domingo, 6 de julho de 2025

como soberbas são as manhãs, Álamo Oliveira



 como soberbas são as manhãs


josé – meu filho
nascido do feno e das vertigens
álamo da esperança platinada
cheira à resina da manhã;
tem gestos de oliveira brava
fala por búzios e por ventos
come os próprios versos com hortelã.

nasceu frio
como rebento de fim de inverno
e mora na concha da alvorada
sabe de gebas e de guerra
atira sortes ao ar
tem dedos de lã fiada.

surdo      mudo      envaidecido
josé é louco      profundo de raiz
anda      sem raiva      a lançar sementes
nas terras do seu país.

veste basalto.
usa sapatos.
aperta ideias com o cinto.
                     (até costuma passar por aqui.
                     os que o conhecem
                     sabem que não minto).

dizem que ama
                   que bebe
                           que fuma
que é vendedor de talismãs,
mas também dizem que é tão soberbo
como soberbas são as manhãs.

 

José Henrique ÁLAMO OLIVEIRA (1945-2025), Versos de todas as luas - Poesia reunida 1967-2020. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021

 

Álamo Oliveira, por Rui Melo, 2020

 

ÁLAMO, O SEMEADOR

Aceitei com muita honra o convite que o Álamo Oliveira me fez para dizer aqui umas palavras em jeito de comemoração do seu aniversário de escritas. Não tanto pelo facto de nos conhecermos há muitos anos – o Álamo é do Raminho, eu da Serreta –, e de ao longo de todo este tempo termos vindo a cultivar uma amizade sólida, ainda que não muito frequente, mas sobretudo porque se trata de uma personalidade que traz dentro de si a nossa ilha Terceira. O que é muito, e muito complicado.

Na verdade, é quase impossível falar-se dos Açores, e da Terceira em particular, sem que por alguma razão se não refira o Sr. Álamo Oliveira, ou, mais simplesmente, «o Álamo». Porque é assim que no trato comum se designam aquelas pessoas – como acontece com Camões, Camilo, Eça, Pessoa, Nemésio ou Natália – que não necessitam de distintivos nem de nomes dobrados para serem identificadas por todos. Aqui, temos «o Álamo» – simplesmente «Álamo».

E quem é então este homem?

A condição que o identifica mais directamente é a de um escritor com dezenas de livros publicados durante 60 anos, distribuídos por poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica literária. Mas, para além de escritor, Álamo também tem obra feita nas artes plásticas, que incluem exposições individuais e ilustrações e capas de livros de outros autores, na encenação teatral (foi o fundador do Grupo de Teatro Alpendre, o primeiro e durante muito tempo único grupo de teatro dos Açores com produção permanente, e seu director por muitos anos), na criação de suplementos literários e artísticos que se constituíram em espaços de discussão e de inovação, e em produções que se inscrevem na chamada «cultura popular», tendo escrito, que eu saiba, inúmeros assuntos de danças e bailinhos de carnaval, bem como letras de marchas das festas sanjoaninas.

É possível que tenha trabalhado ainda em muitas outras áreas, que até se venha a aventurar pelos libretos de ópera – sei lá! –, mas não há cabeça humana que se possa lembrar, assim de repente, da variedade e quantidade de obras que este nosso Álamo nos tem vindo a legar – à maneira de um agricultor que, pacientemente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai lançando as suas sementes no grande solo que é a alma da nossa gente – que delas também, avidamente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai colhendo as novidades que a alimentam. Sem este nosso Álamo, seríamos um povo subalimentado – e aqui faço recurso aos famosíssimos versos do poema «A Defesa do Poeta» de Natália:

Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.

De entre toda esta vastíssima produção, não sei bem qual o género ou as obras que mais prefiro – porque ele há-as para todos os gostos. Começando pela poesia, é de salientar a beleza formal dos seus poemas, a clareza dos seus versos e da linguagem que utiliza, as emoções e a sensualidade que muitos deles transportam, o ritmo encantatório dos versos frequentemente inspirado na poesia popular e, sempre constante, a manifestação do «eu» do poeta que observa, interpreta e sente para depois exprimir – assumindo-se como uma voz que nos interpreta e interpreta a identidade da ilha que todos nós trazemos dentro de nós, como ele tão bem exprimiu num dos seus primeiros livros:

ainda hoje se ouve a angústia do vento

percorrer as coordenadas do povo no mapa

(«Fábula da Ilha, Fábulas, 1974)

Ou seja, a acção do poeta que percorre a ilha e as suas gentes, as identifica e classifica, para depois delas nos falar nos seus poemas. Mas!, escrever é sempre um trabalho difícil, porque o poeta tem consciência de que tem que encontrar as palavras e as imagens certas para descrever, sem as deturpar, as realidades que observa e interpreta, sob pena de cair na vulgaridade ou no lugar-comum. E isso cria angústias.

Mas, como poeta, tanto quando se inspira nos ritmos e no vocabulário da poesia popular tradicional, como quando se situa num patamar de expressão formal mais erudita, Álamo encontra, quase sempre, as palavras certas e adequadas para nos dar as coordenadas da nossa gente e da sua identidade cultural. E, naturalmente, dele próprio e do seu pensamento – porque, muito frequentemente, toma posição sobre as realidades sociais, em praticamente todos os seus livros de poesia ou de ficção, sobre as condições de vida das pessoas, sobre a realidade política do país, e sobre o fado de ser ilhéu e as dificuldades que isso representa na vida das pessoas. E não me refiro ao ilhéu estereotipado – que é uma construção de intelectuais, baseada em lugares-comuns que nada dizem ao povo de onde foram plagiados –, mas a toda uma comunidade que, durante séculos, teve que se adaptar a um meio geográfico que tem tanto de belo como de ingrato para a sobrevivência das pessoas e para a criação de oportunidades para que elas possam ter uma vida decente.

É na ficção – contos e romances –, mas também nas crónicas, que o nosso Álamo mais se tem afirmado como uma voz próxima das pessoas de quem fala e para quem escreve.

Senhor de uma capacidade de observação e de transfiguração pela escrita, com a frontalidade e, por vezes, a ingenuidade de um escritor autodidacta que não foi contaminado pelas teorias académicas – que travam e moldam a criatividade do escritor em nome de modelos artificiais que variam consoante o tempo, os gostos e os contextos –, o nosso Álamo tem vindo a produzir alguns livros relevantes no contexto da literatura nacional, e incontornáveis no contexto da literatura de autores açorianos. Cabe aqui dizer quanto me é grato constatar que uma pequena editora açoriana, a «Companhia das Ilhas» (das Lajes do Pico), está a republicar a obra completa de Álamo Oliveira.

Ao mesmo tempo que Álamo foi, digamos, abandonando a poesia para se dedicar mais à ficção, vamos acompanhando a saída dos seus livros com uma impressionante regularidade – nos quais encontramos personagens muito bem construídas, porque autênticas, na medida em que são claramente, e sem que o autor recorra a subterfúgios ou dissimulações, inspiradas na sua própria história pessoal e nas suas experiências de vida.

Livros como «Burra Preta com uma Lágrima» (1982), «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986), «Contos com Desconto» (1991), «Pátio d’Alfândega, Meia Noite» (1992), «Com Perfume e com Veneno» (1997), «Já não Gosto de Chocolates» (1999), «Murmúrios com vinho de Missa» (2013), «Marta de Jesus. A Verdadeira» (2014), «Contos d’América» (2020) ou «O Sábio da Miragaia» (2021) ficarão para a história como documentos autênticos de uma realidade cultural e social por onde passa a pobreza, o isolamento, o pequeno drama pessoal e familiar, a falta de oportunidades, a emigração e os consequentes desenraizamentos e depois aculturações, o conformismo atávico mas também a coragem para cortar com os condicionamentos geográficos (a emigração) e sociais (em temas como a sexualidade, por exemplo), a sensualidade natural, o vocabulário e os modos de produzir populares e tradicionais, a religiosidade e a sua subversão instintiva, o diz-que-disse tão próprio de meios pequenos e isolados em que toda a gente se conhece – enfim, uma realidade que nem a sociologia, nem a antropologia nem a história, isoladamente, algum dia conseguiriam descrever. Porque a realidade de uma ilha é todo um universo, uma espécie de microcosmos, onde ocorre de tudo o que é próprio do humano, mas em que nada pode ser entendido se não em articulação com tudo o resto – e essa realidade e essa articulação são-nos transmitidas, naturalmente na sua perspectiva e com a sua ideologia pessoais, mas sempre de um modo global e holístico, por Álamo Oliveira nos seus livros.

Poderemos, aqui e ali, achar que provavelmente a solução técnica ou artística por ele encontrada não terá sido a melhor, ou que não é como cada um de nós acha que deveria ter sido, mas acabamos por concordar que é uma solução possível, que a obra está feita e disponível, e que nos últimos tempos ninguém conseguiu fazer melhor.

De facto, no que diz respeito à vivência açoriana, e da Terceira em particular, será necessário recuar até Nemésio, e de um modo particular aos seus romances «Varanda de Pilatos» (1927) e «Mau Tempo no Canal» (1944), à novela «Negócio de Pomba» (1937), ou ao roteiro afectivo que é «Corsário das Ilhas» (1956), para encontrarmos um registo da nossa realidade tão exaustivo como aquele que Álamo Oliveira nos dá nos seus livros. E isso é obra! São autores e obras diferentes?, pois são; situam-se em patamares diferentes?, talvez: mas a isso apenas o tempo dará resposta. E o tempo em que vivemos é ainda o tempo em que Álamo Oliveira está a construir a sua obra.

Aquele que será talvez um dos seus livros mais importantes e mais conseguidos literariamente é «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986): um romance poético e nostálgico, que aborda dois temas principais e coincidentes no tempo e no espaço: a guerra colonial (neste caso, na Guiné), que é o cenário e o contexto, e a relação amorosa entre dois soldados, que é o assunto e a acção. O tema da guerra colonial tem sido, paradoxalmente, muito pouco tratado na literatura portuguesa, salvo excepções como Carlos Vaz Ferraz («Nó Cego»), António Lobo Antubes («Os Cus de Judas») – e os nossos João de Melo («A Memória de Ver Matar e Morrer»), Martins Garcia («Lugar de Massacre») e Cristóvão de Aguiar («Braço Tatuado»); porém, neste livro, Álamo não retrata a guerra por meio de descrições e relatos de cenas militares, mas antes os comportamentos e emoções, mais o ambiente em que vivem, das personagens que são os soldados convocados – e que, mais do que estarem na guerra, o que estão é fora das suas referências culturais, ou seja, das suas zonas de conforto. Desenraizados em busca de raízes. Por outro lado, a relação amorosa entre os dois soldados que são os protagonistas da história é tratada com muita naturalidade e elegância, sem clichés nem lugares-comuns, e sobretudo sem folclorismos, de modo que aquilo que ressalta da história não é a homossexualidade das personagens (que é um acidente: eles eram eles e estavam ali, o que nos faz recordar a justificação que Michel de Montaigne, contemporâneo de Camões, deu para explicar a sua relação com Étienne de La Boétie: «porque era ele, porque era eu»…), mas a relação amorosa em si, vivida num contexto de solidão e de desadequação. Este será, muito provavelmente, um romance importante na literatura portuguesa do último quartel do século XX.

Mais recentemente, Álamo deu-nos um novo romance, em que uma vez mais se revela um escritor inovador na técnica de narração e que tem por título «O Sábio da Miragaia» (2021). Livro de memórias também, nele encontramos uma personagem enigmática, que é um homem já idoso que vai relatando a um jovem, em ambiente de conversa informal (com umas cervejas pelo meio), um conjunto de acontecimentos vividos por personagens castiças da nossa ilha e da nossa cidade, nas quais qualquer um de nós identifica tipos humanos, mas também coisas e lugares, que todos nós conhecemos. Neste sentido, este romance dá-nos um verdadeiro friso de personagens tipificadas que representam a vida de Angra do Heroísmo (que nunca é nomeada directamente) durante várias décadas, mesmo antes do 25 de Abril de 1974 – até aos actuais tempos de pandemia em que o próprio livro foi escrito. A íngreme rua da Miragaia, metonímia da ilha e da cidade, em cujas cercanias funcionavam instituições como a PIDE ou o Seminário, mas também o pequeno comércio, a prostituição, a crendice, o mexerico ou a má-língua, é uma espécie de palco por onde desfilam personagens portadoras de histórias pessoais que giram entre a comédia e o drama, entre a variedade e o crime, entre os bons comportamentos e os maus costumes, enfim, entre as representações que fazemos de nós próprios e os juízos que os outros fazem de nós. Como acontece nos nossos bailinhos de carnaval.

Sessenta anos de escrita podem ser muito tempo na vida de uma pessoa qualquer, e de um escritor em particular. No caso de Álamo Oliveira, esse tempo traduz-se numa impressionante quantidade de livros publicados e uma apreciável actividade de intervenção social e cultural, uma e outra felizmente reconhecidas pelas pessoas e instituições que têm a obrigação de valorizar os seus melhores – como acontece com a presente homenagem. E, nesse aspecto, Álamo Oliveira pode considerar-se um felizardo: poucos serão os escritores ou artistas que foram assim tão reconhecidos e valorizados em vida. Justamente.

Esse reconhecimento, mas sobretudo a obra que o justifica, são, no fim de contas, o resultado e a matéria de uma enorme pujança criativa – o que nos leva à certeza de que ainda teremos Álamo por muitos mais anos: tenhamos nós vida, saúde e arcaboiço para, entretanto, o irmos acompanhando…

Haja saúde, ó Álamo!

 

Luiz Fagundes Duarte. Texto da conferência, a pedido do autor, para a cerimónia de comemoração dos seus 60 anos de escrita. Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, 20-06-2021. Disponibilizado por Luiz Fagundes Duarte na sua página do Facebook, em 06-07-2025

 





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