sábado, 13 de fevereiro de 2021

Alba, Eugénio de Andrade


"O happy day",
Félix Frédéric d'Eon, 2021
 

 

ALBA

 

Como se não houvera

bosque mais secreto,

 

como se as nascentes

fossem só ardor,

 

como se o teu corpo

fora a vida toda -

 

o desejo hesita

em ser espada ou flor.

 

Eugénio de Andrade, "Alba; Tema e variações em tom menor". In: Revista Colóquio/Letras. Poesia, n.º 1, março de 1971, p. 68-69.



Por cima da pulsão lírica, o título programa a leitura do texto ao remeter para um género da literatura popular que descreve "o aproximar do amanhecer depois do encontro de dois amantes".

O que no texto é símbolo e metáfora, no título é chave de decifração.

As palavras "corpo" (v. 5) e "desejo" (v. 7) colocam-nos no âmago da poética eugeniana, isto é, na pulsão homoerótica perante o objeto de desejo designado como "bosque mais secreto" (v. 2) - Que imagens do corpo vos sugere esta expressão?

Depois de enumerar o seu "ardor" (v. 4) libidinoso nas três primeiras estrofes, o sujeito lírico revela o desejo versátil que "hesita / em ser espada ou flor" (vv. 7 e 8).  É evidente o homoerotismo dos símbolos em antítese (espada como símbolo fálico e flor como recetáculo deste), pois que remetem concretamente para a penetração ativa  ou passiva.

 

José Carreiro, “Alba (Eugénio de Andrade)”, Folha de Poesia 2021-02-13

<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html> 

 

 

INTERTEXTUALIDADE     |    Novas Cartas Portuguesas



 


Alba

Como se não houvera

bosque mais secreto

(…)

Eugénio de Andrade

 

Maria atira para trás o lençol. devagar:

o calor do quarto empasta-lhe os cabelos num brando suor, às têmporas, ao pescoço, aos ombros, sobre a almofada; volta-se, consciente do silêncio da casa, do jardim imenso. O terrível silêncio do bosque:

«O bosque com as suas ledas sombras, as suas ternas saliências, o seu verde húmido de água; dunas As suas dunas de pássaros adormecidos. A sua dormência uterina, a sua voragem quase monstruosa onde mergulharia, se envolveria, despida de si por completo.»

— Mas que bosque, Maria, que loucura, que invenção? — diz ele enquanto a acaricia, lhe beija os peitos soltos sob o fato, não querendo ou podendo reparar-lhe no vazio dos olhos, no crispado dos lábios, na indiferença dos braços. No medo crescente, todos os dias maior, possessivo, envolvente, radical, por dentro das pupilas verdes, toldadas; um verde cinzento já sem transparências.

Uma manhã em que Ana se lhe demorou mais no colo, disse baixo, como se fosse um segredo entre as duas:

— «Anda minha filha, vamos para o bosque.»

Depois riu-se, baixo, e correu as mãos pelo rosto, indo encostara testa nos vidros momos da janela que dava para o jardim imenso com as suas dálias, os seus crisântemos, os seus alucinantes malmequeres amarelos, a perder de vista.

— Que bosque, Maria? Mas que bosque... que caminho? Ali é o portão, depois as casas, as pessoas, Maria; mas que bosque estás sempre a inventar, que domínio, que bosque, meu amor; que rio, que desatino?

Maria atira para trás o lençol de linho branco, devagar; o calor da tarde agarra-se-lhe à pele, ao sono mal desfeito ainda, ao corpo que a camisa de noite, de tom rosado, dormente, exibe mais do que se estivesse nu.

Maria sai da cama, escorrega para o chão as pernas altas, levanta os braços e despe-se, entontecida, numa leve, leve tontura ou náusea a tomar conta de si... De pé, espera um breve segundo antes de contornar a cama, afastar os cortinados brancos, na renda larga, trabalhada; os cortinados assim como os lençóis, de branda fragrância suspensa; os cortinados assim como a casa, de macia transparência a delinear a nudez, a delinear as ancas. As pernas longas, pálidas, tensas, vergam-se ao de leve, mas logo se firmam a aguentar do corpo o peso; as ilhargas quentes, secas, lentas; a cintura recurvada aos dedos. a toda a violência.

E brandos são os pés agora no lajedo aceso do terraço sob o sol. Brandos no passo incerto, breve. Sereno o movimento posto de vidro no gesto cauto, vigilante.

Largo o risco traçado pela sombra que o corpo projecta, remove, doma, cresce e floresce na própria sombra. Enquanto Maria agora desce novamente, transpõe o perigo dos outros e desce ainda, no bosque que tão bem conhece, embora lá nunca tenha na realidade ido. Que meigas folhas a roçar os lábios, os seios na terra onde pernoita o tempo, o corpo recolhido, acolhido na erva, à mistura com o sabor ácido do rio. Maria fecha os olhos e sabe que adormece, ali tão a resguardo, tão tranquila, tão esquecida de tudo, tão desarmada, os joelhos erguidos, junto à boca, como nela estivera já a filha.

 

Querida Mãe:

Mando-lhe a Ana que aqui não pode continuar. Tome conta dela, distraindo-a do que por cá se passou e ela viu.

Maria parece ter enlouquecido (poucas esperanças de curá-la nos dão os médicos) e o Francisco nega-se à verdade, os dias metido no quarto dela, onde se fica em silêncio a olhá-la como se a quisesse despertar para a vida.

Ralo-me por ele, no entanto não te preocupes de mais, que eu me encarregarei de o convencer (conheço meu irmão) a internar Maria numa clínica.

Não fales à Ana, da mãe, é preferível que comece já a esquecê-la, pois melhor seria não lembrá-la nunca como sempre foi, Bem sabes que jamais previ algo de bom deste casamento. Mas agora que aqui estou, tudo se arranjará e há-de voltar a dantes.

De volta espero levar-te o Francisco. Prometo-te. Entretanto vou dando notícias.

Beijo-te afectuosamente.

Tua filha dedicada

Mariana

9/4/71

 

"Sor Juana y La Virreina", Félix Frédéric d'Eon, 2020



ALBA

 

As cool as the pale wet leaves of lily-of-the-valley

She lay beside me in the dawn.

Ezra Pound

 

ALBA

 

Como se não houvera

bosque mais secreto,

 

Como se as nascentes

fossem só ardor,

 

Como se o teu corpo

fora a vida toda,

 

O desejo hesita

em ser espada ou flor.

 

Eugénio de Andrade

 

BEJA E VERONA AO MESMO MADRUGAR

 

— Volta à redoma farta onde redondos cantam os gerânios

vem à noite amarela que te faço no poço dos meus braços

 

— Vou que de nada dizes o que me consegues

vou porque me tomaste pelo lado manso

 

— Volta ao lado de dentro onde estão guardadas as palavras boas

volta ao rigor do riso

que eu te fiz silêncio

eu te guardei brava

eu te pintei solta

por um preço alto

 

— Vou pela vela acesa ao pinheiral novo

suspensão dos teres

ao lugar dos brados

que não demos antes

 

— Dança pelo teu segredo uma casa aberta

— Vem a contar-me as horas por dentro dos nomes

— Minha espada dada dorme à tua beira

— Rosa verde clara senhor do primeiro

— Casada de mim eu não sei quem sou

— És sobre o meu seio

— Dorme sossegada

     minha água lisa

     face onde me estou.

9/4/71

 

Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta. Lisboa: Estúdios Cor, 1972 (1.ª edição)

 


 

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CARREIRO, José. “Alba, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 13-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html


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