1977
7-Julho (quinta). Que é
que importa o meu «inconsciente»? Que é que importam as forças que me
determinam, se eu as assumo depois da liberdade? Que importa o «inconsciente»,
se eu tenho consciência dele? Ninguém fala do inconsciente do cão — já o disse
algures. E sobretudo o cão não fala dele. É no podermos falar dele, do
«inconsciente», que verdadeiramente o homem começa. Mas se aí começa, o
«inconsciente» é só um valor a ter em conta como o corpo (em) que somos. E se o
inconsciente pode ser conhecido, ele é menos que isso, porque é já consciência.
Disse.
*
Que era a morte para um grego, um
medievo? Xenofonte desvaloriza muito a coragem de Sócrates, ao contrário da
legenda que se impôs. Sócrates, com efeito, estava velho, ou seja, tinha à
frente um destino de degradação. Entre morrer logo e esperar pela morte num
corpo em destruição, preferiu a morte imediata. E assim recusou que os amigos o
salvassem. Mas um grego e um medievo ou um qualquer outro para quem a morte não
era o nada total, o fim da vida não a punha em questão. O que há de trágico na
vida não é o podermos explicá-la (mas ela ainda o não é): é não podermos
dar-lhe uma significação. O crente à beira da morte tem uma vergôntea a que se
agarrar para não morrer afogado; nós afogamo-nos mesmo. O crente só põe em
questão o além;
nós pomos o aquém.
E como não temos «além», prolongamos o «aquém» para lá de o já não ser. No
fundo ninguém pode imaginar a morte, porque o nada é inimaginável. Por isso o
preenchemos com a vida que ainda temos para quando já a não tivermos. Toda a
moral e ordem humana assentam aí — no inimaginável da morte. É pensando nos
vivos para depois de mortos que não desatamos todos a fazer doidices. O nosso
nada é o nosso ser pensado para quando não tivermos ser. O nosso nada é a nossa
imaginação de vivos. O fundamento das crenças está na impensabilidade da morte,
ou seja, da inexistência do nosso «eu».
*
passam os carros na rua.
A minha vida levo-a
donde ela continua.
E todo o sonho que sou
frente à morte que me ameaça
é ser a vida que passa
e não a de quem passou.
Mas sou eu que vou passando
nos que vão passando ali,
enquanto a vida vai estando
nos que estão depois aqui.
Escuro da minha sorte!
Quem me dera ter na mão
a vida que chega à morte
e a que não.
Bom. Certo poeta intrometeu-se
aqui? Talvez. Penso como e não sei. Talvez com o ritmo? Imaginemos então um
ritmo diferente. Por exemplo:
ouço passar os carros pela rua.
A vida que me deram essa levo-a
donde ela no entanto continua.
E todo o sonho que eu agora sou
diante da morte que sinto me ameaça
é ser a própria vida que ali passa
e não a vida de quem lá passou.
Mas afinal sou eu que vou passando
em todos os que vão passando ali,
enquanto a vida mesma essa vai estando
nos que depois também estarão aqui.
Desce do céu escuro a minha sorte.
Ah, quem pudesse ter na sua mão
a Vida que termina com a morte
e a que não.
Versos piores? Talvez não. De qualquer
modo, se sim, o pior deles será então o «enchimento» que procurei e que assim
mesmo estará a mais. Mas não há dúvida que agora já dificilmente lembram o tal
poeta. Aliás, a última estrofe, numa e noutra versão, nada tem dele, sobretudo
pela redução silábica do último verso. De qualquer modo, ainda, é agradável de
vez em quando jogar à
poesia, como deve sê-lo pintar ao domingo. Aliás, sobretudo, o tal poeta foi
muitas vezes particularmente um «jogador». Mas o seu mérito é que foi ele quem
descobriu as regras do jogo. Admitamos, todavia, que ele persiste nas duas
versões pelo «jogo» que persiste dele. Suponhamos então uma versão mais livre
em que o especiosismo da finesse se
dissolva. Por exemplo:
Sob o céu de cinza na tarde que escurece
ouço os carros que passam.
E em cada um vai a vida de quem
vai
e eu com ele.
Mas todo o meu sonho se desdobra
entre quem passa, fechado em si,
sendo ele
e os que (Interrompido.)
Vergílio Ferreira, 07/07/1977
Conta-Corrente (1977-1979)
II. Lisboa, Bertrand Editora, 1990 (3.ª edição), pp. 66-69
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