A CRIATURA
Era uma criatura oca
vazia por fora
vazia por dentro
nem alta nem baixa
nem nova nem velha
de feitio brutal e forma barroca
Era tão oca
que nem o vento a enchia
nem a chuva a molhava
e o vento soprava e a chuva chovia
nada disso a movia
oca da cabeça aos pés
por cima e por baixo
de frente e de esguelha
oca de lés-a-lés
castanha cinzenta
e cinzenta castanha
nem o raio a tolhia
nem o sol a suava
Era uma criatura que se
auto-devorava
comia a boca
com a sua própria boca
dava urros
aos seus próprios murros
deglutia as entranhas
e outras coisas tamanhas
era oca e bacoca
dum cinza metal
não tinha cabeça
porque a tinha no estômago
e tinha tijolos no lugar dos miolos
era oca e bestial
comendo com a própria boca
mesmo a parte mais oca
a oca vazia
mesmo essa comia
Certa bela manhã
saciada de si
saltou para as ruas espalhando
terrores
rompeu a roncar
largando vapores
comeu três poetas
e meia dúzia de artistas
comeu os livreiros e os
alfarrabistas
pintou a manta e matou três pintores
Era uma criatura oca
tão oca e vazia
que todos olhavam e ninguém a via
tanto cirandou
que fez o que quis
roubou a princesa
comprou um polícia
e casou c’o juiz
Um dia
já de certa idade
subiu ao poder e comeu a cidade
João Habitualmente, De minha máquina com teu corpo
Cadernos
do Campo Alegre/14, Porto, Fundação Ciência e Desenvolvimento, 2010
EM TODA A CASA
pelas paredes cheira
ainda à tua pele cutânea
mas desde que
te foste estar aqui é oco,
cansativo, uma
espera. E às vezes (como se
tivéssemos
chorado) respirar custa.
sobretudo nada
apetece.
sair para a
rua? Ir então em frente a repetir
os passos,
passear nas avenidas a espaçar as
horas –
dispersar a espera?
tudo cinzento.
Choverá?
aqui é que não
fico. No quarto onde dormimos
o espaço
sobra, e cada coisa já morreu ou está a mais.
em toda a casa
uma violência subterrânea:
a tua ausência
João Habitualmente, Os animais antigos
Vila do Conde, Objecto Cardíaco,
2006. ISBN 972-8983-04-2
José Luís Fernandes (Porto, 1961) (João Habitualmente na poesia e Célio Lopes na prosa) |
“João Habitualmente” [é o]
pseudónimo do reconhecido professor universitário portuense (na Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação daquela cidade) e cronista jornalístico
José Luís Fernandes.
A sua poesia possui um carácter,
a vários níveis, peculiar, primando pela celebração explícita do desejo sexual
e por um humor repleto de sátira social e provocação descarnada, numa espécie
de versão bocagiana atualizada para os nossos dias.
Paulo
Pires, [ poesia vinte e um ], Antologia de 21 vozes poéticas da
nova geração disponível em https://issuu.com/esteoficiodepoeta/docs/antologia_poesia_21
Biblioteca Municipal de
Silves, 21 de março de 2021
CARREIRO, José. “Era
uma criatura oca vazia por fora vazia por dentro, João Habitualmente”. Portugal,
Folha de Poesia, 18-01-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/01/era-uma-criatura-oca-vazia-por-fora.html
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