terça-feira, 1 de novembro de 2011

«POEMA DE AMOR» POR EDMUNDO DE BETTENCOURT


   

       
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas.. .
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
     
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...
    
De Poemas de Edmundo de Bettencourt1963.
     

     
 Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
           
                
             
           





O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. | Maria Alzira Seixo

              
        
Se aceitássemos a ideia de que o amor é uma criação da ideologia romântica, como pensam muitos historiadores e teóricos (v. g. Christian David, L’État Amoureux, na senda da psicanálise, ou Jonathan Culler, Literary TheoryA Very Short Introduction, na senda da semiótica e da desconstrução), e entendêssemos a aproximação física e espiritual das pessoas como uma articulação privilegiada entre reacções somáticas de natureza química e interesses sócio-culturais de conjuntura, uma grande parte dos escritos da literatura prescindiria das interpretações críticas mais ou menos protocolares que lhes têm sido dedicadas. O espírito do tempo consagrou diversas formas da manifestação erótica na arte, desde os amores intrafamiliares ou da pederastia nos seus primórdios, passando pela fin'amors medieva e pelo seu avatar humanista que encontra em Petrarca um génio da expressão, diversificando-se na riqueza dos tempos clássicos pela sócio-afectiva rejeição do desejo da Princesse de Clèves ou pela abertura folgazã de Moll Flanders, pelo sentimento dramático-social do corpo experimentado por Manon e pelo puritanismo cristalino de Julie, para forjar o seu modelo de pureza e sensualidade no Werther ou na Dama das Camélias, a oscilar de tremuras de êxtase entre o autodomínio sábio de Ellénor (Adolphe) e a entrega incauta de Teresa (Amor de Perdição). Falo sobretudo de mulheres, reconheço (é natural!), e reconheceremos também que tudo isto acaba (ou começa) na comovente Ema, que Flaubert, por alguma razão quiçá mais do que literária, ligou para sempre a si próprio. Pelo que convém lembrar que Barthes, nosso contemporâneo e lúcido analista do comum enredamento na ideologia, propõe a título individual (como já o fizera Proust, e por isso mesmo alcançando a universalidade maior) uma concepção fragmentária e dispersa do amor que soma isso tudo, feita de estados desligados, de situações extemporâneas, de mitos, de fábulas c de vivenciados estados poéticos, mas sempre vincando esse excesso que dá afinal o afecto (Fragments d'un discours amoureux).
          
Falo nisto porque o «Poema de Amor», de Edmundo de Bettencourt, aparece carregado de uma sensibilidade patrimonial do erotismo literário que simultaneamente assume, critica e lateraliza, numa vertente verbal que parece conter Iodos estes dados. O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. Mas nada nele comunica directa ou explicitamente a temática amorosa, a não ser o título e a expressão convencional repetida, no texto, da mulher amada, em terceira pessoa e não de acordo com uma invocação comum na interlocução do circuito afectivo, realizado ou malogrado. O malogro é aqui transmitido pela irrupção do fogo final, já que as águas, que dominam em número de ocorrências (é um poema por onde o amor escorre), se transmudam a dada altura em lágrimas, e o fogo como ardor amoroso vai praticar a anulação destrutiva pela agressão e pela antropofagia imaginária e simulada, do outro e naturalmente (leia-se: de acordo com uma certa forma de natureza) de si.
          
Atentemos no discurso do texto. A noite é nele sobretudo um cenário, a marca simultânea da intimidade e da partilha, como da treva do sentimento negativizado, que as «águas negras» recebem. A noite é cheia de vales e baías é um verso que elide o sujeito na sua remissão a uma projecção cósmica, de natureza romântica (Leopardi, em contexto similar: «Dolce e chiara é Ia notte senza vento»), mas que constrói, à luz do que vai seguir-se, a paisagem do corpo feminino e da sua articulação ao outro («cheia»). O peito aberto, metonímia de um outro motivo literário, o do coração, faz alastrar por essas baías um rio largo de sangue, condensando a sugestão do sofrimento com a do funcionamento do corpo, interior e nocturno. Por isso as águas, na simbólica do tempo que transforma e se esvai, aparecem logo, senão ensanguentadas, pelo menos «densas», «negras, pastosas», «alcatrão rolante» de uma quotidianidade rotineira e banalizadora da visão natural edulcorada, como do amor doce e tranquilo. E aconstrução prosódica que as refere, em verso livre e compacto, de intensa concentração nominal e pouquíssimos verbos, insiste em nasais de assonância e aliteração que dizem esse obsessivo deslizar. O tempo assim movido «arrasta»serpentes mortas, conjugando então a sugestão seminal masculina com motivações femininas bíblicas da sensualidade e do pecado (pluralizadas, note-se). Daí que o sujeito reitere a menção líquida interrogando-se, em visão subjectiva especular de uma incerteza de conhecimento e de determinação: Águas?, lexema a constituir por si só, monossilabicamente e de modo impressivo, um verso. É a sugestão rotineira do «alcatrão rolante» que acarreta a adversativa, a contrapor à visão sangrenta uma forma protocolar de pureza e alegria, a das águas «verde-claras», «em transparência lucilantes», movimentadas paradoxalmente em ascensão, e apontando as estrelas (que o texto — que nada diz e apenas constrói, como que em verbais «passos em volta» — precisa, rebaixando e aprofundando em abismo: «do mar»); e a referência contígua ao polvo, passando da entidade seráfica estelar à hipótese do monstro, constitui-se em diabolismo ostensivo de uma sugestão de ameaça, de solidão ou mesmo de naufrágio, devolvendo o texto à área de negatividade semântica que o sangue inicial inaugurava, e que a mulher-Medusa e-Medeia (cabelos enredantes de algas e depois de fogo, devoradora de filhos) vai a seguir subtilmente prolongar.
          
Porque é então que a paisagem se esboça concretamente em vulto feminino, a partir da sugestão terrestre dos vales e baías iniciais, abertos à penetração do mar:Plantas brancas e extáticas... (ela surge em estatismo, ou em êxtase, dissolvida nas águas que a tomaram e anularam); mas, de forma magistral, o início do verso seguinte,Lágrimas... nuvens..., converte as águas e o «cimo» anteriores (essa água penetrante e encorpada) em dor e incerteza, que a figura da mulher, desencadeada subitamente e em massiva expressão de diferenciados aspectos, durante cinco concentrados versos compõe: com a inusual menção primeira da «cabeça» (indiciada em anáfora narrativa dessa dor e incerteza: «e»), as referências seguintes ao «perfil» e aos «olhos» integrar-se-iam numa figuração canónica, não fora a mudança abrupta do verso, que a corta (agride, esquarteja), antes justamente de lhe mencionar «todo o corpo», enquanto corpo amado, e de lhe chamar os nomes da dualidade tradicional romântica antitética (prostituta/virgem, bela/feia, velha/nova, mãe/madrasta), onde aliás algumas antíteses se convertem em oxímoros (ela é bela e feia, é velha e nova), de um barroco feito, no enquadramento presente, sensibilidade modernista. Dualizada, esquartejada, amada pela diferenciação que oferece (apelo do céu, fundura abissal, fragmento terreno — «ilhéus e lodosos calhaus / que se descobrem» —, entrega ao fogo da consumpção), ela é terra e motivo de suspensão da água e do fogo (torna lodosas as águas, envolve-se de chamas), atraindo, enquanto margem de uma mudança e de uma decisão (a mudança das águas, a decisão de anular), a atenção (faminta) do sujeito e a escrita (em desvios) do poema.
          
O envolvimento moral do sujeito implica-se então na designação judicativa e afectiva da mulher (essa mulher amada), que desemboca no fogo amoroso, electivo e destruidor, que a pretende imolar. E essa consumpção apela de modo conjuntivo para a visão da máquina (que, através do «guindaste», prolonga a linha semântica do «alcatrão rolante»), que é agora agente de uma forma, já não de deslize, mas de novo de ascensão, a da vergastada punitiva e demonstradora que, aliada à metáfora do fogo, esquarteja a mulher exibindo o seu pecado e força atractiva. De «serpente» mefistofélica, de paisagem repousante e enganadora feita Ofélia letal, a mulher passa a presa: presa dessa paisagem e terra que constituem o seu «lodo», e são a primeira força da sua anulação; presa do fogo-guindaste que a exibe consumindo-a; mas presa sobretudo de outro réptil que não ela, e que o sujeito objectualiza na comutação interrogativa de si próprio com as águas (Águas?), transmudada depois em comutação de si com outra forma de réptil, também pluralizada, como as serpentes: a margem donde os crocodilos fogem mastigando. São esses crocodilos famintos, desejantes, que pisam também a terra («o chão») para a tomada definitiva do corpo depois de todas as consumpções: brilham mandíbulas / naturalmente à espera... O animal aglutina o humano e o natural, despersonalizado pela pluralização, e tornando ainda mais incerto o destino da articulação homem-mulher. Da plenitude afirmada da noite o poema passa à indefinição de um final sem fim, de uma anulação cujo empenho e ardor não significam morte. «Thanatos» limita-se a um gesto antropofágico de satisfação agressiva e «Eros», em rigor, parece resistir.
          
Partindo da fecundante noite inicial, o poeta atravessa as vicissitudes e mutações do afecto incerto e magoado para desembocar numa expectativa de anulação que não é possível preencher. António Lobo Antunes, no seu último romance, Que farei Quando Tudo arde?, constrói um capítulo («Gosto desta casa porque era onde a minha mãe mexia a sopa») sobre a glosa deste poema, a ele anexando outros do mesmo autor através dos quais acentua dois veios simbólicos dos mais ricos que tratámos, o da água(v. g. «As Meninas Velhas») e o da antropofagia amorosa (v. g. «Asas»). Nele se ocupa da questão sócio-afectiva do travesti, pelo que pensamos que a palavra poética heterogénea de Edmundo de Bettencourt, talentosa e original, alarga a sua paisagem e prolonga a expectativa criada num alimento renovado de leituras.
            
Maria Alzira Seixo
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
   
   
  
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
  
Edmundo de Bettencourt

Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt”. Herberto Helder. Em Documenta Poetica, 6 de agosto de 2009.
  
        





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/01/EdmundodeBettencourt.aspx]

sábado, 22 de outubro de 2011

A NOITE DE ONTEM FOI MUITO COMPRIDA... (Juião Bolseiro)

       
        
Jogral galego da época afonsina, Juião Bolseiro carateriza-se pelos temas que tratou: os ciúmes, as noites de insónia e as barcas que trazem o amado de terras distantes.
          
         
                    
         
         
Da noite d' eire poderam fazer,
grandes tres noites, segundo meu sém,
mais na d'oje mi vo muito bem,
         ca veo meu amigo,
e ante que lh'enviasse dizer rem,
         vo a luz e foi logo comigo.
        
E, pois m' eu eire senlheira deitei,
a noite foi e vo e durou,
mais a d'oje pouco a semelhou,
         ca vo meu amigo,
e, tanto que mi a falar começou,
         vo a luz e foi logo comigo.
        
E comecei eu eire de cuidar
[ e ] começou a noite de crecer,
mai-la d'oje nom quis assi fazer,
         ca vo meu amigo,
e, faland' eu com el a gram prazer,
         vo a luz e foi logo comigo.
        
Juião Bolseiro, B 1166 / V 772
        
__________
v.1 “eire”: ontem.
v.2 “segundo meu sém”: em minha opinião.
vv.3 e 9 “mais”: mas.
v.15 “mai-la”: mas a.
        

        
        
   
http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg
        
        
        
A cantiga de amigo “Da noite d' eire poderam fazer” de Juião Bolseiro (jogral galego do século XIII) desenrola-se em torno do tópico da brevidade da noite que foi passada com o amigo (pois depressa veio a manhã, provocando a separação), em comparação com a noite anterior, que tinha sido passada sozinha.
Todo o contraste, a antítese entre a noite anterior e a noite de hoje, está engenhosamente patente nos processos estilísticos utilizados pelo trovador ao longo da cantiga. De um lado, temos a noite de ontem extremamente longa (“poderam fazer / grandes tres noites”; “a noite foi e vo e durou”; “começou a noite de crecer”); do outro lado, a noite de hoje extremamente breve, contrastando, até nas próprias palavras da amiga, com a do dia anterior (“mais na d'oje mi vo muito bem”; “mais a d'oje pouco a semelhou”; “mai-la d'oje nom quis assi fazer”).
O contraste expressa-se também pelo destaque no início de cada estrofe dado à noite de ontem (os primeiros versos de cada estrofe não rimam), em comparação com o destaque dado à noite de hoje através do refrão. Temos, assim, um verso de palavra perduda (ou seja, em evidente destaque), em confronto direto com o refrão. Dir-se-ia quase que era difícil para a donzela distinguir qual o mais intenso, o sentimento de demora da noite de ontem ou o sentimento de brevidade (breve, porque feliz) da noite de hoje. Sente-se, no entanto, no final da cantiga, uma evidente sobrevalorização da noite de hoje passada com o amigo em detrimento da noite de ontem, pelo intercalar de um verso no meio do refrão. Este verso denota, de estrofe para estrofe, uma gradação intensiva (na 1ª estrofe dá-se conta da enorme brevidade da noite: antes que lhe conseguisse dizer alguma coisa; enquanto que na 3ª estrofe já se dá conta do enorme prazer que ela proporcionou (“faland' eu com el a gram prazer”). A noite de ontem serve, pois, como pretexto, como termo de comparação com a noite mais recente, como se pode ler na seguinte paráfrase: “que feliz que foi esta noite, contudo tão fugaz, enquanto que a de ontem nunca mais tinha fim”.
Ao longo destas três estrofes em que se constata um paralelismo temático, a importância da noite mais recente em confronto evidente com a anterior é ainda ressaltada pela anáfora “mais a d’oje” iniciada com a adversativa.
        
    
http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_004.1_VIII.jpg
        
        
Semelhante à alba, género provençal medieval, esta composição poética de Juião Bolseiro descreve a contrariedade dos amantes que, depois de passarem a noite juntos, devem separar-se, visto que o seu amor é clandestino.
«Segundo Alfred Jeanroy (1889)os elementos constitutivos da alba son: o encontro nocturno, o grito da sentinela, ou alerta que anuncia a chegada inesperada do día e a despedida dos amantes, lamentándose pola brevidade da noite. Estes requisitos só se cumpren nunha minoría de composicións e en calquera caso non se poden considerar albas máis que unhas dezaseis occitanas e catro francesas, escritas nun breve período entre finais do século XII e comezos do XIII. Si son abundantes as variacións sobre o esquema tipo, tratado con gran flexibilidade: o canto de separación pode ser un monólogo de muller ou ben un diálogo entre o vixía e un dos amantes, a función de sentinela pode cumprila o galo que anuncia a mañá, etc.
Na tradición lírica galego-portuguesa non aparece nunca o esquema tópico do xénero, nin na súa modalidade completa nin nas variantes redutivas. Hai vestixios do xénero provenzal, pero esporádicos, marxinais, e sempre inmersos na atmosfera dacantiga de amigo, que serven para enriquecer o acervo formulístico da canción feminina. Aplicouse o nome ás composicións nas que aparecía a palabra alba, mais esta presenza no texto non garante a súa inclusión no xénero. Todas estas razóns levan a excluír textos como Levóu'a louçana, levóus'a velida (134,5), de Pero Meogo, Levantou-s'a velida(25,43) e De que morredes filha, a do corpo velido (25,31), de Don Denis. TaménAquestas noites tan longas que Deus fez en grave dia (85,5) e Da noite d'eire poderam fazer (85,7), de Juião Bolseiro, pois o tratamento da noite e da luz matinal inverte os significados que se lles asignan nas albas. Polo que respecta a Levad'amigo que dormides as manhanas frías, de Nuno Fernandez Torneol, considerada unanimemente unha alba polos críticos, Tavani cre que non cumpre os requisitos básicos para considerala unha alba de pleno dereito.» («Alba» verbete da Base de dados do Dicionario de Termos Literarios. Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades.)


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


 

    
   
        
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/22/B1166V772.aspx]

sábado, 15 de outubro de 2011

TODALAS COUSAS EU VEJO PARTIR (Joan Airas de Santiago)

      
Todalas cousas eu vejo partir é uma cantiga d’amigo que reúne motivos excepcionais na poesia amorosa dos Cancioneiros, como é o da confiançada protagonista na fidelidade do amigo e o da exaltação da firmeza do seu amor em contraste com a mutabilidade de um mundo em que tudo muda irremediavelmente. Elsa Gonçalves, A Lírica Galego-PortuguesaLisboa, Editorial Comunicação, 1983.
          
         
                 Cantigas de Amigo
         
         
         
Todalas cousas eu vejo partir
do mund' em como soíam seer,
e vej'as gentes partir de fazer
ben que soíam, tal tempo vos vem!,
mais non se pod'o coraçom partir
           do meu amigo de mi querer bem.
Pero que ome part' o coraçom
das cousas que ama, per bõa fe,
e parte-s'ome da terra ond'é,
e parte-s'ome d' u gran[de] prol tem,
non se pode parti-lo coraçom
           do meu amigo de mi querer bem.
Todalas cousas eu vejo mudar,
mudam-s'os tempos e muda-s'o al,
muda-s'a gente em fazer bem ou mal,
mudam-s' os ventos e tod'outra rem
mais non se pod'o coraçom mudar
           do meu amigo de mi querer bem.
         
Joan Airas de Santiago, B 963/V 550
         
_________
vv. 1-2: vejo todas as coisas do mundo deixar (“partir”) de ser como costumavam.
v. 4 “tal tempo vos vem!”: assim vão os tempos!
vv. 5-6: mas não pode o coração do meu amigo deixar de me querer bem.
v. 7 “pero que”: ainda que.              “parte”: afasta.
v. 14 “o al”: o resto.
         
         
                 Poesia Trovadoresca Galego-Portuguesa - ilustração
         
         
Na cantiga de amigo “Todalas cousas eu vejo partir” o sujeito poético conta que tudo passa e só o amor permanece.
palavra tema é “mudar”, utilizada cinco vezes como verbo (e na variação sinonímica “partir” utilizada sete vezes). Sendo assim, a cantiga estrutura-se na seguinte antítese: nos primeiros quatro versos de cada estrofe afirma-se que tudo mudou; no restante verso e respectivo refrão monóstico, exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada estrofe) – figura retórica denominadalitotes.
São capdenals as estrofres I-III, coincidindo com o paralelismo sintáctico aí existente, em que se repete a primeira parte dos versos 1 e 5 e varia-se mediante o processo de substituição da palavra rimante por outra que, no contexto, contém a mesma ideia (partir/mudar). Os versos em questão ainda estão envolvidos num outro processo versificatório  que é o dobre (I - “partir”, II – “coraçom”, III – “mudar”). É colocado em contraste, mediante estes processos, a mudança que sobre o mundo “todalas cousas”, “as gentes” e, até, o “ome part’o coraçom / das cousas que ama” -, por um lado, e, por outro, a adversativa “mais” a marcar a negação (“nom”) da possibilidade em o “coraçom” do amigo ceder àquela mutabilidade que predomina.
Convém notar que as estrofes capfinidas I-II põem em relevo a palavra “coraçom” que, metonimicamente, é a sede do amor.
Põe-se, deste modo, em contraste a razão pela qual se move o coração: num caso o “ome” – não se sabe qual, é indefinido – afasta-se das “cousas que ama”. E, iniciando os versos por um processo de intensificação que é a anáfora (“e parte-s’ome”), o sujeito poético diz que essas “cousas” são a “terra ond’é” e a “prol” que possui. No outro caso, o amigo não se afasta de “querer bem” a protagonista. Desta maneira, exalta-se não só a figura da amada, mas, também, a do amigo, porque continua a manter-se fiel a esse amor que nutre por ela.
Na última estrofe, o uso da anadiplose “mudar” / “mudam-s” chama-nos a atenção para o factor mudança reforçado pelo uso anafórico e pela acumulação polissindética.
Muda-se, pois, “tod’outra rem” (variação: “o al”).
rima interna “tempos”, “ventos” aponta exactamente para a ideia de transitoriedade.
Até se muda “a gente em fazer bem ou mal”, ideia que também está expressa na primeira estrofe, quando se diz que “as gentes” afastam-se “de fazer / bem que soíam”. Aqui, salienta-se que a mudança faz-se para pior, num processo de desconcerto.
Resta notar que se, por um lado, a cantiga é muito melódica por causa do paralelismo, como vimos, por outro lado, a fuga a essa tendência para a monotonia é descoberta mediante o uso dos vários formalismos já referidos e também das estrofes ditas singulares.
         José Carreiro, 28/02/1992.

PODE TAMBÉM GOSTAR DE:

 Poesia trovadoresca galego-portuguesa: síntese didática



► Programa televisivo "Neste lugar onde... a poesia dos trovadores" da série Um mais um igual a um. Natália Correia, Carlos Alberto Vida, RTP, 1981.

    

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/15/B963V550.aspx]