domingo, 19 de novembro de 2006

CANTO & ENCANTO - entre nós e as palavras

     
[...] quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.     

Jorge Luis Borges
     
     


VOZ REFLEXIVA

Fátima Miranda, Concierto en Canto
Madrid, Hyades Arts, 1994.

Inicialmente concertam a voz
junto aos abismos: penhascos
as mulheres preludiam à beira da rocha
e o som fica para trás
para a aldeia dos vivos
carpem quando liminarmente se deixam tocar
e como a voz ecoa elas saem de si
a respiração é orgânica instalada
a voz sólida poetada
trabalham as cordas vocais
com exercícios vários sempre apreciados
lentamente emudecem
por momentos a população quieta-se
e os aldeões assentem sem aplauso
perante a passagem da voz por caminhos milenares

a respiração é orgânica instalada
a voz sólida poetada
conduz a um só matiz
que se acerca aloja e distrai com maestria
evolui para o mesmo, a raiz, essa raiz antiga.

Como as carpideiras as mulheres alimentam
a qualidade da verdade
habitam os potros com sua voz
devolvem a memória à terra velha e larga
até tudo se integrar na linguagem de todos
e de um só
no centro do corpo, coral, sonoro

muito oral.
                           
        
        
        
        
        
        
CANTO & ENCANTO – a música dos signos 
        
        
Entre si sempre mantiveram as artes uma afortunada colaboração.
                                                        
O célebre verso de Horácio “ut pictura poesis” transferiu-se para o terreno musical: “ut musica poesis”. A poesia é como a música. É rítmica como as artes do movimento que se desenvolvem no tempo: a música e também a dança.
      
“Ela (a música) não nos confia nem o tempo nem o eterno, mas produz o movimento; ela não afirma nem o vivido nem o conceito, mas constitui o acto de razão sensível” G. Deleuze (adaptado).
        
                                                  
Na Idade Média peninsular, os trovadores compunham as suas cantigas e os jograis dedilhavam a cítara, acompanhados por soldadeiras que animavam a festa, bailando (e por vezes tocando instrumentos musicais).

Cancioneiro da Ajuda: jogral com viola de arco, rapariga com pandeiro.


Na contemporaneidade, são felizes as parcerias entre Pedro Homem de Mello/Amália; Ary dos Santos/Carlos do Carmo e ainda António Lobo Antunes/Mísia na formação do estilo musical português que é o fado.
                                                        
                                                        
José Malhoa, FADO
Fado (1910), José Malhoa.
                      
       

De acordo com o próprio Malhoa, em entrevista à Luta, em 20 de Março de 1915, “Não há nessa tela apenas um fadista e uma rameira. Há ali uma mulher encantada ao ouvir o seu melhor afecto, que lhe canta o coração”.
        
                               
                                                        
O Fado” (1923), filme mudo de Maurice Mariaud.

                                                        
      
                                                  

Em 1997, um projecto de Rodrigo Leão, Gabriel Gomes e Manuel Hermínio Monteiro vem satisfazer o nosso gosto poético-musical. Trata-se de Os Poetas. Entre nós e as palavras.
                                             
                       
                  

        
                                                               
                                                                 
                                                                                                                                 
                                                                 
                                                                 

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS

       
Em toda a poesia existe subjacente a música em que assentam e se deslocam harmoniosamente as palavras. Desde os primórdios que a poesia nasceu para ser cantada ou recitada. Aconteceu que, em muitos casos, a poesia foi perdendo a sua melodia como as catedrais medievas perderam a euforia das cores que lhes revestiam o interior. Tivemos de chegar aos simbolistas para ver proclamada a exigência musical “de la musique avant toute chose” (Verlaine), do mesmo modo que Rimbaud preencheu de cores sonoras as vogais do poema. Parece pois claro e natural que cinco poetas portugueses de excepção se encontrem com músicos da melhor qualidade num acto tão espontâneo e cúmplice que mais parece combinado há muito pelos duplos silêncios da criação.
       
Neste disco, as vozes e os poemas de CesarinyHerberto HelderLuiza Neto JorgeAI Berto e António Franco Alexandre ganham um singularíssimo suporte musical que procura, antes de mais, libertar a estrutura rítmica intrínseca a cada um dos versos dos seus poemas.
       
E o processo desenvolve-se por uma disfarçada humildade dos compositores que tudo fazem para acentuar os sentidos da palavra e da voz, quer pela construção de atmosferas e serenos cromatismos musicais específicos de cada discurso poético, quer em alguns momentos, silenciando ou subalternizando a linha musical para realçar a voz do poeta, enaltecendo-a. Resulta assim um encontro inédito e feliz entre a música e a poesia revelando, simultaneamente, a diversidade da lírica portuguesa desta última metade do século XX.
       
O projecto musical de Rodrigo LeãoGabriel GomesFrancisco Ribeiro e Margarida Araújo restitui à poesia o seu sítio de eleição. Entre a música e inebriando-se desta, cada vocábulo ou verso proferidos pelos seus criadores, sobe à excepcional melodia que o cuidadoso silêncio do livro fechado abata ou guarda.
       
Poderia, contudo, esta aproximação da música à melhor poesia, tornar-se apenas numa interpretação como o faz cada actor com o seu particular modo de dizer. Não é assim. Entre nós e as palavras parte da audição dos poemas (mais do que da leitura). A música, que primeiro navega as palavras, deixa-se finalmente conduzir por elas até se tornar suporte ou jangada. Chegam combinados e fundidos ao outro lado e, quando a música se autonomiza, mantém o efeito do contágio poético, não deixando de sugerir certas palavras para um outro eventual poema. Em Nuevas Canciones, o poeta Antonio Machado parecia querer resumir este projecto: “Canto e conto é a poesia / canta-se uma viva história / Ao contar-lhe a melodia”. Chegamos assim exclusiva e definitivamente ante a poesia. Ela torna-se assim, e realmente, senhora de todo este disco. E que este projecto passe também pela Assírio &; Alvim, que este ano comemora 25 anos de existência e de dedicação às palavras da poesia só quer dizer que Entre nós e as palavras há metal fundente, como escreveu Cesariny.
       
Entre nós e as palavras dispõe dos alicerces seguros que muito ajudarão a altear e divulgar a grande poesia portuguesa.
       
       
       

CONCIERTO EN CANTO                                                         

                                                         
  



Concierto en canto (1994) é uma obra-prima da música vocal contemporânea. “Ouvir cantar Fátima Miranda é participar de um ritual religioso. Porque a voz de Fátima Miranda e a mulher Fátima Miranda são uma e a mesma coisa." (Fernando Magalhães,Público, 15-IV-1998). 




“Fátima Miranda  invoca  aqui forças ancestrais e coloca a voz ao seu serviço numa sequência de oito movimentos que percorrem toda a gama de registos vocais e estados de espírito que vão da serenidade contemplativa à histeria, da regressão à infância ao lançamento de maldições, da recriação étnica ao risco absoluto, entre o humor e a psicose, o amor e a morte [...]. Fátima Miranda é uma pura extravagância: a voz, a música, o movimento, os figurinos. Assistir a um espectáculo seu é uma experiência transcendente, para alguns, esgotante, para outros. Dotada de una capacidade vocal incomum, performer de mil recursos, trágica, paródica, desconcertante, lírica, arrepiante, macabra mesmo” (Fernando Magalhães,  Público 10-IX-2000).
                                           
                                           
                                                        
                                                        
                                                        
canto e o encanto de Fátima Miranda realiza-se em torno da voz como instrumento de percussão e criação de uma linguagem musical que, na essência, toca as refinadas formas tradicionais de cantar.
                                                        
A designação de poesia sonora para a arte de Fátima Miranda é um pleonasmo, porque poesia é música. Poesia e música convergem numa só arte, assim como no mesmo corpo convergem o poeta e o actor. E o canto de Fátima Miranda é físico, corporal, é espectáculo total que estabelece uma comunicação eficaz com o público, numa variedade vocal avassaladora, irónica e delirante.
     
                                                    
Encantado por estes dois projectos poético-musicais, Os Poetas. Entre nós e as palavras Concierto en canto, proponho a sua audição. Sentir-se-ão, por  certo, religados ao essencial.

Sugiro também uma visita à página oficial de
F A T I M A M I R A N D A. Porque a arte também mora aqui.
                                                        
                                                       

CARREIRO, José. “Canto & Encanto - entre nós e as palavras”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-11-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/11/canto-encanto-entre-nos-e-as-palavras.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/11/19/canto_2D00_encanto.aspx)




terça-feira, 14 de novembro de 2006

UT PICTURA POESIS

        
“Desde a Antiguidade, críticos literários e filósofos compararam muitas vezes as artes […]. A definição mais antiga e mais célebre é a de Simonide, para quem a poesia é uma pintura falante e a pintura uma poesia muda. A estas fórmulas podem juntar-se as da arquitectura, música petrificada, e a da música, arquitectura fluida, fórmulas inventadas, segundo Walzel(1917), na época do romantismo. No interior da literatura, é principalmente a poesia a ter o privilégio de se ver comparada às artes: são perceptíveis aproximações com a música, fundamentalmente graças a certas analogias ao nível da prosódia, com a arquitectura, mas em primeiro lugar, com a pintura” (A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, 1981)
        
Assim, a comparação entre a poesia e a pintura foi realizada sob diferentes ópticas por literatos e investigadores de todos os tempos, que se servem, com muita frequência, da famosa formulação horaciana do v. 361 da Ars poética: “ut pictura poesis”. A poesia é como a pintura.
        
Segundo Carlos de Miguel Mora, da Universidade de Aveiro, “os pontos que permitem estabelecer a comparação são basicamente dois, insinuados de maneira implícita pelo poeta: a técnica do engano e a falta de utilidade” (Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”, Ágora. Estudos Clássicos em Debate 6, 2004; www.dlc.ua.pt/classicos/pictura.pdf).        
                
        
        
   
        
      
        Francisco Oliveira e Silva, Alegoria, micropintura, Ponta Delgada, 2003.
       
       
       


       
SEGREDO ABERTO
       
Caminha a dualidade sexuada da frase
suspensa na sua entrega e abandono.
O que leva o homem a colocar-se na partida e
na razão masculina de si?
       
Implacável a radiação do tempo na superfície cósmica
que a força da mão pretende gastar
quase anular através de reminiscências aquáticas,
enlameadas e em coagulação elementar.
Em relativo distanciamento uma trama quase desvenda uma corporização.
É de trama, porém, a corporização e o seu interior é inane.
Trama irresolúvel, corporização não inteirada,
não assumida na sua propriedade nem na sua conformidade.
Convivência tensiva de si para si.
E, mesmo assim, o artista está em convite aceso
a espreitarmos os traslados da sua fundura ôntica.
Requalifica-se em sua própria rebentação.
       


       


       

CARREIRO, José. “Ut Pictura Poesis”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 14-11-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/11/ut-pictura-poesis.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/11/14/UT-PICTURA-POESIS.aspx)


sábado, 4 de novembro de 2006

O ÊXTASE DE SANTA TERESA D'ÁVILA


                           
                           
TERESA D’ÁVILA
                           

Eu estou com aquele que me habita
é claro que me acompanha
por isso o meu desenho resplandece
por isso me vês por outra figura
sanguínea e vital.
                           
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.
                           
                           
                           

         
O Êxtase de Santa Teresa (grafito anónimo, Lisboa, 1994)


                           
O grafito de Santa Teresa d'Ávila é a expressão visual espontânea que inesperadamente irrompeu dos muros da cidade de Lisboa, em 1994, nomeadamente num dos suportes do viaduto de Alcântara.
                           
Esta é uma reprodução a partir da escultura barroca de Bernini (1598-1680), a quem Lacan reconheceu a expressão de tanto desejo.
                           
Embora o grafito já tenha desaparecido daqueles muros, ficou noticiado no número zero da revista MetropoLis (Janeiro de 1994) e, agora, tenho o gosto de o divulgar na Internet.
                           
                           
O Êxtase de Santa Teresa, Bernini
    
                                                   

Esta escultura de Bernini foi realizada entre 1645 e 1652 para a capela do cardeal Federico Cornaro. Representa o êxtase místico de Santa Teresaferida por uma seta de amor divino disparada por um anjo (que não nos deixa de lembrar Cupido). Nela podemos observar o rico jogo de mármores e dos dourados, as inúmeras linhas ondeantes e de fuga, o corpo da santa e a seta em diagonais opostas. Tal como a pintura, a escultura barroca é plena de sensualidade e movimento.
                           
Teresa de Jesus morreu em Alba de Tormes em 4 de Outubro de 1582.
                           

                           
                           
Miguel Torga, na autobiografia ficcionada que tem por título A Criação do Mundo (1937-1981; 1ª ed. conjunta: 1991; 3ª ed. 2002, Publicações Dom Quixote, p.279), escreve acerca dessa fome de absoluto que atormentou Santa Teresa:
                           
Nos tempos de Coimbra, durante o curso, encarregara os caloiros da casa de trazerem das terras nativas quantos alfarrábios por lá encontrassem, que lhes pagava a vinte escudos o quilo. E numa dessas aquisições a peso vieram-me ter à mãos as obras completas da Doutora. Las Moradas, primeiro, e Castillo Interior, depois, transformaram-me num seu devoto leitor. Ficara enredado nas malhas daquela personalidade ao mesmo tempo ingénua e subtil, maternal e combativa, que se exprimia numa linguagem chá, popular, cheia de graça e de finura, em que cada palavra é a sístole ou a diástole dum coração que nunca deixou de bater humanamente, apesar de abrasado de amor divino. Pela primeira vez encontrava unidos e harmonizados numa criatura o gosto activo dos frutos da terra e a ânsia contemplativa dos manás do céu. E acabara por inscrevê-la no meu calendário ibérico, com um poema que arrepiara o Alvarenga. Mais chegado à condição traída da mulher do que à vocação realizada da monja, embora fosse um preito, era também uma profanação. Morta e sepultada, a decompor-se, a freira enfrentava desencantadamente o vazio da eternidade, numa espécie de êxtase às avessas...
                           
Vai-se embaçando o brilho dos meus olhos!
Apodrece o tutano dos meus ossos!
Crescem as unhas doidas nos meus dedos
Contra a palma da mão encarquilhada!
Medra o livor em mim de tal maneira
Que me babo de nojo do meu nada!
          
                               
Gian Lorenzo Bernini, Beata Lodovica Albertoni, Roma, igreja de San Francesco a ripa.
               
                                  
                  
VERSOS NACIDOS AL FUEGO DEL AMOR   ¯
                          

Vivo sin vivir en mí, 
y de tal manera espero, 
que muero porque no muero.
                           

Vivo ya fuera de mí  
después que muero de amor;  
porque vivo en el Señor,  
que me quiso para sí;  
cuando el corazón le di  
puse en él este letrero:  
que muero porque no muero.

                           

Esta divina prisión  
del amor con que yo vivo  
ha hecho a Dios mi cautivo,  
y libre mi corazón;  
y causa en mí tal pasión  
ver a Dios mi prisionero,  
que muero porque no muero.

                           
¡Ay, qué larga es esta vida!  
¡Qué duros estos destierros,  
esta cárcel, estos hierros  
en que el alma está metida!  
Sólo esperar la salida  
me causa dolor tan fiero,  
que muero porque no muero.
                           
¡Ay, qué vida tan amarga  
do no se goza el Señor!  
Porque si es dulce el amor,  
no lo es la esperanza larga.  
Quíteme Dios esta carga,  
más pesada que el acero,  
que muero porque no muero.
                           
Sólo con la confianza  
vivo de que he de morir,  
porque muriendo, el vivir  
me asegura mi esperanza.  
Muerte do el vivir se alcanza,  
no te tardes, que te espero,  
que muero porque no muero.
                           
Mira que el amor es fuerte,  
vida, no me seas molesta;  
mira que sólo te resta,  
para ganarte, perderte.  
Venga ya la dulce muerte,  
el morir venga ligero,  
que muero porque no muero.
                           
Aquella vida de arriba  
es la vida verdadera;  
hasta que esta vida muera,  
no se goza estando viva.  
Muerte, no me seas esquiva;  
viva muriendo primero,  
que muero porque no muero.
                           
Vida, ¿qué puedo yo darle  
a mi Dios, que vive en mí,  
si no es el perderte a ti  
para mejor a Él gozarle?  
Quiero muriendo alcanzarle,  
pues tanto a mi Amado quiero,  
que muero porque no muero. 
                           

Santa Teresa d’Ávila
Obras Completas, Burgos, Editorial "Monte Carmelo”
                                                   
                                                     

 


CARREIRO, José. “O êxtase de Santa Teresa d'Ávila”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 04-11-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/11/o-extase-de-santa-teresa-davila.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/11/04/O-_CA00_XTASE-SANTA-TERESA-D_3F00C100_VILA.aspx)