como soberbas são as manhãs
josé – meu filho
nascido do feno e das vertigens
álamo da esperança platinada
cheira à resina da manhã;
tem gestos de oliveira brava
fala por búzios e por ventos
come os próprios versos com hortelã.
nasceu frio
como rebento de fim de inverno
e mora na concha da alvorada
sabe de gebas e de guerra
atira sortes ao ar
tem dedos de lã fiada.
surdo mudo envaidecido
josé é louco profundo de raiz
anda sem raiva a lançar sementes
nas terras do seu país.
veste basalto.
usa sapatos.
aperta ideias com o cinto.
(até costuma passar
por aqui.
os que o conhecem
sabem que não
minto).
dizem que ama
que bebe
que fuma
que é vendedor de talismãs,
mas também dizem que é tão soberbo
como soberbas são as manhãs.
José
Henrique ÁLAMO OLIVEIRA (1945-2025), Versos de todas as luas - Poesia
reunida 1967-2020. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021
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| Álamo Oliveira, por Rui Melo, 2020 |
ÁLAMO, O SEMEADOR
Aceitei com muita honra o convite que o Álamo Oliveira
me fez para dizer aqui umas palavras em jeito de comemoração do seu aniversário
de escritas. Não tanto pelo facto de nos conhecermos há muitos anos – o Álamo é
do Raminho, eu da Serreta –, e de ao longo de todo este tempo termos vindo a
cultivar uma amizade sólida, ainda que não muito frequente, mas sobretudo
porque se trata de uma personalidade que traz dentro de si a nossa ilha
Terceira. O que é muito, e muito complicado.
Na verdade, é quase impossível falar-se dos Açores, e
da Terceira em particular, sem que por alguma razão se não refira o Sr. Álamo
Oliveira, ou, mais simplesmente, «o Álamo». Porque é assim que no trato comum
se designam aquelas pessoas – como acontece com Camões, Camilo, Eça, Pessoa,
Nemésio ou Natália – que não necessitam de distintivos nem de nomes dobrados
para serem identificadas por todos. Aqui, temos «o Álamo» – simplesmente
«Álamo».
E quem é então este homem?
A condição que o identifica mais directamente é a de
um escritor com dezenas de livros publicados durante 60 anos, distribuídos por
poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica literária. Mas, para além de
escritor, Álamo também tem obra feita nas artes plásticas, que incluem
exposições individuais e ilustrações e capas de livros de outros autores, na
encenação teatral (foi o fundador do Grupo de Teatro Alpendre, o primeiro e
durante muito tempo único grupo de teatro dos Açores com produção permanente, e
seu director por muitos anos), na criação de suplementos literários e
artísticos que se constituíram em espaços de discussão e de inovação, e em
produções que se inscrevem na chamada «cultura popular», tendo escrito, que eu
saiba, inúmeros assuntos de danças e bailinhos de carnaval, bem como letras de
marchas das festas sanjoaninas.
É possível que tenha trabalhado ainda em muitas outras
áreas, que até se venha a aventurar pelos libretos de ópera – sei lá! –, mas
não há cabeça humana que se possa lembrar, assim de repente, da variedade e
quantidade de obras que este nosso Álamo nos tem vindo a legar – à maneira de
um agricultor que, pacientemente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai
lançando as suas sementes no grande solo que é a alma da nossa gente – que delas
também, avidamente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai colhendo as
novidades que a alimentam. Sem este nosso Álamo, seríamos um povo subalimentado
– e aqui faço recurso aos famosíssimos versos do poema «A Defesa do Poeta» de
Natália:
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
De entre toda esta vastíssima produção, não sei bem
qual o género ou as obras que mais prefiro – porque ele há-as para todos os
gostos. Começando pela poesia, é de salientar a beleza formal dos seus poemas,
a clareza dos seus versos e da linguagem que utiliza, as emoções e a
sensualidade que muitos deles transportam, o ritmo encantatório dos versos
frequentemente inspirado na poesia popular e, sempre constante, a manifestação
do «eu» do poeta que observa, interpreta e sente para depois exprimir –
assumindo-se como uma voz que nos interpreta e interpreta a identidade da ilha
que todos nós trazemos dentro de nós, como ele tão bem exprimiu num dos seus
primeiros livros:
ainda hoje se ouve a angústia do vento
percorrer as coordenadas do povo no mapa
(«Fábula da Ilha, Fábulas, 1974)
Ou seja, a acção do poeta que percorre a ilha e as
suas gentes, as identifica e classifica, para depois delas nos falar nos seus
poemas. Mas!, escrever é sempre um trabalho difícil, porque o poeta tem
consciência de que tem que encontrar as palavras e as imagens certas para
descrever, sem as deturpar, as realidades que observa e interpreta, sob pena de
cair na vulgaridade ou no lugar-comum. E isso cria angústias.
Mas, como poeta, tanto quando se inspira nos ritmos e
no vocabulário da poesia popular tradicional, como quando se situa num patamar
de expressão formal mais erudita, Álamo encontra, quase sempre, as palavras
certas e adequadas para nos dar as coordenadas da nossa gente e da sua identidade
cultural. E, naturalmente, dele próprio e do seu pensamento – porque, muito
frequentemente, toma posição sobre as realidades sociais, em praticamente todos
os seus livros de poesia ou de ficção, sobre as condições de vida das pessoas,
sobre a realidade política do país, e sobre o fado de ser ilhéu e as
dificuldades que isso representa na vida das pessoas. E não me refiro ao ilhéu
estereotipado – que é uma construção de intelectuais, baseada em lugares-comuns
que nada dizem ao povo de onde foram plagiados –, mas a toda uma comunidade
que, durante séculos, teve que se adaptar a um meio geográfico que tem tanto de
belo como de ingrato para a sobrevivência das pessoas e para a criação de
oportunidades para que elas possam ter uma vida decente.
É na ficção – contos e romances –, mas também nas
crónicas, que o nosso Álamo mais se tem afirmado como uma voz próxima das
pessoas de quem fala e para quem escreve.
Senhor de uma capacidade de observação e de
transfiguração pela escrita, com a frontalidade e, por vezes, a ingenuidade de
um escritor autodidacta que não foi contaminado pelas teorias académicas – que
travam e moldam a criatividade do escritor em nome de modelos artificiais que
variam consoante o tempo, os gostos e os contextos –, o nosso Álamo tem vindo a
produzir alguns livros relevantes no contexto da literatura nacional, e
incontornáveis no contexto da literatura de autores açorianos. Cabe aqui dizer
quanto me é grato constatar que uma pequena editora açoriana, a «Companhia das
Ilhas» (das Lajes do Pico), está a republicar a obra completa de Álamo
Oliveira.
Ao mesmo tempo que Álamo foi, digamos, abandonando a
poesia para se dedicar mais à ficção, vamos acompanhando a saída dos seus
livros com uma impressionante regularidade – nos quais encontramos personagens
muito bem construídas, porque autênticas, na medida em que são claramente, e
sem que o autor recorra a subterfúgios ou dissimulações, inspiradas na sua
própria história pessoal e nas suas experiências de vida.
Livros como «Burra Preta com uma Lágrima» (1982), «Até
Hoje. Memórias de Cão» (1986), «Contos com Desconto» (1991), «Pátio
d’Alfândega, Meia Noite» (1992), «Com Perfume e com Veneno» (1997), «Já não
Gosto de Chocolates» (1999), «Murmúrios com vinho de Missa» (2013), «Marta de
Jesus. A Verdadeira» (2014), «Contos d’América» (2020) ou «O Sábio da Miragaia»
(2021) ficarão para a história como documentos autênticos de uma realidade
cultural e social por onde passa a pobreza, o isolamento, o pequeno drama pessoal
e familiar, a falta de oportunidades, a emigração e os consequentes
desenraizamentos e depois aculturações, o conformismo atávico mas também a
coragem para cortar com os condicionamentos geográficos (a emigração) e sociais
(em temas como a sexualidade, por exemplo), a sensualidade natural, o
vocabulário e os modos de produzir populares e tradicionais, a religiosidade e
a sua subversão instintiva, o diz-que-disse tão próprio de meios pequenos e
isolados em que toda a gente se conhece – enfim, uma realidade que nem a
sociologia, nem a antropologia nem a história, isoladamente, algum dia
conseguiriam descrever. Porque a realidade de uma ilha é todo um universo, uma
espécie de microcosmos, onde ocorre de tudo o que é próprio do humano, mas em
que nada pode ser entendido se não em articulação com tudo o resto – e essa
realidade e essa articulação são-nos transmitidas, naturalmente na sua
perspectiva e com a sua ideologia pessoais, mas sempre de um modo global e
holístico, por Álamo Oliveira nos seus livros.
Poderemos, aqui e ali, achar que provavelmente a
solução técnica ou artística por ele encontrada não terá sido a melhor, ou que
não é como cada um de nós acha que deveria ter sido, mas acabamos por concordar
que é uma solução possível, que a obra está feita e disponível, e que nos
últimos tempos ninguém conseguiu fazer melhor.
De facto, no que diz respeito à vivência açoriana, e
da Terceira em particular, será necessário recuar até Nemésio, e de um modo
particular aos seus romances «Varanda de Pilatos» (1927) e «Mau Tempo no Canal»
(1944), à novela «Negócio de Pomba» (1937), ou ao roteiro afectivo que é
«Corsário das Ilhas» (1956), para encontrarmos um registo da nossa realidade
tão exaustivo como aquele que Álamo Oliveira nos dá nos seus livros. E isso é
obra! São autores e obras diferentes?, pois são; situam-se em patamares
diferentes?, talvez: mas a isso apenas o tempo dará resposta. E o tempo em que
vivemos é ainda o tempo em que Álamo Oliveira está a construir a sua obra.
Aquele que será talvez um dos seus livros mais
importantes e mais conseguidos literariamente é «Até Hoje. Memórias de Cão»
(1986): um romance poético e nostálgico, que aborda dois temas principais e
coincidentes no tempo e no espaço: a guerra colonial (neste caso, na Guiné),
que é o cenário e o contexto, e a relação amorosa entre dois soldados, que é o
assunto e a acção. O tema da guerra colonial tem sido, paradoxalmente, muito
pouco tratado na literatura portuguesa, salvo excepções como Carlos Vaz Ferraz
(«Nó Cego»), António Lobo Antubes («Os Cus de Judas») – e os nossos João de
Melo («A Memória de Ver Matar e Morrer»), Martins Garcia («Lugar de Massacre»)
e Cristóvão de Aguiar («Braço Tatuado»); porém, neste livro, Álamo não retrata
a guerra por meio de descrições e relatos de cenas militares, mas antes os
comportamentos e emoções, mais o ambiente em que vivem, das personagens que são
os soldados convocados – e que, mais do que estarem na guerra, o que estão é
fora das suas referências culturais, ou seja, das suas zonas de conforto. Desenraizados
em busca de raízes. Por outro lado, a relação amorosa entre os dois soldados
que são os protagonistas da história é tratada com muita naturalidade e
elegância, sem clichés nem lugares-comuns, e sobretudo sem folclorismos, de
modo que aquilo que ressalta da história não é a homossexualidade das
personagens (que é um acidente: eles eram eles e estavam ali, o que nos faz
recordar a justificação que Michel de Montaigne, contemporâneo de Camões, deu
para explicar a sua relação com Étienne de La Boétie: «porque era ele, porque
era eu»…), mas a relação amorosa em si, vivida num contexto de solidão e de
desadequação. Este será, muito provavelmente, um romance importante na
literatura portuguesa do último quartel do século XX.
Mais recentemente, Álamo deu-nos um novo romance, em
que uma vez mais se revela um escritor inovador na técnica de narração e que
tem por título «O Sábio da Miragaia» (2021). Livro de memórias também, nele
encontramos uma personagem enigmática, que é um homem já idoso que vai
relatando a um jovem, em ambiente de conversa informal (com umas cervejas pelo
meio), um conjunto de acontecimentos vividos por personagens castiças da nossa
ilha e da nossa cidade, nas quais qualquer um de nós identifica tipos humanos,
mas também coisas e lugares, que todos nós conhecemos. Neste sentido, este
romance dá-nos um verdadeiro friso de personagens tipificadas que representam a
vida de Angra do Heroísmo (que nunca é nomeada directamente) durante várias
décadas, mesmo antes do 25 de Abril de 1974 – até aos actuais tempos de
pandemia em que o próprio livro foi escrito. A íngreme rua da Miragaia,
metonímia da ilha e da cidade, em cujas cercanias funcionavam instituições como
a PIDE ou o Seminário, mas também o pequeno comércio, a prostituição, a
crendice, o mexerico ou a má-língua, é uma espécie de palco por onde desfilam
personagens portadoras de histórias pessoais que giram entre a comédia e o
drama, entre a variedade e o crime, entre os bons comportamentos e os maus
costumes, enfim, entre as representações que fazemos de nós próprios e os
juízos que os outros fazem de nós. Como acontece nos nossos bailinhos de
carnaval.
Sessenta anos de escrita podem ser muito tempo na vida
de uma pessoa qualquer, e de um escritor em particular. No caso de Álamo
Oliveira, esse tempo traduz-se numa impressionante quantidade de livros
publicados e uma apreciável actividade de intervenção social e cultural, uma e
outra felizmente reconhecidas pelas pessoas e instituições que têm a obrigação
de valorizar os seus melhores – como acontece com a presente homenagem. E,
nesse aspecto, Álamo Oliveira pode considerar-se um felizardo: poucos serão os
escritores ou artistas que foram assim tão reconhecidos e valorizados em vida.
Justamente.
Esse reconhecimento, mas sobretudo a obra que o justifica,
são, no fim de contas, o resultado e a matéria de uma enorme pujança criativa –
o que nos leva à certeza de que ainda teremos Álamo por muitos mais anos:
tenhamos nós vida, saúde e arcaboiço para, entretanto, o irmos acompanhando…
Haja saúde, ó Álamo!
Luiz Fagundes Duarte. Texto da conferência, a pedido do autor, para a cerimónia
de comemoração dos seus 60 anos de escrita. Centro Cultural e de Congressos de
Angra do Heroísmo, 20-06-2021. Disponibilizado por Luiz Fagundes Duarte na sua página do Facebook, em 06-07-2025


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