Lisbon Revisited
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
I - QUESTIONÁRIO
1. O
poema divide-se em cinco momentos a seguir indicados de forma aleatória.
Organize-os logicamente e indique os versos respetivos.
Recusa
da cultura moderna.
Recusa
dum certo passado mítico.
Niilismo
corrosivo.
Reafirmação
da individualidade
Recusa
dos outros.
2. Escolha
a resposta correta:
2.1. Pela
leitura do poema, pode-se dizer que o poeta
A.
recusa-se a aceitar os valores que a sociedade tenta inculcar-lhe.
B.
encontra na morte a única solução para os problemas.
C.
tenta tornar-se uma outra pessoa, para agradar a todos.
D.
sente-se solitário e, por essa razão, almeja fazer parte da companhia.
E.
aparta-se da sociedade, para desenvolver sua arte.
2.2. Os
dois últimos versos do poema revelam
A.
a conscientização do poeta em relação a seus problemas e à breve solução que
lhes dará.
B.
a irritação do poeta com aqueles que pretendem ajudá-lo em seus problemas.
C.
a vontade do poeta de poder compartilhar da paz que outras pessoas sentem.
D.
o desejo do poeta de manter-se afastado e isolado das pessoas.
E.
a inquietude gerada na alma do poeta, em virtude da sua solidão.
2.3. A
forma verbal macem, destacada no poema, significa
A.
desprezem.
B.
importunem.
C.
ofendam.
D.
maltratem.
E.
abandonem.
2.4. O
eu-lírico pretende que as pessoas distanciem-se dele. Isso, em alguns momentos,
é marcado pela forma exaltada de expressão, como se pode comprovar em
A.
"Não: não quero nada,"
B.
"A única conclusão é morrer."
C.
"Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributá-vel?"
D.
"Que mal fiz eu aos deuses todos?"
E.
"Vão para o diabo sem mim,"
2.5. A
penúltima estrofe do poema permite considerar que o eu-lírico sente
A.
uma saudade carinhosa da infância, pois em Lisboa ainda pode viver bons
momentos.
B.
uma mágoa de Lisboa, pois lá passou uma infância vazia e sem sentimentos.
C.
um medo de revisitar Lisboa, pois a cidade nunca lhe proporcionou boas
lembranças.
D.
uma mágoa de sua cidade (Lisboa), pois ela tirou-lhe todos os bons sentimentos.
E.
uma saudade melancólica da infância, pois trata-se de uma época remota e
irrecuperável.
3. Refira
a perspetiva do poeta acerca do passado, presente e futuro.
4. Identifique
quatro características modernistas presentes no poema.
Chave de correção do questionário:
1. Niilismo
corrosivo. (1-4)
Recusa
da cultura moderna. (5-16)
Recusa
dos outros. (17-27)
Recusa
dum certo passado mítico. (28-33)
2. A – D –
B – E – E (Fonte: Ufscar 2001. Disponível em: https://www.curso-objetivo.br/vestibular/resolucao-comentada/UFSCar/2001/1dia/UFSCar2001_1dia.pdf)
3. Presente:
o sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.
Passado:
sedução; infância – sedução e mito.
Futuro:
morte; abismo. Futuro próximo: estar sozinho (enquanto tarda a chegada do
Abismo).
4. Características
modernistas presentes no poema:
Liberdade de expressão.
Incorporação do quotidiano, do prosaico: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e
tributável”.
Linguagem coloquial, espontânea e mistura
dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com
termos populares).
Inovações técnicas:
- O verso livre e sem rima;
- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintáticos, preposições, conjunções,
etc. são eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais
descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Por exemplo: 3ª
estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase.
Fragmentação / pluriperspetivismo /
simultaneísmo: a unidade e diversidade pessoana de que a
intertextualidade é exemplo.
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| Monsanto, Lisboa, 01-06-2025 |
II –
COMENTÁRIO DE TEXTO
Faça um
comentário global do poema transcrito, baseando-se no plano fónico, morfossintático
e semântico da linguagem e orientando-se pelos seguintes aspetos:
·
tema;
·
estrutura lógica do discurso;
·
insatisfação corrosiva perante toda a realidade;
·
sentido de evasão;
· intertextualidade pessoana (interação dialógica
entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano);
·
características modernistas.
Tópicos
para resolução do comentário de texto:
INTRODUÇÃO
Álvaro de Campos é o heterónimo de Fernando Pessoa que melhor se integra na estética modernista.
O poema «Lisbon Revisited», versão de 1923, integra-se na 3ª fase/face de Álvaro de Campos: a intimista / pessimista.
TEMA
Conflito
realidade/poeta:
-
cansaço
existencial, náusea
-
estranheza da
realidade, solidão, isolamento
-
dissolução do Eu
ESTRUTURA LÓGICA DO DISCURSO
O
poema parte dum niilismo corrosivo (1-4)
passa
pela recusa da cultura moderna, (5-16)
dos
homens (17-27)
e
mesmo dum certo passado mítico (28-33)
e
termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35).
INSATISFAÇÃO CORROSIVA PERANTE TODA A REALIDADE
O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4)
|
O
divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso, |
Não:
não quero nada. |
passa pela recusa da cultura moderna, (5-16)
|
nos
imperativos, |
Venham,
tragam, falem, Tirem, apregoem, enfileirem... |
|
na
significação dos verbos, em que se opõe o
sentido pejorativo e de recusa da cultura moderna |
Tirem,
apregoem, enfileirem, macem, |
|
à
afirmação do Eu |
Sou,
sê, ouviram, Quero |
|
na
estrutura da frase, combinando elisão com perífrase |
por
ex. 3a. estrofe |
|
num
certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos), |
|
|
na
enumeração |
|
|
ou
ainda na interrogativa retórica; |
|
dos homens (17-27)
|
esse
divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos,
vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na
corrente do devir. |
Queriam-me
casado, fútil, quotidiano e tributável? Se eu fosse outra pessoa,
fazia-lhes a todos, a vontade Vão
para o diabo sem mim, Não
me peguem no braço! |
|
Essa
relação contundente (agressiva e ofensiva) patenteia-se na linguagem
familiar, coloquial mesmo, |
e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35).
|
terminando
enfaticamente pela reafirmação da individualidade. |
Deixem-me em paz! Não
tardo, que eu nunca tardo... E
enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! |
SENTIDO
DE EVASÃO
recusa dum certo passado mítico (28-33)
Mergulhando
em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o
demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético
verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo
que aí viveu.
INTERTEXTUALIDADE PESSOANA (Interacção dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano.):
Presente:
O sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.
Passado:
sedução; infância – sedução e mito.
Futuro:
morte.
CARACTERÍSTICAS MODERNISTAS:
Incorporação
do quotidiano, do prosaico: Queriam-me
casado, fútil, quotidiano e tributável.
Linguagem coloquial, espontânea e mistura
dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com
termos populares).
Inovações técnicas:
- O verso livre e sem rima.
- A destruição
dos nexos: os chamados nexos sintácticos, preposições, conjunções, etc. São
eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e
fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Ex.: 3ª estrofe em que na
estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase.
Fragmentação / Pluriperspectivismo / Simultaneísmo: a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo.
CONCLUSÃO:
Álvaro
de Campos caracteriza-se pela frase: «eu sinto tudo e canso-me», sendo este
poema expressão de um cansaço e esgotamento de uma vida sentida em excesso.
O poema parte dum
niilismo corrosivo até uma reafirmação da fundura ôntica da solidão, passando
pela recusa da cultura moderna, dos homens e mesmo dum certo passado mítico.
O divórcio da realidade é visível nas estruturas
negativas do discurso, nos imperativos, na significação dos verbos, na
estrutura da frase, combinando elisão com perífrase (Cf. por ex. 3a.
estrofe), num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos),
na enumeração ou ainda na interrogativa retórica; esse divórcio passa também
pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma
"felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir.
Essa relação contundente patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo,
terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.
Mergulhando em busca da Verdade no
Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização
do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é
irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.
Entre o otimismo exaltado e a depressão (real ou
fingida, como artifício estético) poderão ser citados múltiplos poemas de
Álvaro de Campos.
(in EN 1989 –
1ª fase, 1ª chamada)


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