terça-feira, 24 de junho de 2025

Maria Teresa Horta - uma ilha só dela

Saudades do Faial, Facebook, 12-10-2024

 

UMA ILHA SÓ DELA

[…]

A Horta, cidade com o seu nome, na ilha que julgava ser dela, entra-lhe no sangue para todo o sempre. Teresa criou o hábito, que ainda mantém, de verificar o boletim meteorológico da ilha. Prometeu voltar, não sabe se o fará.

Há um episódio que permanece intacto. Existe uma estátua do infante Dom Henrique perto da estrada e, depois, um jardim com muitas árvores. Do parapeito de um miradouro chegava-lhe o mar hipnotizante. Camila pegava em Teresinha ao colo para verem aquele oceano, agressivo, e a ilha do Pico, que Teresinha acreditava – ainda hoje o mantém – ser o lugar onde viviam as feiticeiras e bruxas. Estava convencida disso e dizia à avó: «Não vês as bruxas?» E ela respondia: «Acho que vejo uma sombra.» O que a fascinava, e que ela observava sem sossego, eram os anéis de nuvens sucessivos, a adornar a ilha, a escondê-la e a descobri-la, numa dança permanente que a menina considerava ser só para si. «Às vezes, penso que talvez seja a razão para esta minha paixão por anéis, nunca entendi exactamente. A minha mãe usava anéis, o Pico tinha anéis, eu uso-os em quase todos os dedos da mão.»

Camila, nesse dia, levou as meninas para um passeio, para as tirar da frente de Carlota. Teresinha carregava consigo um livro da colecção Manecas. Belinha estava irrequieta, brincava a subir e descer o banco de jardim. Chilinha mantinha-se bem tapada no carrinho de bebé. Teresinha, perturbada com o vaivém da irmã, resolveu afastar-se e a avó chamou-a: «Teresinha, volta para aqui.» Regressou ao banco e, assim que se sentou, o banco descaiu para o precipício, em direcção ao oceano. Camila ficou em pânico, Belinha não parava de se mexer e Teresinha percebeu que aquilo que as prendia eram cabos de aço. Deu-se um deslizar contínuo que era acompanhado por gritos – eram as pessoas que estavam por ali, que assomaram para ver, «Pousei os olhos no Atlântico e fiquei apaixonada. Estava tudo ali, aquela magia; ia em direcção àquilo sem medo.»

Camila não gritava, não chorava. Em aflição silenciosa, temtava passar a neta para os braços de alguém. A memória fixará uma imensa lentidão associada à queda e um barulho desconexo. Camila consegue empurrar o carro de Chilinha para longe, mantém-se no banco com as outras duas netas. Belinha insistia em pular, Camila mantinha-a agarrada pelo pulso. Juntaram-se algumas pessoas. «Conseguiram agarrar-me debaixo dos braços. Entendi esse agarrar como se fosse um sítio de obscuridade. Tudo o resto estava sem mácula, a ilha, o mar e eu, maravilhada. Não me teria importado de ter ficado por lá perdida.» Teresinha foi puxada até estar com os pés bem assentes na terra, depois, no último minuto, Camila foi salva. Já estava pendurada no vazio. Teresinha fitou-a, aterrorizada. «O que recordo são as pessoas a olharem para um buraco e depois surgir a minha avó.» Nesse instante, em que as três já estavam a salvo, em que o susto já passara, as pessoas vociferavam e começavam a caminhar na direcção de um homem que não se tinha aproximado. Gritavam com ele, chamavam-lhe nomes, acusavam-no e, por fim, batiam-lhe. «Era um desgraçado de um judeu alemão que tinha procurado refúgio na ilha E as pessoas pensaram que era ele o culpado do que tinha acontecido. Era preciso culpar alguém e o judeu estava ali à mão. Diziam: «Ele é culpado de tudo!”»

Jorge Horta, que tinha sido prevenido do que se tinha passado, chegou esbaforido do hospital, perdido de medo – estariam a mãe bem? E as filhas? Deparou-se com as acusações e os maus-tratos e tentou impedir as pessoas de continuarem a culpar quem não poderia ter culpa. Teresinha repetiu: «Ele não teve culpa, o senhor não teve culpa.» O pai, a tentar salvar o senhor, gritava que tudo aquilo era um disparate. Era médico, as pessoas conheciam-no e respeitavam-no, rapidamente aquele tumulto terminou. De volta a casa, o evento foi relatado e repetido várias vezes. Carlota pediu pormenores, Jorge ouviu, atento. «Tive consciência, pela primeira vez, de que havia uma guerra e que as pessoas podiam ser acusadas; de que alguém tinha “a culpa da guerra”, a culpa que derivava de ter fugido da guerra.» 

Décadas mais tarde, no livro Meninas, a Teresa-escritora sítio escreverá sobre este episódio. O conto chama-se «Ondas» e é também uma homenagem a Virginia Woolf, que se suicidou no ano em que Teresinha poderia ter sido arrastada até ao mar, sem destino seguro. No conto, lê-se:

«Lembro-me da queda e também de não ter sentido nenhum desassossego, primeiro aturdida e logo sufocada de maravilhamento diante do esplendor, enquanto ela durou no sentido das ondas, comigo perfeitamente imóvel no centro da voragem. O rugido do mar a tornar-me surda para os gritos da minha avó de pé a meu lado gesticulando, e para o cada vez mais longínquo choro da minha irmã, que ficara do lado de fora do buraco lá no alto, de onde pouco a pouco nos íamos distanciando» (HORTA, Maria Teresa, Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).

A ilha que torturava Carlota era o lugar encantado de Teresinha. Nunca dirá o Faial, falará sempre da Horta, essa terra que treme. Para Teresinha, os pequenos tremores eram momentos de maravilhamento. Na sala de jantar, existia um armário de madeira com portas de vidro, um quadriculado de vidrinhos. Lá dentro, estavam as loiças mais bonitas, expostas e por usar. Na parte superior, presas por pequenos camarões de ferro, perfilavam-se as chávenas de chá Vista Alegre. Tudo aquilo tilintava sempre que havia um tremor de terra. Teresinha não sabia porquê, mas achava graça. O que é um tremor de terra? Achava a possibilidade de a terra estremecer um gesto lindo. Certa vez, adulta, a viver em Lisboa, estava ao telefone com o escritor José Cardoso Pires e deu-se um tremor de terra. O escritor fugiu para a rua, apavorado com a possibilidade de o tecto lhe cair em cima da cabeça. Teresa ficou especada com o telefone na mão, não percebeu o medo que o amigo sentiu. Mais tarde, Cardoso Pires voltou a telefonar e perguntou: «Não sentiste o tremor de terra?» Teresa respondeu-lhe que sim, acrescentando: «Mas que mal tem um tremor de terra?», Para ela era algo encantatório, fazia com que as chávenas brincassem umas com as outras.

Era impossível não viver os grandes acontecimentos da ilha. Um deles seria motivo de notícia e pelas piores razões. No dia 13 de Junho de 1942, nas oficinas da Fayal Coal, junto ao Largo Doutor Manuel de Arriaga, ocorreu uma explosão violenta que se fez sentir em toda a Horta. Destruiu o edifício da Fayal Coal e alguma envolvente. O barulho foi tremendo, Carlota assomou à janela, Teresinha alcançou a cadeira mais próxima, trepou e foi ver o que acontecera lá fora. Queria saber a razão do barulho. Quando chegou ao parapeito, uma parte da ilha parecia ter desaparecido, só se via fumo. Numa janela, ao lado daquela onde estava, viu um dedo de um homem com um anel, um dedo que resultava da explosão. «Nunca mais me esqueci disto. Foi misterioso, porque ninguém explicava nada às crianças. Morreram pessoas. Explodiram» A criança que era poderia ter sentido apenas o susto, ou a náusea de ver um membro amputado, colado ao vidro da sua casa. Mas não foi assim. Teresinha disse: «Mãe, está ali um dedo.» Viu a mãe: ela tinha os olhos fechados de uma maneira afincada. Não queria ver. E Teresinha repetiu:«Mãe, está ali um dedo.» Sentiu tudo como se fosse um filme, como se não fosse a vida real.

Era de manhã muito cedo. Jorge Horta apressou-se a ir para o hospital. A pressa foi tanta que levou vestidas as calças por cima do pijama. Teresinha não percebeu a urgência e pareceu-lhe absurda a aflição paterna. Mais tarde, soube-se que, na oficina, se procedia a uma soldagem a altas temperaturas a uma pequena bóia de ferro. Esta tinha sido encontrada há mais de vinte anos e era utilizada para amarrar pequenas embarcações. A «pequena bóia» era na verdade uma bomba, que terá chegado ali durante a Primeira Guerra Mundial.


Fernando Manuel, "Senhor dos Passos Cidade da Horta 2020", Facebook, 29-03-2020

 

FICAR COM OS ANJOS

Era então uma menina calada e envergonhada. Sentia que os desconhecidos traziam com eles o poder de um qualquer perigo. Importava-lhe a mãe, a avó, o pai, as irmãs e pouco mais. Não precisava de alternativas, outros rostos, histórias diferentes. Tudo o resto, tudo o que poderia interferir nessa bolha familiar, quebrava o encanto e Teresinha repudiava. Mas o deslumbramento improvável foi capaz de a libertar da timidez, da fundura do seu sossego. Era o dia da Procissão do Senhor dos Passos, um domingo soalheiro. A família foi para a varanda ver passar a procissão. Teresinha observou tudo com pasmo e intensidade. Escapou da varanda, desceu as escadas e seguiu o cortejo. Era uma menina doentiamente tímida. Sem descolar os olhos do chão, manteve-se em silêncio; a procissão surgia-lhe como um apelo. «Vi anjos, meninos-anjos e meninas-anjo. Eu, tão envergonhada que era, meti-me na procissão a seguir os anjos, já apaixonada.» Jorge Horta descobre a filha a andar ao lado dos anjinhos. «A Teresinha vai ali?», perguntou incrédulo. Carlota não deu importância e terá dito: «Ah, não... talvez não seja.») Jorge correu na direcção da filha mais velha, Carlota foi no seu encalço, Camila ficou a ver tudo da varanda, tomando conta das outras duas netas. O pai aproximou-se da procissão com rapidez, pegou-lhe ao colo e afastou-se. «Tiraram-me dos anjos e eu fiquei desolada. Até hoje. Desatei a espernear e a chorar. Não queria sair daquela coisa mágica, nunca tinha visto uma procissão. Eram anjos. Eu tinha encontrado os anjos.» Não vislumbrou o andor com o Senhor dos Passos, fixou-se naquela visão improvável de anjos feitos crianças, e guardou aquela imagem de modo tão único, que afirmará que os anjos a invadiram. Na sua poesia, na ficção, os anjos são uma constante -humanizados, sexualizados, tangíveis. «Fazem parte de mim.»

«Foi nessa altura que mais do que as vi adivinhei as asas brancas, filas à minha frente, anjos de asas translucidas de verdade, quem sabe… E num arremesso, num arroubo, numa pressa ansiosa e desmedida corri num ápice, célere, esquecida de tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.» (HORTA, Maria Teresa, «A Ilha» in Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 38-44.

 



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