sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Natália Correia à partida de São Miguel

 


MANHÃ CINZENTA
À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais…
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro – era de espuma fria –
levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta – mais nenhuma:
na Ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...

 

in Portugal, Madeira e Açores,
Abril de 1946

 

Natália Correia, “Inéditos, 1941/47” in O Sol das Noites e o Luar nos Dias I. Lisboa, Círculo de Leitores, março de 1993, p. 11




A Ilha: ponto de partida

 

O laço de pertença que une Natália à Ilha é naturalmente emocional e psicológico, porque a partida se efetiva na realidade, despertando um sentimento de perda material. Mas a poesia permite recuperar a Ilha como se fosse “um objeto imaculado pela distância, a nata de uma criança infinitamente chamada pelas ondas a esvaziar-se pela boca cantante com que assombramos as vírgulas adultas dos lugares que habitamos.” (Correia 1993a: 422) Assim se pontua o momento da partida numa “Manhã Cinzenta”, porque se impõe a mudança exigida pela fase adulta da vida […].

A despedida reveste-se da tristeza que é normal sentir-se quando se deixa a “Ilha que o passado envolve em bruma.” É da terra dos seus pais – “ninfa e pai chuva de lava” – que o sujeito poético parte para cruzar “o mar em direções diferentes”, como se doravante a ínsula se afastasse da vida da poetisa. Este afastamento, porém, é materializado no momento da partida, uma vez que a poesia permite a Natália apenas uma “longa viagem que não finda, / só uma estrada resta – mais nenhuma”: a lembrança do adeus acenado por um lenço branco.

Por isso é que, no III dos “7 Poemas da Morte e da Sobrevivência”, Natália esclarece que o retorno à Ilha não deve fazer-se de um qualquer modo, há que revestir o colorido da flor para imprimir outra tonalidade à palidez da despedida naquela “Manhã Cinzenta”. Se um lenço branco acenou à sua partida, que a florescência em cor a saúde aquando do regresso:

Não regressarei à terra
como uma folha que cai.
Condição de ser a hera
que no meu tronco se enlaça
sou a nascente da água
que me leva quando passa.

Não sou poeira que o vento
arrasta até encontrar
a florescência da flor.
Origem morte existência
sou a própria florescência
incontinente na flor.

(Correia 1993a: 117)

 

Mas o regresso não se faz tão cedo. O lugar de onde parte permanece-/-lhe na memória e é evocado com saudade quando, numa circunstância específica da sua vida, Natália pensa que pode vislumbrar, ao longe, a Ilha que lhe serviu de berço e da qual se despediu tristemente numa manhã sem sol. Na obra Descobri que Era Europeia. Impressões duma viagem à América3, a poetisa descreve a jornada que faz aos Estados Unidos da América. Quando, em 1950, sobrevoa o Atlântico rumo à terra da fartura, a escala técnica na ilha vizinha de Santa Maria leva Natália Correia a registar em prosa aquilo que em poesia é canto de saudade:

Estamos a vinte e sete milhas náuticas de Santa Maria. A partir daqui, a viagem começa a revestir um significado sentimental. Pela primeira vez, após quinze anos, vou aproximar-me da terra onde nasci. Ficarei durante uma hora a sessenta milhas de distância da minha ilha: São Miguel.

Vou parar em Santa Maria, onde nunca estive, mas que conheço como uma ténue linha de horizonte dos dias claros. Quantas vezes, debruçada na balaustrada do Aterro, vendo a ilha distante, aberta como uma flora na bruma do mar, eu pensava se aquela não seria a ilha misteriosa sepultada no oceano que a velha Maria da Estrela dizia aparecer de quando em quando aos olhos fadados para a ver: […] (Correia 1993a: 422).

A paragem na pequena ilha de Santa Maria assume uma dupla função: por um lado, não será mais do que um lugar de passagem na rota para outro mundo, mesmo ao lado do ponto de partida de há década e meia de anos e, por outro, torna-se numa espécie de janela a partir da qual Natália tenta perscrutar a sua Ilha, espaço agora preservado na memória, ao qual a poetisa acede através da recordação e do sonho.

 

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[3] Esta narrativa de Natália Correia é um documento importante para a compreensão do fenómeno da “açorianidade”. Aí se desenvolve, com bastante acuidade, a conclusão a que chegam, por exemplo, Rosa & Trigo 1987:199: “Entre a insularidade e o sonho realizado, ou não, da distância das “Califórnias da abundância”, constrói-se cada vez com mais fervor a açorianidade – essa maneira que o açoriano tem de afirmar a sua especificidade de ser português, sendo ao mesmo tempo um cidadão de errância em trânsito permanente, espiritual ou físico, para sua mátria: Açores.”

 

Rui Faria, “Figurações da Ilha na poesia de Natália Correia: da expressão da açorianidade à busca da universalidade” in Limite. ISSN: 1888-4067, nº 16, 2022, pp. 149-163

 


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