quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O CARTEIRO DE PABLO NERUDA


                                         O CARTEIRO DE PABLO NERUDA
    
     
- O que tenho a dizer-lhe é muito grave para falar sentada.
- De que se trata, senhora?
- Desde há uns meses anda a rondar a minha taberna esse tal Mario Jiménez. Este senhor foi insolente com a minha filha de apenas dezasseis anos.
- O que lhe disse?
A viúva cuspiu entre dentes:
- Metáforas.
O poeta engoliu em seco.
-E?
- É que com as metáforas, pois, Don Pablo, tem a minha filha mais quente que uma bomba!
- É inverno, Dona Rosa.
- A minha pobre Beatriz está a consumir-se toda por esse carteiro. Um homem cujo único capital são os fungos no meio dos dedos dos pés arrastados.
Mas se os seus pés lhe fervem de micróbios, a sua boca tem a frescura de uma alface e é trapaceira como uma alga. E o mais grave, Don Pablo, é que as metáforas para seduzir a minha menina ele foi copiá-las descaradamente aos seus livros.
-Não!
- Sim! Começou inocentemente a falar de um sorriso que era uma mariposa. Mas depois já lhe disse que o peito dela era um fogo de duas chamas!
- E a imagem usada, você crê que foi visual ou táctil? - inquiriu o vate.
- Táctil - respondeu a viúva. - Agora proibi-a de sair de casa até que o senhor Jiménez desampare a loja. Vai achar cruel que eu a isole desta maneira, mas fique sabendo que lhe apanhei todo sujo este poema dentro do soutien.
- Chamuscado dentro do soutien?
A mulher sacou de uma indubitável folha de papel de contas marca Torre do seu próprio regaço, e exibiu-a qual acta judicial, sublinhando o vocábulo nua com sagacidade detectivesca:
«Nua és tão simples como uma das tuas mãos,
lisa, terrestre, mínima, redonda, transparente,
tens linhas de lua, caminhos de maçã,
nua és fina como é fino o trigo nu.
Nua és azul como a noite em Cuba,
tens trepadeiras e estrelas no cabelo.
Nua és enorme e amarela
como o verão numa igreja de ouro.»

Amarrotando o texto com repulsa, sepultou-o de volta no avental, e concluiu:
- Quer dizer, senhor Neruda, que o carteiro já viu a minha filha em pêlo!
O poeta lamentou nesse momento haver abraçado a doutrina materialista da interpretação do universo, pois teve urgência de pedir misericórdia ao senhor.
Encolhido, arriscou um comentário sem a habilidade desses advogados que, como Charles Laughton, convenciam até um morto de que ainda não era cadáver.
- Eu diria, senhora Dona Rosa, que do poema não se conclui necessariamente o facto.
A viúva perscrutou o poeta com um desprezo infinito:
- Há dezassete anos que a conheço, mais nove meses que andei com ela neste ventre. O poema não mente, Don Pablo: exactamente assim, como diz o poema, é a minha menina quando está nua.
«Deus meu» rogou o poeta, sem que lhe saíssem as palavras.
- Eu imploro-lhe a si - expôs a mulher, - em quem ele se inspira e confia, que ordene a esse tal Mario Jiménez, carteiro e plagiário, que se abstenha a partir de hoje e para toda a vida de ver a minha filha. E diga-lhe que se assim não fizer, eu mesma, pessoalmente me encarrego de lhe arrancar os olhos, como a esse outro carteirito que também era fresco, o tal Miguel Strogoff.
Apesar de a viúva já se ter retirado, de certa maneira as suas partículas ficaram vibráteis no ar. O vate disse «até logo», pôs o gorro, e puxou a cortina atrás da qual se ocultava o carteiro.
- Mario Jiménez - disse sem olhar para ele, - estás pálido como um saco de farinha.
[…]
- Poeta e camarada - disse decidido. - Meteu-me neste sarilho, agora tire-me dele. Ofereceu-me os seus livros, ensinou-me a usar a língua para mais alguma coisa do que para colar selos. A culpa é sua de eu me ter apaixonado.
- Não, senhor! Uma coisa é eu ter-te oferecido uns livros meus, e outra bem diferente é autorizar-te a plagiá-los. Além disso, ofereceste-lhe o poema que eu escrevi para Matilde.
- A poesia não é de quem a escreve, mas sim de quem a usa!
- Alegra-me muito essa frase tão democrática, mas não levemos a democracia ao extremo de submeter a votação dentro da família quem é o pai.
    
     
Antonio Skármeta (Chile, 1940)
El Cartero de Neruda (Ardiente paciencia) (1986)
Tradução de José Colaço Barreiros
O Carteiro de Pablo Neruda 
Lisboa, Editorial Teorema, 1996, pp. 81-87.
     

       
 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/09/01/metaforas.aspx]

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A vida íntima das palavras (Maria Lúcia Lepecki)


Marc Chagall, “Les amoureux de Vence”

   
      
Creio que está em "O Pároco da Aldeia”, de Alexandre Herculano. Um dos paroquianos do já idoso sacerdote, trabalhador no campo, apaixona-se por uma rapariga da mesma aldeia. Era no tempo da cerimónia conhecida como pedir namoro, ao pai da rapariga ou a quem lhe fizesse as vezes. O moço não ia, ficava quieto no seu canto. Pelo menos assim é no conto de Herculano. Em tão momentos a situação, o futuro namorado fazia-se representar por uma espécie de embaixador de cujos bons ofícios se esperava feliz desenlace.
Ora, o nosso apaixonado não tinha, ao que parece, parente de sangue ou por afinidade, nem padrinho, nem quem quer que fosse capaz de encarregar-se do recado. Solicita, assim, a colaboração do pároco que, antes de sim ou sopas, quer ver onde se mete. E indaga: “Tu ama·la?" Resposta: "Amar não amo, pois não sei as palavras. Mas preciso muito dela."
A minha citação, feita de memória, deve estar desrespeitando os termos precisos atribuídos, por Herculano, à sua personagem. Mas à ideia sou fiel: “não amo porque não sei, ou não tenho, as palavras...
Uma formulação como essa não traria desprimor a filósofos da linguagem, sendo muito significativo que Herculano, por instinto ou de caso pensado, a tenha posto na boca de uma personagem rural. Referindo carecer das palavras para amar, o nosso jovem revela uma extraordinária consciência retórica. No caso, manifesta-se essa consciência pela percepção de que as palavras fazem falta não apenas para expressar o amor (ou qualquer outro sentimento ou emoção) mas, e sobretudo, para experimentar, para viver, sentimentos e emoções.
Tendemos a crer, e talvez creiamos sempre, que o sentir é separado de, e preexistente a, qualquer verbalização. Primeiro sentimos, acreditamos nós, só depois nos vindo as palavras que serviriam, apenas, para fazer transitar o sentimento para um destinatário que até pode ser o mesmo emissor... Ora, as coisas não são assim, como atinou a personagem de Herculano. Na verdade, o sentimento, na acepção de "afecto, afeição, amor", nasce de aprendizados: do totalmente informal ou do mais formalizado. No primeiro caso, o informal, os convívios do quotidiano são decisivos para dar nascimento, e crescimento, ao conjunto de palavras que, ditas para nós mesmos, nos permitirão, ao longo da vida, sentir o sentimento. Essa gestação verbal, em primeira instância, faz-se na família próxima ou alargada, ouvindofalando, acarinhando, tocando O corpo do outro.
Modo mais formal de adquirir palavras para ter o sentimento é a leitura literária. Esse aprendizado pode começar muito cedo, primeiro pelas histórias contadas oralmente, depois pelos livrinhos que vamos lendo e onde contactamos não com uma pessoa na sua humanidade, mas com uma representação da humanidade da pessoa. É o que chamamos personagem. [...]

Maria Lúcia Lepecki
Super Interessante n.º 148, agosto 2010, Portugal.
   
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/23/lepecki.aspx]

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A MATÉRIA DO POEMA

René Magritte (1898-1967) “Call of the peaks"
Magritte, Call of peaks (1943)
                        
    
         
    
      
CARREGO O QUADRO
       
Carrego o quadro, o trabalho no mar
respirado
a casa que deixei logo que o dia clareou
ou mesmo o regresso à paixão do verbo.
Sigo o voo do milhafre.
   
Para lá do vão indisponível da porta
apenas raízes ou teias a expressar o tempo
inquietas máscaras perfazendo o espaço apertado
onde ainda volteias.
   
     
       


        
NESU GLEZNU
    
Nesu gleznu, uzgleznotu jūrā,
kas izelpo
māju, ko atstāju pēc tam, kad diena noskaidrojās,
vai visdrīzāk paša vārda kaislības atgriešanos.
Sekoju klijas lidojumam.
    
Viņpus ostas bezjēdzīgā tukšuma
tik tikko samanāmas saknes vai laika izpausmes gaismekļi;
satrauktas maskas, kas piepilda šauro telpu,
kurp tu vēl joprojām atgriezies.
      
“Carrego o quadro”, José Maria de Aguiar Carreiro
tradução: Leons Briedis (Letónia)
Azoru Salu. Dzejas antoloģija. Rīga, Minerva, 2009
         
     
    
        
     
       
                     
Magritte, “The Difficult Crossing”, 1926,
Oil on canvas, Jean Krebs Collection, Brussels
 
   
  
NO POEMA
   
Transferir o quadro    o muro       a brisa
A flor      o copo     o brilho da madeira
E a fria e virgem limpidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso;
   
Preservar de decadência  morte e ruína
O instante real de aparição e da surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa.
    
Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto 1962
   
    
    

Não está em causa «descrever» um mundo que há-de ser o mundo do «poema limpo e rigoroso», mas o acto de o nomear.
    
É a sobrecarga de nomes concretos (ligados à ideia de visualidade e de clareza – quadromuro, brisa, flor, copo...) que, sobretudo, se associa ao acto de nomear. Este aproxima e implica o Eu no mundo nomeado (= criado), aspecto que o emprego do artigo definido reforça.
    
(Note que nomes abstractos como «limpidez», «instante» «gesto», o não são assim tanto, porque pertencem ao mesmo mundo concreto dos nomes presentes nos dois primeiros versos e são precedidos de artigos definidos que os tornam mais palpáveis.)
   
O poema fixa o mundo nomeado num tempo fora do tempo, isto é, não sujeito à sua acção corrosiva, como se explicita no verso “Preservar de decadência  morte e ruína”
    
Veríssimo, 2003: 309
    
   



René Magritte (1898-1967) “Auto-retrato”
René Magritte (1898-1967) "A Vitória"
  
    
   


PARA ESCREVER O POEMA
   
O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
   
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
   
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
   
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
   
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
   
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
   
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
   
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
   
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
   
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
   
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.
   
Nuno Júdice, A Matéria do Poema
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008
   
   
Três elementos que o poeta pretende utilizar como matéria do seu poema: pássaro, maçã e flor.
    
   
   
   
   
   
   
   
   
«uma gaiola de palavras» pode ser identificada com um «texto», porque, tal como uma gaiola pode servir para prender um pássaro, um texto, através das suas palavras, permite fixar uma ideia ou conter uma representação de algo (um pássaro, por exemplo).
   
   
   
   
Há uma oposição entre as decisões tomadas pelo poeta e o que destas resultou, ou seja, entre fazer uma gaiola, chamar pela serpente e pôr água na estrofe e, respectivamente, o facto de um pássaro não cantar quando está preso, o facto de Eva temer serpentes e o facto de os versos não reterem a água.
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   


   
A complexidade da escrita.
   
No poema de Nuno Júdice, descreve-se o processo de escrita e se enunciam as dificuldades por que passa o poeta para escrever o poema, simbolizadas em versos como «e o pássaro foge-lhe do verso» (verso 2), «e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou» (verso 4), «e a flor murcha no jarro da estrofe» (verso 6).
   
   
O percurso de um poema.
   
No poema, representam-se fases do processo de criação poética, uma vez que se enunciam decisões tomadas pelo poeta, o que delas resulta, a interrupção do acto de escrita, o regresso à escrita e o momento em que se dá o poema por terminado.
   
(adaptado de: Exame Nacional do Ensino Básico. Prova 22/1ª chamada, GAVE, 2010)
      
   
   
  
   
     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/13/poema.aspx}