amorosa,
mas dá ao «Retrato» a dimensão «Ardente»: «iluminar», ter a «música», é saber
que o espaço «Entre lábios e lábios» é definido por «lábios teus» (v. 1) e
«meus» - para te percorrer o corpo e para te dizer, para te possuir no corpo e
no dizer o corpo, instituindo a palavra como potência (também) sexual, o poema
como «Retrato Ardente», como «Corpo Habitado».
Poemas de
Eugénio de Andrade - O Homem, a Terra, a Palavra.
Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de
Paula Morão. Lisboa: Seara Nova/Editorial Comunicação, 1981
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- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
CARREIRO, José. “Retrato
ardente, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 15-02-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/retrato-ardente-eugenio-de-andrade.html
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