Mostrar mensagens com a etiqueta Escrita Criativa / Recreativa / Lúdica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Escrita Criativa / Recreativa / Lúdica. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 23 de abril de 2020

SLAM E POESIA

O poetry slam é um fenómeno de escala global e de inscrição local que se alarga numa estrutura essencialmente horizontal na qual as comunidades têm a função de organizar, dinamizar e mobilizar as pessoas. É um fenómeno que, no contexto da performance e da poesia, permite o exercício identitário da própria comunidade e do slammer e, talvez, o exercício cívico de contestação. (Liliana Vasques)




O poetry slam pode ser descrito como um evento dedicado à leitura-performance de poesia que obedece a um formato de competição entre poetas-slammers. Teve o seu início nos E.U.A. e acontece, geralmente, em bares e associações ou cooperativas com vertente cultural. À exceção de eventos nacionais e internacionais, o poetry slam é criado e dinamizado a nível local, nas cidades, e é comum o nome da cidade designar o Poetry Slam que aí se organiza – Boston Poetry Slam, Poetry Slam Mainz, Poetry Slam Barcelona, Poetry Slam Coimbra. Em cada cidade é organizado com uma regularidade (semanal, mensal, etc.) variável, num espaço que acolhe organizadores e participantes todas as semanas, todos os meses.
Para que um poetry slam se realize tem que existir um local que o acolha, tem que se conjugar a presença de apresentador(a)/host, slammers, público e júri e utilizar o formato de competição. A competição só é possível com um número mínimo de slammers (3) e de membros do júri (normalmente um número ímpar, 3 ou 5). Durante a semana ou mês anterior, os slammers fazem a sua inscrição através das redes sociais podendo, também, fazê-lo no próprio evento desde que o n.º de inscritos assim o permita. Os bares e associações conjugam o poetry slam na programação daquela noite e, por essa razão, o n.º de slammers ultrapassa, na maioria dos casos, os 10/12 e evento em si tem uma duração média de 90/120 minutos. Em termos gerais, a competição organiza-se desta forma:
- cada slammer deve preparar 3 textos da sua autoria
- dependendo do n.º de inscritos, podem ser feitas 2 ou 3 rondas
- o apresentador identifica os participantes, constitui o júri que será composto por pessoas do público que se voluntariam para o efeito e que não são amigas e/ou conhecidas dos slammers e explica as regras da competição
. para cada ronda é sorteada a ordem de participação
. cada slammer tem um limite de tempo para a leitura/performance do texto de 3 minutos e não pode utilizar adereços para o efeito
- o júri vota cada performance numa escala de 0 a 10, com utilização de casas decimais
- no final de cada ronda o/a apresentador/a divulga o resultado das votações do júri (para cada performance é feita uma média, excluindo as pontuações mais alta e mais baixa) e anuncia os slammers apurados para a ronda seguinte
- o/a slammer vencedor recebe um prémio simbólico oferecido pelo bar ou resultante de patrocínios conseguidos pelos organizadores do Poetry Slam.
Qualquer pessoa se pode inscrever nesta competição e não existe seleção de participantes, à exceção da ordem de inscrição quando há um nº muito elevado de inscritos. Cada slammer deve preparar 3 textos para a 1ª ronda, meia-final e final. “3,2,1 SLAM!” é o mote dado pelo host para o início de cada performance e para a contagem do tempo.
As orientações gerais da competição são, geralmente, adaptadas pelas organizações, que introduzem alterações relacionadas com o contexto específico do seu Poetry Slam. Marc Smith (2009: 10) refere que “cada Poetry Slam e apresentador são autónomos e livres de tomar as suas decisões” sendo que a grande maioria “adere aos princípios estabelecidos por escolha própria, não porque são compelidos por uma autoridade superior”. Na coexistência de particularidades e adaptações, observamos, também, a circulação de informação e recursos, de slammers e de público entre as organizações e os eventos de poetry slam. Algo comum e transversal é o facto de os organizadores estarem previamente envolvidos na/com a poesia e serem poetas e slammers noutros eventos. Muitos começaram a organizar Poetry Slams depois de terem participado num. Depois do primeiro Poetry Slam em Chicago, foi assim que chegou a Nova Iorque com Bob Holman e a Boston com Patricia Smith.
No decorrer de um poetry slam, a participação e intervenção são fundamentais. Para além da ação dos/das slammers, o/a host/apresentador(a), as pessoas do júri e o público determinam o desenrolar do evento. Se quisermos descrever um slam no qual participámos, vamos certamente falar da reação do público, do “jeito” do/da apresentador/a, das pontuações que o júri atribuiu. O/A apresentador orienta o decorrer do slam, garante que todos/as os/as slammers participam pela ordem sorteada, que o júri se constitui e que todas as pontuações são efetuadas e registadas. Contudo, ele/ela também dá o ‘tom’ e o ‘ritmo’ ao slam. Quando apresenta os slammers, e interpela público e júri, fá-lo com uma forma e estilo próprio que cabem na informalidade e desinstitucionalização que este formato reclama para a poesia. Ele ou ela faz parte da identidade ‘daquele’ slam. No mesmo sentido, júri e público são incentivados à reação e à intervenção. Pelo host, que pede a reação tanto à performance como à pontuação. Pelo slammer, que mobiliza estratégias do teatro, da música, da performance: call and response, beatbox, pedido ao público para fazer sons ou dizer palavras, etc. Ao contrário de outros eventos de poesia, o poetry slam é barulhento, caótico e enérgico. A separação entre slammer e público diluise e este coloca-se perante uma audiência que dialoga com ele e que participa na própria performance.
Com a criação de mais eventos e o reforço de redes mais ou menos organizadas, a par do âmbito local, foram surgindo competições nacionais e internacionais organizadas por Associações, Ligas e Fundações, em diferentes países (Inglaterra, França, Alemanha, etc.). Refiram-se, por exemplo, a PSI (Poetry Slam Inc.), a Hammer & Tongue, a Ligue Slam de France. A Poetry Slam Inc. é uma organização sem fins lucrativos criada em 1997, sediada no Illinois (E.U.A.), que é responsável pela certificação de Poetry Slams do país e, segundo a própria, de qualquer país do Mundo. Os eventos certificados pela PSI seguem regras estabelecidas pelo Conselho Executivo que resumem a visão dos fundadores do poetry slam. Para além disso, a PSI toma como funções a criação e reforço da comunidade de poetas, o crescimento do poetry slam, a promoção da educação e da criatividade. Da mesma forma, a Hammer & Tongue, criada em 2003 por Steve Larkin, organiza eventos regulares em várias cidades de Inglaterra que culminam numa final anual. A grande maioria dos países onde se dinamiza o poetry slam tem um encontro anual de competição entre slammers de eventos locais em território nacional. Outras associações têm promovido competições de poetry slam europeias e internacionais, através da rede criada com as organizações de diferentes países. O circuito de participantes neste tipo de competição acontece, usualmente, desta forma: em cada país é realizado um evento nacional de poetry slam em que participam slammers apurados em eventos locais de diferentes cidades, os slammers que ganham os eventos nacionais “representam”, depois, o seu país numa competição europeia ou internacional organizada por uma associação e/ou organização de poetry slam no país de acolhimento. Em França, encontramos 3 organizações de competições publicamente divulgadas como europeias: a Ligue Slam de France (constituída em 2009) promove o poetry slam no território francês e organiza a Coupe de La Ligue Slam de France (http://coupe.ligueslamdefrance.fr/) ; a Federation Française de Slam Poésie (FFDSP) organiza, desde 2006, a Coupe du Monde de Slam Poésie (grandslam2015.com); a associação Slam Tribu organiza o Reims Slam D’Europe (http://www.slamtribu.com/slam-d-europe/).
O poetry slam tem uma natureza local. Uma competição nacional ou internacional acontece porque antes se cria uma rede de competições em diferentes cidades, locais ou regiões. Isso traduz-se numa variação que atravessa as dimensões local, nacional e internacional. Significa, também, que falamos de Poetry Slams com identidades múltiplas, com particularidades e características próprias – “em vez de ser um género homogéneo, o slam assume formas distintas em cada novo contexto para o qual é levado, à medida que é reconstruído em linha com estilos, tradições, convenções e questões locais (Gregory, 2009: 32). Mais, em cada Poetry Slam local confluem vários estilos de escrita e de performance, diferentes gostos e critérios de escolha e valoração de um texto, de um poema, de uma performance:
«O conteúdo do poetry slam é tão diverso quanto os poetas que atuam [e quanto o(s) público(s) que ouvem, veem, avaliam], deixando-nos frequentemente com uma imagem instantânea de um tempo, um sítio, uma cultura particulares» (Wiesenhofer, 2008: 1).
 Muitas organizações continuam a conjugar a competição com o microfone aberto – momento que acontece antes ou depois da competição entre slammers e que se caracteriza pela partilha livre de poemas e pela ausência de regras e condições. Outra variação relativa ao formato é o anti-slam que convida à inversão das regras do poetry slam: as performances devem exceder os 3 minutos, o slammer pode usar adereços e deve tentar fazer a pior performance que conseguir - ganha quem tiver a pontuação mais baixa. O regulamento do poetry slam, mantendo características nucleares, é também adaptado, por exemplo, na forma de calcular a pontuação2 de cada performance e na escolha dos jurados. Para além disso, quando analisamos a atividade de Slams locais durante o ano verificamos a presença frequente de convidados que, na sua grande maioria, são elementos ‘fortes’ da comunidade (poetas, slammers de outros Poetry Slams do mesmo país ou de outros países) ou que, de alguma forma, cruzam o seu trabalho com a poesia e com o poetry slam. Identificamos, também, a realização de slams temáticos (gothic slam, drama slam, etc.), de slams que exploram problemas da sociedade (violência, racismo, política, etc.), outros que se concentram, até, em meios diferentes da voz e da oralidade – como é o caso do vídeo slam/film slam – para trabalhar o poema, as palavras em conjugação com a imagem e o movimento.
_____________
2 Esta pontuação está definida como o “Dewey Decimal Slam System of Scorification”, escala numérica de 10 pontos semelhante à utilizada nos desportos olímpicos.


Ler mais: 3, 2, 1! – O Poetry Slam em Portugal. Mapeamento e análise dos primeiros anos, Liliana Alexandra Ferreira Vasques. Dissertação de mestrado em Educação Artística apresentada na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2016.
 
 
 

CARREIRO, José. “Slam e Poesia”. Portugal, Folha de Poesia, 23-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/slam-e-poesia.html


 
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

sábado, 4 de abril de 2020

A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro

Por: Isaac Ramos



Melo e Castro, no começo da década de 60, no século XX, foi quem colocou a poesia experimental portuguesa em pé. Ernesto Manuel de Melo e Castro é um poeta que tem uma postura/atitude de vanguarda em estado de permanência. Nasceu em 1932, em Covilhã, Portugal. Publicou seu primeiro livro Sismo (1952) quando tinha 20 anos de idade e, no ano seguinte, Salmos em (1953). No entanto, Ideogramas (1962) é considerada a primeira obra concretista publicada em Portugal. Esta contribuiu significativamente para alinhá-lo aos demais poetas que trabalhavam com visualidade em Portugal, no Brasil e demais países do mundo ocidental. Esse texto tecerá algumas considerações de crítica e análise literária de trabalhos desse período e de outros posteriores.
Durante quarenta e cinco anos Melo e Castro exerceu a profissão de engenheiro têxtil paralelamente a de escritor, dedicando-se também ao ensino tecnológico. Sua prática profissional pode ter contribuído para o afinamento do olhar e de seu fazer poético. Dentre as antologias de poesia experimental, destaco Trans(a)parências, (1989), livro que ganhou o grande prêmio de poesia Inaset – Inapa de 1990, em Portugal e Antologia efêmera: poemas 1950-2000, publicada pela Nova Aguilar, no ano de 2000.
Melo e Castro possui mais de 30 títulos de poesia e 17 de ensaios de crítica e teoria literária. É pioneiro em videopoesia (Rodalume, 1968). Entre 1985 e 1989 desenvolveu na Universidade Aberta de Lisboa um projeto de criação de videopoesia denominado Signagens. Há alguns anos vem produzindo infopoesia e realizando seminários de discussão e produção de infopoesia. A invenção e radicalidade podem ser consideradas como marca estética desse autor.
Sobre o autor, considerando artigos de livros, revistas e jornais, há mais de 75 textos, conforme informação postada no site www.po-ex.net, o mais completo e documentado site português sobre poesia experimental, que possui farto material para pesquisadores, simpatizantes e leigos, com ilustrações a partir de originais. A responsabilidade fica a cargo de uma grande equipe da UFP (Universidade Fernando Pessoa), de Portugal, coordenada por Rui Torres, sete professores, três bolsistas, dois consultores (um deles o próprio Melo e Castro, em 2005; outro, o brasileiro Sergio Bairon, em 2006) e muitos amigos do projeto. Da mesma forma que no Brasil, arquivos digitais disponibilizados na internet vêm suprir a falta de bibliografia no mercado e nas bibliotecas.
É como poeta Melo e Castro permanece. O autor costuma afirmar que é o pioneiro em videopoesia, em Portugal. Ele declarou certa vez que o sucesso de sua primeira obra concreta, Ideogramas, de difícil assimilação, teria sido facilitada pela publicação em Portugal de uma compilação da poesia concreta do grupo paulista Noigrandes, organizada pela embaixada do Brasil em Lisboa, no ano de 1962.
Aponta dois acontecimentos que antecederam o aparecimento em Portugal de manifestações originais da poesia experimental. Primeiro, seria a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956, segundo ele sem resultados significativos, após o histórico encontro com Gomringer42; segundo, a publicação da coletânea há pouco referida. Conforme Castro “em Portugal, nunca houve, no entanto um grupo organizado de poetas concretos, tendo a Poesia Concreta interessado a determinados poetas em determinada altura, como via de alargamento da sua pesquisa morfossemântica”43, afirma no capitulo intitulado “A poesia experimental portuguesa” (CASTRO & HATHERLY: 1981, p.9). Para entendermos melhor a trajetória da poesia experimental portuguesa é fundamental ler essa obra. É importante frisar que não se trata de uma compilação de manifestos como foi o livro Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960, organizado pelos concretistas paulistas do Noigandres.
Para Castro (1993, p.41), “moda e consumo são duas facetas fundamentais da vida atual” e a razão por que um livro insólito como Ideogramas tenha encontrado editor estaria estruturalmente justificada e corresponderia ao esnobismo mental das elites consumidoras de obras de arte de Portugal. Mesmo diante dessa situação um tanto insólita, do ponto de vista estético, o autor reconhece que depois de ter vivido experiências de criação poética com os livros Entre o som e o sul (1960), Queda livre (1961) e Mudo mudando (1962), teria adquirido “uma técnica espacial do verso, de uma sintaxe não-discursiva e de uma dimensão plástica da imagem” (op.cit., p.42). E, curiosamente, alega que somente em 1961, teve conhecimento profundo e complexo sobre os trabalhos dos irmãos Campos, Pedro Xisto, Décio Pignatari e Eugen Gomringer. Após conhecê-los, afirmou ter sentido uma enorme alegria e que teria encontrado o que ele próprio desejava e sentia que era urgente se realizar. Talvez isso ajude a explicar os diversos diálogos sintático-visuais dos seus ideogramas com trabalhos de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Mesmo tendo chamado seus “Ideogramas” de poesia concreta, Castro – juntamente com seus contemporâneos – logo adotaria a terminologia poesia experimental para nominar o que produziam. Cabe esclarecer que a realidade política em Portugal era bem diferente da vivida no Brasil. Era o tempo da ditadura salazarista e os poetas portugueses encontraram outros temas para compor seus trajetos. Na época em que participaram como colaboradores da revista Poesia Experimental (1964), esses poetas não eram de todo jovens. Castro tinha 32 anos; Hatherly, 35; Aragão (editor juntamente com Herberto Helder), 39 e Sallete, 42. A maioria dos participantes tinha publicado mais de um livro. No entanto, essas publicações não possuíam, necessariamente, uma postura estética assumida como poética visual. A revista em si teve dois números intercalados por dois anos, cujo nome, que denominava os adeptos dessa poética, foi dado pelos editores Aragão e Hélder.
Castro entende que pela primeira vez se propôs no seu país uma posição ética de recusa e de pesquisa, que em si própria seria um meio de destruição do obsoleto, uma desmistificação da mentira, uma abertura metodológica para a produção criativa. Amparado nesse primeiro princípio, o segundo seria o de que essa referida produção se projetaria no futuro e encontraria o modo certo para agir no momento exato, quando o povo e a língua dela necessitassem 44 (CASTRO, 1981, p. 11).
Nos seis primeiros livros de Melo e Castro, não ocorreram momentos de ousadia estética ou radicalidade na mesma proporção em que ocorre em Ideogramas. Para entendermos um pouco mais esses movimentos, é importante conhecermos as origens da chamada poesia concreta e para podermos remeter aos diversos tipos de poemas visuais da atualidade. Explicamos: todo poema concreto pode ser considerado visual, mas nem todo poema visual é concreto. Partindo da expressão utilizada por Augusto de Campos, verbivocovisual (verbal + voz + visual) e empregada largamente pelos concretistas de Noigandres, pode-se dizer que não é tarefa fácil entender as relações paradigmáticas e mesmo sintagmáticas do referido movimento.
Melo e Castro partiu da palavra poética para chegar à visualidade. Foi um percurso consciente, experimentador e, sobretudo, revolucionário. Isso pode ser constatado nos casos que virão a seguir.

E. M. Castro, “ver”, Ideogramas,1962


O primeiro poema de Ideogramas (1962) é constituído, morfologicamente, por três verbos (“ver”, “ler” e “ter”) e dois advérbios: “não” em três estrofes (negação) e “sim” em uma estrofe (afirmação). Esses últimos estão dispostos de forma isolada de forma a envolver cada grupo de três versos. A leitura discursiva dele pode ser feita na horizontal ou na vertical. Na vertical pode ser lido da seguinte forma: ver ler ter ler ver ser ver ler ser ler ver ter. Dentre os verbos dois têm relação com a visão (“ver” e “ler”) e dois com a existência (“ser” e “ter”). Trata-se do dilema dicotômico da existência. Esse contrassenso é fruto de uma cadeia de paradoxos presente em grande parte de sua obra.
O segundo caso parte de um poema discursivo: “círculo aberto ritmo liberto”.

E. M. Castro, “Círculo aberto”, Ideogramas, 1962

 Geometricamente aparece uma das figuras recorrentes que é o círculo. Nesse sentido a disposição espacial das palavras sugere um globo ocular, dentro do qual estão contidas as palavras que varam a retícula da imagem plástica. É o olhar do poeta que perpassa de forma atomística a conjunção das vanguardas em que ele esteve presente. A visão e audição sinestesicamente compõe a planilha rítmica do poema. Aliás, a imagem pictórica do globo ocular aparece em diversos poemas desde a fase de Ideogramas até a produção mais recente, esta última engloba a produção de infopoesia feita com recursos computacionais.
O poema seguinte é “Pêndulo”. Trata-se de um caligrama, segundo a concepção Apollinaire, constituído pelas letras que compõe a palavra: P, Ê, N, D, U, L, O. A primeira letra aparece 8 vezes, a segunda 6, depois 5, 4, 3, 2 e 1, respectivamente. Temos uma imagem diante do olhar que pode até hipnotizar.

E. M. Castro, “Pêndulo”, Ideogramas, 1962


E. M. Castro, “Tontura”, Ideogramas, 1962


Outro poema é “Tontura”. A palavra título aparece quatro vezes e quatro círculos concêntricos, totalizando dezasseis vezes. Obtém-se novamente uma imagem circular. A tontura é sentida, pode ser provocada ou pode vir como estado poético derivado da palavra matriz. Pode-se dizer, inclusive, em combinações seriais ou matemáticas. Melo e Castro utiliza esse recurso em diversos momentos na sua obra. Não se configura necessariamente como a poesia matemática dos concretistas brasileiros, todavia reflete um conhecimento da álgebra, geometria composicional e outros recursos advindos da matemática e da estatística. “Tontura” é um libelo aos sentidos do leitor. Mesmo quem não seja um leitor iniciado em poema visual pode muito bem atestar a sensação estética do texto de Melo e Castro.
Em situação semântica semelhante, o poema “Hipnotismo”.

E. M. Castro, “Hipnotismo”, Ideogramas, 1962


Formado pela escrita em ordem direta e inversa, traz em destaque a letra “O”, a qual aparece duas vezes. Essa vogal aparece ampliada no corpo poético como se fossem duas lentes ou dois olhos a observar o texto e por que não dizer o próprio leitor. As duas direções letrais e poéticas cruzam-se com a haste da vogal “O” que sustentam o corpo do poema e da ontologia do ser. Naturalmente, vem-me a imagem plasmática discursiva do dilema de Hamlet “Ser ou não ser eis a questão”. Shakespeare ficaria lisonjeado com a homenagem. Simbolicamente, a imagem das letras em um sentido e a outra em sentido reverso, incluindo as duas vogais “O”, lembram o símbolo do infinito: .
Um poema interessante é chamado de “Combinatória existencial”, retirado do livro Versus – in – versus (1968), contido na Antologia efêmera. Ele traz uma matriz sígnica, composta pelas letras A, B, C, D, F, G, E, H, e uma matriz verbal: “A vida mata-me. O amor imola-me. A noite ofusca-me. A razão desola-me”. A primeira série combinatória das letras se apresenta em quatro quartetos tendo doze letras por linha as quais se apresentam de três em três, como: “ABA ADA AFA AHA”. Ao todo há quarenta e oito letras por estrofe e cento e noventa e duas no total da primeira série combinatória.
Quanto ao desenvolvimento verbal traz nomes (“vida”, “amor”, “noite”, “razão”) e verbos (“mata”, “imola”, “ofusca”, “desola”). O eixo sintagmático do poema é construído por nome + verbo + nome. Essa estrutura sintática se ergue em cadeias semânticas que se multiplicam através de séries combinatórias ou combinações matemáticas. O recurso estilístico predominante é o paradoxo, próprio de Melo e Castro que, a exemplo do paulista Haroldo de Campos e o mato-grossense Silva Freire, pode ser chamado de neobarroco. Na (des)montagem do poema temos dezasseis quartetos com três palavras-chave por verso, conforme apresentado no eixo sintagmático. A apresentação do eixo paradigmático pode ser ampliada além do que veio no texto através do uso de séries combinatórias. Por exemplo:
A vida mata-me a vida
A vida mata-me o amor
A vida mata-me a noite
A vida mata-me a razão

O amor mata-me a vida
O amor mata-me o amor
O amor mata-me a noite
O amor mata-me a razão

Igualmente bem interessante é “A revolta do texto” do livro As palavras só-lidas (1979). No eixo sintagmático temos um sujeito e um predicativo do sujeito. Trata-se de um poema item ou poema caso. Morfologicamente temos artigo + substantivo + adjetivo + verbo de ligação + adjetivo. Sintaticamente temos: adjunto ADN + suj +adj ADN + pred. nominal + predicativo. do sujeito. Trata-se de anáforas metafóricas no exercício da metalinguagem. Predominam a função poética e a metalinguística.

A revolta texto
O texto revolta: é revolto, é revoluteante, é revoltoso, é revoltado, é revoltante, é revolitado, é revolvido.
O texto ruído: é rugido, é ruim, é rubídio, é ruivo, é ruína, é rúptil, é rumoroso, é rútilo, é ruptura, é rumorejo, é rugoso, é ruço.
O texto uso: é urze, é usura, é urubu, é urso, é ustão, é usurpador, é útero, é utopia, é útil, é urro, é uva, é uzifuro.
O texto muro: é música, é mútuo, é musa, é murro, é múmia, é mundial, é múnus, é murcho, é mural, é mutilado, é museu, é mutação, é mortal.
O texto vivo: é vário, é vazio, é vacina, é vaga, é vagaroso, é vagina, é vaivém, é vapor, é vândalo, é válvula é válido, é valete, é vaia, é vagem, é varíola, é varapau.
O texto pau: é pauta, é pávido, é pavio, é paz, é patim, é patente, é pastoril, é parente, é pássaro, é pai, é pasquim, é passageiro, é passível.
O texto impossível: é tórax, é traço, é três.
O texto volta: é volátil, é voltaico, é vômito, é voluta, é vogal, é volúpia, é volume, é vontade, é vulva, é vulnerável, é voz, é voraz, é revolta.

O poeta se utiliza de um amplo leque de possibilidades semânticas e sistêmicas. Anaforicamente temos a palavra texto que se complementa com uma série de adjetivos (“revolta”, “ruído”, “uso”, “muro”, “vivo”, “pau”, “impossível” e “volta”) e vai (circuns)crevendo a partir da primeira letra e adotando combinações rítmicas e sonoras. O texto poético adquire uma velocidade inaudita. E o poeta vai tecendo sua teia lírica que encorpa texto, vomita e volita significados inusuais. Em interessante jogo de palavras o poema mostra suas faces inter e intratextuais. Há uma série de reflexões contidas em cada “discurso poético”. O texto se renova e encadeia ressemantizações.
Nessa breve mostra de trabalhos do poeta português Melo e Castro, procuramos mostrar um pouco de sua poética que contempla não apenas as vanguardas europeias e brasileiras como imprime uma poética singular. O autor já declarou, por mais de uma vez, que não tem preferência por poemas visuais ou discursivos. Isso facilita o trabalho do leitor e do crítico, porque não é preciso ficar preso a discussões estéreis sobre se o que está sendo lido e/ou visto é poema ou não. Melhor é saber desfrutar da leitura de um texto literário e, sobretudo, de um grande poeta contemporâneo.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.
CASTRO, E. M. de Melo e. Livro de releituras e poiética contemporânea. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008. (Coleção Obras em Dobras).
_____. Antologia efêmera [poemas 1950-2000]. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. _____. O fim visual do século XX & outros temas críticos. GOTLIB, Nádia (org.). São Paulo: Edusp, 1993.
_____ & HATHERLY, Ana. PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editora, 1981.
RAMOS, Isaac Newton Almeida. Vanguardas poéticas em permanência: a revalidação de Wlademir Dias-Pino e Silva Freire. Tese (doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo – 2011. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04052012-090630/pt-br.php. Acesso em: 17 dez. 2013.
POESIA EXPERIMENTAL. Disponível em http://www.po-ex.net/ . Acesso em: 17 dez. 2013.

_____________________
NOTAS:
42 Poeta suiço-boliviano que foi responsável por reunir artistas plásticos e poetas em vários países da Europa, sendo o principal interlocutor dos participantes do grupo Noigrandes.
43 Esse texto encontra-se em PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Moraes Editores: Portugal, 1981.
44 Na opinião do poeta e crítico isso teria acontecido logo após o 25 de abril de 1974, com a explosão visual que teria invadido cidades, vilas, aldeias e estradas de Portugal.  

FONTE:
“A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro”, Isaac Ramos (Departamento de Letras de Alto Araguaia UNEMAT – Universidade Estadual de Mato Grosso). Congresso Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.


Poderá também gostar de:

  • pOEsIA VISUAL”, Folha de Poesia, José Carreiro, 2010/12/10.



  • O homem-mãe” [de M. Cesariny de Vasconcelos], Folha de Poesia, José Carreiro, 2016/05/25




CARREIRO, José. “A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro”. Portugal, Folha de Poesia, 04-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/a-poesia-experimental-portuguesa-de.html


LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha


José Fanha nasceu em Lisboa e licenciou-se em arquitetura. Porém, é muito mais conhecido como inspirado poeta e declamador, animador cultural por excelência, criativo por vocação, interventivo até dizer basta. É autor de contos e de poesias para crianças, dramaturgo e ator. Foi professor do ensino secundário, é mestre em Educação e Leitura e doutorando na área da História da Educação e da Cultura Escrita.
Tendo como modelo e inspiração o Manifesto Anti-Dantas, célebre texto de Almada Negreiros onde, pela mordaz ironia, este zurze o academismo e o tradicionalismo instalados, sobretudo na pessoa e na obra do escritor Júlio Dantas, José Fanha construiu o Manifesto Anti-Leitura, igualmente corrosivo e irreverente, sobretudo nestes tempos em que a crise serve de desculpa para oficialmente a cultura ser posta em causa.
Este texto foi publicamente apresentado sob o patrocínio da Rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa, durante a II Arruada da Leitura, que teve lugar no dia 21 de abril de 2012. Na tarde desse dia, ao fundo da Rua do Carmo, em Lisboa, o ator Manuel Coelho, do Teatro Nacional D. Maria II, declamou o Manifesto Anti-Leitura.
Pelo seu óbvio interesse e oportunidade, e com a justa e devida vénia para com o seu autor, aqui se partilha esta magnífica criação de José Fanha.





ABAIXO A LEITURA, PIM!
Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais ingénuos! Um vício que se chama
LEITURA!
Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se esquece de tudo o mais!
Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum!
O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor se esquece de tudo mais só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!

Morra a leitura, morra! EPim!

Uma geração que lê é uma geração que pensa!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e para o país!

Abaixo os leitores! Morra a literatura! Morra! Pum!

Esta gentinha põe-se a ler em vez de trabalhar, de verter o seu suor a bem da nação, de aceitar paciente e responsavelmente que lhe retirem a assistência médica, o subsídio de doença, a reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se!
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem! Choram! E sonham!

Morra a leitura, pim! Pam! Pum!

A leitura faz conhecer personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a desavergonhada Eduarda da Maia,
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a Blimunda do “Memorial do Convento”

Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”.
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!

E loucos como o cigano Melquíades e o coronel Buendía dos “Cem anos de Solidão”.

A leitura faz-nos viajar por lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro, o Beco das Sardinheiras do Mário de Carvalho, os Mares do “Mobby Dick”, a Buenos Aires de Borges, a Paris de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde, a Moscovo de Tolstoi!

A leitura faz-nos rir de pessoas sérias como o Conde de Abranhos, o Sancho Pança ou o Escriturário Barthleby.

Já para não falar dos autores, meu Deus! Esses seres abjetos! Os escritores que escrevem livros e livros sem um pingo de vergonha! Deviam ser presos! Encerrados num jardim zoológico! Condenados aos trabalhos forçados! À morte! À cadeira elétrica!

Camões, por exemplo, era um marginal que andava sempre à espadeirada. E se fosse só isso, ainda podíamos perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra não são reprováveis. Podem até ter uma função muito positiva na nossa sociedade!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.
E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…!
E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca, essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele, e mais o outro!
E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que Uivam, de Versículos Satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!

E há quem os leia! Quem sofra com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos olhos que leem e pelos dedos que folheiam! E depois da leitura de uma página, por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! Eles já são leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura! A possibilidade de salvação é extremamente diminuta!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!

Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra, E pim!

Os livros fazem-nos afastar da realidade, da economia! Do mercado! Do futuro!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!

Abaixo a prosa! E a poesia! E o ensaio!

Morra a leitura, morra! E Pim!

E temos de falar das bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido! Pais! Protegei os vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao público! E estão carregadas e alto abaixo de livros! E os livros estão à vista! Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua! E alguns até têm ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima! E o pior é que podem ser requisitados e levados para a casa, para o seio da família onde vão espalhar a sua ação desagregadora e malfazeja!

Morra a leitura! Abaixo as bibliotecas! Pum!

Mas há esperanças para o futuro!

Por alguma razão muitos dos nossos melhores e mais impolutos dirigentes só leem resumos! Ou extratos da conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!

Sigamos o exemplo que muitos dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam! Há que ter a coragem de dizer bem alto:

A leitura prejudica gravemente a ignorância!

E sem ignorância o país não progride! Não crescem os juros! Não se investe nas offshores! O estado não vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe!

Acabemos de vez com a leitura! Abaixo a leitura! E Pim!

Se puserem um livro à vossa frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar! Não abram nem uma página! Pode bastar um verso para vos contaminar! Um homem que lê pode desejar viver num mundo melhor! Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo! Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais bela rosa do jardim!

Por isso é preciso fechar as portas aos antros de leitura! Sabemos que pode parecer doloroso mas é fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler uma linha sequer! Se for preciso tapai-lhes os olhos! É preciso preparar o futuro dos nossos filhos! Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem dúvidas, nem sabedoria, nem nada!

Abaixo as bibliotecas! Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra!
Fim!
José Fanha
Poeta do séc. XXI
e
tudo










LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/ 
 

CARREIRO, José. “Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha”. Portugal, Folha de Poesia, 05-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/manifesto-anti-leitura-de-jose-fanha.html