HEROICAS
XL
(Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes.)
Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.
Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.
Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa duma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
‑ e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.
Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de não ter cólera.
Ódio à primavera
‑ essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.
Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
‑ só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.
Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.
Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...
Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!
Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
‑ mas só homens e Terra.
levanto a minha voz
para pregar o ódio.
Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.
Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa duma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
‑ e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.
Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de não ter cólera.
Ódio à primavera
‑ essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.
Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
‑ só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.
Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.
Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...
Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!
Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
‑ mas só homens e Terra.
José Gomes Ferreira
poema XL da série Heroicas (1936-1937-1938) in Poesia I, 1948
Pertencente a “Heroicas”, reunião de poemas de 1936 a 1938, destinado ao volume Líricas e Heroicas, que não chegou a ser publicado como tal, o poema “XL” dá bem uma ideia da poesia engajada de José Comes Ferreira. Escrita no fragor da Guerra Civil Espanhola, como denota a epígrafe entre parênteses, a composição transpira aversão ao lirismo comedido, compassivo, de que é feita a poesia recheada de boas intenções. O ódio serve-lhe de estribilho e sustentáculo, um ódio espesso e universal — “às lágrimas mal choradas diante dos poetas (...), ao mar a modelar deuses (...), à primavera (...), às serenatas (...),etc. —, apenas remediado pela esperança na “Salvação do Mundo / sem anjos / nem demônios / — mas só homens e Terra”. Poesia de fone acento cotidiano e humanista, aproxima o autor do Neorrealismo, por coincidência de atitudes e não de programa, como reconhecem os filiados a essa corrente dos anos 40 e seguintes. Poesia irrompida aos jatos, aos gritos, como em praça pública, perante um auditório que pode ser toda a Humanidade, num andamento ora whitmaniano, em versos de sinfônica cadência, ora contido, quase murmurado, como a reprimir um lamento, — não esconde o sentimento romântico que a impulsiona. Ainda é de notar a metaforização, de recorte surrealista, igualmente por espontânea convergência, fruto de uma sensibilidade aberta a tudo, inclusive ao onírico, ainda que o sonho mais acalentado fosse o “Ranger do Grande Dia”. As pulsões romântico-surrealistas é que preservam o poema de resvalar no prosaísmo vizinho do panfleto, frequente na poesia militante desse tempo, e explicam por que, retornando tão tarde para a poesia em livro, José Gomes Ferreira conquistou logo um espaço destacado na modernidade literária portuguesa do pós-guerra de 39.
Massaud Moisés, A literatura portuguesa através dos textos, p. 590
Só um poeta, José Gomes Ferreira, no caso vertente, poderia perceber esta relação umbilical: «Na verdade, a guerra de Espanha […] tomou conta das palavras». Apalavra revela-se, assim, investida do poder de operar o trânsito do caos ao cosmos, de um poder cosmogónico. Apalavrar o trauma, o drama, a tragédia, é já iluminá-los, inteligi-los, para compreendê-los, para superá-los.
Uma geração define-se sempre em função de um acontecimento histórico determinado. Neste caso, teria sido em função do acontecimento trágico da Guerra de Espanha que se definiu a geração neorrealista portuguesa e o carácter da sua intervenção artística nas questões que a provocavam1.
«Neste momento estremeço – como nos folhetins – a sentir pesarem-me nos bicos da pena três palavras que hesito em traçar no papel… Três palavras suscitadoras de comoções agras, noites insones agarrado à rádio e a amargura da derrota frente a frente ao caminho do Destino frustrado. Três palavras que ainda hoje me magoam como uma lâmina de arrepio no sangue.
Estas: guerra de Espanha… que o nosso grupinho viveu em morte semanas, meses, anos (sim, anos!), com as unhas enterradas na carne das mãos.
Mas não foi para sofrer em voz alta que as escrevi. Com essa evocação – ó manes de Lorca e de Machado! – pretendi apenas extrair as implicações literárias inerentes. Recordar que críticos vários insistem em considerar a guerra de Espanha como o marco principal da viragem da poesia na Europa, até então sob o domínio francês do surrealismo.
Na verdade a guerra de Espanha entrou em forma de tempestade pelas casas dos poetas dentro, partiu as vidraças das janelas, varreu a inspiração livresca, e a vida-vida tomou conta das palavras. Alguns poetas pegaram até nas espingardas para haver sangue nos versos.
Eu na minha gaveta fiz o mesmo. O que levou Adolfo Casais Monteiro a atribuir à guerra de Espanha a transformação do meu lirismo de pássaros – hipótese que não me repugna atentar se lhe juntarem o hitlerismo como prelúdio.
Mas, com franqueza completa, nem ao nazismo nem à guerra de Espanha fiquei a dever o meu horror à poesia de origem livresca, de que na realidade me libertara desde Viver sempre também Cansa. Livros, poucos. Apenas aqueles raros em que as palavras respirassem com pulmões e bocas de grito em canto» (José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras ou o Gosto de falar de mim, Círculo de Leitores, p. 154.)
No conjunto dos 40 poemas intitulado Heróicas (1936-1937-1938), incluso emPoeta Militante I, pp. 113-215, o tema da Guerra de Espanha é a triste musa inspiradora de José Gomes Ferreira, cujo teor mental se depreende das legendas antepostas a esses poemas numerados, de que destacamos, em nota de rodapé, algumas das mais significativas2.
José Marques Fernandes, “Recepção da Guerra de Espanha pelos intelectuais portugueses. Contexto e divergência” in Diacrítica ‑ Revista do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Série Filosofia / Cultura, n.º 21/2, 2007
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(1) Mário Dionísio preferiria a designação de Geração socialista, conforme se depreende da seguinte consideração: «…dificilmente encaixáveis numa expressão estética de visão marxista do mundo, que suponho a definição mais correcta do projecto neo-realista» (Mário Dionísio, «Prefácio». José Gomes Ferreira, Poeta Militante I, Círculo de Leitores, p. 15). No mesmo texto, esclarece Mário Dionísio: «O neo-realismo ou não de José Gomes Ferreira – problema que considero aliás de interesse assaz restrito – reduz-se para mim a esta conclusão bem simples, que em nada o diminui e afasta da caminhada comum: na área do seu campo magnético não há Revolução nos termos precisos decorrentes da visão de Marx. Há, sim, o sofrimento inconformado e rebelde da “Revolução Inverosímil imanente”, que o deslumbrou em Brandão e profundamente o marcou» (Mário Dionísio, «Prefácio». José Gomes Ferreira, Poeta Militante I, Círculo de Leitores, p. 17).
(2) II – [«A noite de hoje é tão diferente de todas as outras! Começa a jogar-se o Grande Destino Ibérico»]; III – [«Revolução em Espanha»]; V – [«Guerra Civil de Espanha: Sofro por sentir inúteis as armas das palavras»]; VI – [«Garcia Lorca foi fuzilado»: «Terra …remorso»]; XV – [«Começou o ataque à Cidade Heróica de Madrid. Há sempre uma cidade heróica na estrada dos tempos»]; XVII – [«Fui visitar o meu irmão Raul, preso pelo Governo Civil por não ter dado dinheiro para uma subscrição a favor dos fascistas espanhóis revoltados contra a 2.ª República»]; XX – [«Revolução dos marinheiros nos navios de guerra portugueses ancorados no Tejo. Foram vencidos e enviados pelos fascistas para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Futuro, decora este nome, símbolo de infâmia: Tarrafal»]; XXV – [«Um jovem comunista, recém-saído da cadeia, procurou-me para me dizer: “Vou para Espanha bater-me ao lado dos republicanos” »]; XXX – [«Fomos derrotados. O inimigo – treva (?) – que importa o nome? – não tardará a entrar na Cidade»]; XL – «Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes»].
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra
colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/09/homens.na.noite.do.desanimo.aspx]