Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar.
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos, estampadas…
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem da manhã.
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida.
Aqui uma janela discreta que se abre, preta, cega.
Ali outra fechada.
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se…
E eu, ai eu! prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos, estampadas…
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem da manhã.
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida.
Aqui uma janela discreta que se abre, preta, cega.
Ali outra fechada.
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se…
E eu, ai eu! prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!
Irene Lisboa
Revista de Portugal nº 3, 1938
Revista de Portugal nº 3, 1938
No poema de Irene Lisboa é feita a descrição de um bairro de Lisboa, a Lapa. No entanto, não se trata de uma descrição precisa, pormenorizada, como fazendo parte de textos narrativos. Aqui o que assume maior importância não é o lugar, o espaço exterior, mas as impressões que alguns aspetos particulares desse espaço provocam no sujeito lírico; a forma pessoal, única, como este os vê – «Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar». Essa visão subjetiva, original, da realidade traduz-se na seleção de vocabulário e na criação de associações de palavras pouco usuais – o verbo «cair» no 1º verso, em vez de «voar»; as «árvores soturnas» (personificação); «uma janela discreta». Está igualmente nas exclamações, expressivas apesar de sintéticas. – «Estio!», «Elegante Lapa!». O sujeito vai-nos transmitindo a sugestão desse lugar como se fosse acumulando «pinceladas» – «Aqui uma janela / Ali outra recolhida».
E, por fim, o que ressalta deste esboço de descrição é a expressão de um sentimento individual – «E eu, ai eu! prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!»
Guia de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário Recorrente,
Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário, 1997. Nº de Depósito Legal – 115 892/97
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/01/largo-de-cacilhas.html |
DE CACILHAS RIO A LISBOA
De cacilhas rio a lisboa
insane chove triste ai u é
o navio a travessia inane
que outras foram neste dizer
ai u é
d’outras falta o destino
Fernando Martinho Guimarães, Cacilhas, 08/01/1993
apenas um tédio que a doer não chega, Lisboa, Edições Fluviais, 2005
apenas um tédio que a doer não chega, Lisboa, Edições Fluviais, 2005
TODOS OS DIAS
Todos os dias, depois do almoço,
era o das duas e quinze Ermesinde
S. Bento, a porta aberta manualmente
e a sedução do aviso: partir
em caso de emergência. Todos os dias
era esse horror vacui cheio de
parêntesis, prédios, subúrbios,
gente que saía a correr na pressa
de chegar à rua para repartir
talvez com um ou outro vagabundo
a mesma indiferença pela vida.
Carlos Bessa, Em partes iguais
Lisboa, Assírio e Alvim, 2004
Lisboa, Assírio e Alvim, 2004
LISBOA ANTIGA
Lisboa, velha cidade,
Cheia de encanto e beleza!
Sempre a sorrir tão formosa,
E no vestir sempre airosa.
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
Das festas, das seculares procissões,
Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
Lisboa, velha cidade,
Cheia de encanto e beleza!
Sempre a sorrir tão formosa,
E no vestir sempre airosa.
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
Das festas, das seculares procissões,
Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
Cheia de encanto e beleza!
Sempre a sorrir tão formosa,
E no vestir sempre airosa.
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
Das festas, das seculares procissões,
Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
Lisboa, velha cidade,
Cheia de encanto e beleza!
Sempre a sorrir tão formosa,
E no vestir sempre airosa.
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras,
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais!
Das festas, das seculares procissões,
Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
José Galhardo e Amadeu do Vale
"Lisboa Antiga", por Riko Dorilêo
LISBOA-94
Descri do tempo: a vida arrependeu-se
se de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro fogo
que mais ninguém conhece — ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa essa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos — engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vás dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.
se de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro fogo
que mais ninguém conhece — ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa essa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos — engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vás dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.
Fernando Pinto do Amaral, Às Cegas, 1997
© José Carreiro |
ELEGIA DE LISBOA
“Nas nossas ruas, ao anoitecer”,
abre-se num olhar a pena errante
de quem se ilude em passos vagarosos,
em mais um jogo incerto de cem luzes
sob este céu tão baço. Como sempre,
os mudos automóveis sobem, descem
ruas e ruas rumo a outras ruas
polvilhadas de gente que regressa
sem ter partido- insectos ondulando
ao som das lentas horas fatigadas,
rostos esfarrapados de trabalhos
inúteis como a tarde que se entrega
às doces mãos secretas do crepúsculo
vibrante no declive dos telhados
em degraus sobre o Tejo. Devagar
cola-se ao espírito a membrana escura
dos sonhos que perdi ou que pedi
há tantos anos à eternidade
e agora se dispersam na colmeia
das pequenas janelas reacesas,
no bafo das famílias indiferentes
no seu “tinir de loiças e talheres”,
suspensas de ecrãzinhos onde vêem
outras famílias e outras indiferenças
até ao infinito. As sombras crescem
quando a lua aparece e pouco a pouco
a solidão retoma os seus direitos,
devora o que ainda resta do azul
e eu vou descendo a pé, já transformado
num perverso turista acidental
e condenado a “combater em vão
o velho tédio” ocidental, em bares
onde reagem faces conhecidas
em acenos voláteis que se cruzam
com esse aroma surdo e espesso e dócil
das vozes que por vezes me esvaziam
qualquer recordação. Bairro nocturno
confundo os teus caminhos-labirinto,
os nomes das vielas inconstantes
e ao percorrê-las «temo que me avives
uma paixão» recente, a esvoaçar
ainda não defunta, mas talvez
moribunda por entre a marabunta
que vai enchendo, enxameando as caves
onde se compra e vende cada rosto
e onde mergulho cego e surdo e fico
senhor da sua imagem, de repente
unida às gargalhadas tão ingénuas
das viciosas bocas florescendo
na treva, procurando novas bocas
algures. Cá fora, a verde camioneta
recolhe as sensações de mais um dia
exausto. Recomeço o meu circuito,
arranco e desço mais um pouco, até
à zona antigamente industrial,
aos pálidos felizes contentores
sob a penumbra imensa dos guindastes
quase irreais. Alguns amigos entram
em armazéns de espuma onde exercito
os fúteis bocejantes sentimentos,
a mais falsa alegria, a peregrina
febrícula do espírito embrulhado
em whisky ou nas falas transparentes
de alguém que por acaso eu poderia
talvez amar- “ I´m so crazy for you!”-,
mas não há “ nunca nada de ninguém”,
só esta bílis negra que me espera
á saída dos últimos lugares
acompanhando agora o rio que alastra
e se mistura à crónica euforia
de uns “ tristes bebedores” que mal trauteiam
frágeis franjas de música boiando
no seu vazio que é também o meu
quando parto agarrado a um volante
e na aragem dos vidros entreabertos
saboreio um cigarro que se evola
só para ti, Lisboa. Sempre quis
pulsar ao mesmo ritmo que tu,
transpor este deserto e conseguir
em golfadas de versos libertar
o encarcerado sopro do teu peito-
- cidade atravessada de armadilhas
traindo e atraindo cada gesto
das poucas silhuetas ainda vivas
sob os pilares da ponte. Ò vã Lisboa,
cai sobre mim o peso dos teus sonhos,
“quimera azul” da minha dor sem pátria,
e entre dois semáforos suplico-te:
apaga do meu corpo o sobressalto
dos seres de carne e osso, dessa estranha
realidade apenas virtual
que me despe de todos os fantasmas
e fica projectada no silêncio
das cinco e meia, enquanto vou seguindo
a “correnteza augusta das fachadas,”
as pombalinas rectas, um cortejo
de iluminadas cinzas. Uma estrela
parece ter sorrido para mim
como se finalmente esta cidade
me confiasse a rota imperceptível
das suas ondas a perder de vista-
-“ marés de fel, como um sinistro mar,”
caudal por onde singro e me despeço
do sangue de quem solta, solitário,
algum suspiro em quarto derradeiro
até ser minha a cor da tua voz,
ó morte a que abandono luz e sombra,
o grito do meu nada ainda em fuga,
mas de súbito em paz entre os teus braços.
Fernando Pinto do Amaral, A cinza do último cigarro, 2000
© José Carreiro |
À ESPERA DO PRIMEIRO ELÉCTRICO
Outros que critiquem
o planeamento do território,
os crimes urbanos, a droga
que pacifica os estados
aparando sedições virtuais.
Apetecia-me comer, agora,
mas os poemas só têm valor real
(isto é, monetário) na lua
de Bergerac. No Martim Moniz,
em perpétua demolição,nem cheques
aceitam — quanto mais versos
que não rimam com nada.
Tenho à minha frente o futuro,
um futuro de três cervejas
e talvez de um charro,
se encontrar alguém. Um futuro breve
(a redimir ou não nas ruas mais altas),
nenhuma vontade de amor
e os pés acentuadamente azuis
— fétidos, sem dúvida alguma.
Já me propus, em dias de tédio maior,
escrever um poema vário, curar-me
destas ladainhas pouco edificantes.
Não deu, paciência. Consola-me ao menos
a irrefutável pobreza do quotidiano.
Estamos bem um para o outro
(mas uns trocos davam jeito, com real ou sem
ele — e eu não sei arrumar carros).
A noite lá faz o que pode.
Manuel de Freitas, Os Infernos Artificiais, 2001
Estátua do Marquês de Pombal, Lisboa, 1930. |
ULISSES – OLISIPO
Desenham-se no céu os números da solidão
por onde James Joyce conseguiu escrever o romance
Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração
eu, a minha solidão, o meu transe
A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia
o meu desespero projecta a minha intoxicação
Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade
eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração
O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar
cidade de Dublin, Lisboa
também eu te vou a cantar.
Grande a nostalgia do teu néon luminoso
a sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso
Aqui a enorme cidade aqui a tentacular
o meu crime é de estudar o céu que me invade
e onde arranha o arranha-céu.
António Gancho, O Ar da Manhã
Lisboa, Assírio & Alvim, 1995
Lisboa, Assírio & Alvim, 1995
LISBOA
Do rio Lis, boa, Lisboa diz
«Eu sou do rio Lis, boa».
Lisboa é, Lisboa tem
ralé, gente bem,
gentio da Guiné,
ladrões de quem,
a Sé, o dia mais o Tejo
e finalmente Lisboa é tudo o que vejo.
Fé em tudo o que tem
a verdade de ela ser de todas e
entre todas a maior cidade
de ela ser entre todas a mais bela cidade
e à janela Lisboa poisa triste
olhando além o cais
e a tudo quanto existe diz
«Mais, mais, mais».
Lisboa, sempre,
quente no Verão,
mais álvida no Inverno,
Lisboa, desce, então,
do rio Lis, boa,
eterna parábola do que no seu nome soa.
E Lisboa vem para baixo desce
faz-se mais baixo, acho e cresce que
Lisboa desde o Lis para boa ou para flor
diz e sempre diz e mil vezes diz.
«Sim, eu sou Lisboa por favor».
António Gancho, O Ar da Manhã, 1995
© José Carreiro |
LISBOA, 4 DE JULHO DE 2004 (DOMINGO)
Há uma glória neste lugar solar
por sobre a sombra, o desabrigo,
ladeando ventos, passos, vozes,
pássaros de água
Há sob o sol antigo (sol alheio, de sobranceria)
um acolhimento, como se ele apenas contigo
houvesse agora entendimento e no princípio
da praia, solitário, te esperasse.
Para trás ficou a cidade — a cidade-estuário,
a cidade azul levantada pelo rio, a cidade olhada,
percorrida, no bater do coração de tanto Verão —.
amarga e amada e na tarde da terra o trabalho
avança, contigo para o sem-nome da distância,
solitária e azul
Maria Andresen, Livro das Passagens
Lisboa, Relógio d’Água, 2006
Lisboa, Relógio d’Água, 2006
LISBOA, INVERNO DE 2006
Pelo grande azul que ao sol se mistura
e a leve toldação de névoa
esta é uma manhã em que está ela
E com ela assim passamos e tocamos
não no mistério mas nesta face clara
Aqui no grande Terreiro da cidade não há o
contínuo coro das cigarras, metálico, estridente
e sem monotonia, canto da terra encarnada
Solo que do solo sobe como se eco do sol fosse
Sobe como estrídulo louvor em lugares deificados
Aqui não há isso, mas modulações ventosas
vindas na linha de água ao fundo da manhã
Por isso aqui em manhãs de sol e sob o frio
a alma sobe e podes procurá-la – ela estará
Colada ao sítio das cigarras, ao sol agradecida
desadornada e alvíssima como se não houvesse havido ida
Maria Andresen, Livro das Passagens, 2006
AVENIDA ALMIRANTE REIS
Os corpos encostados à parede
talvez recordem paisagens brancas,
uni inverno ucraniano com árvores
perdidas na neve. Que outros olhos
viram estes olhos? Eu passo por eles,
eles não me vêem. Partilham a garrafa
de vinho, um pente. E a montra do café,
apagada e triste, serve-lhes de espelho.
José Mário Silva, revista Relâmpago nº12, Abril 2003
CIDADE
Imensa, troglodita, ambiciosa,
vai a cidade até à praia;
perdeu no campo as rochas cor-de-rosa,
e o mar, se a busca, evita-a, não desmaia,
antes se ergue negro contra o desconforto.
O rio leva casas debruçadas
que já, com o tempo, foi cavando em arcos
de perfil sem cal, inclinado e morto...
e leva também barcos.
No céu, as nuvens correm desviadas,
enquanto o Sol, em dardos, sobre o mar as crava.
Jorge de Sena, Coroa da Terra, 1946
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/04/lisboa.aspx]