segunda-feira, 9 de setembro de 2013

NA NOITE DO DESÂNIMO LEVANTO A MINHA VOZ (José Gomes Ferreira)


  
                
            
HEROICAS
XL
             
(Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes.)
             
Homens: na noite do desânimo 
levanto a minha voz
para pregar o ódio.

Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa duma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
‑ e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de não ter cólera.

Ódio à primavera
‑ essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
‑ só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
‑ mas só homens e Terra.
              
José Gomes Ferreira
poema XL da série Heroicas (1936-1937-1938) in Poesia I, 1948
             
             
Pertencente a “Heroicas”, reunião de poemas de 1936 a 1938, destinado ao volume Líricas e Heroicas, que não chegou a ser publicado como tal, o poema “XL” dá bem uma ideia da poesia engajada de José Comes Ferreira. Escrita no fragor da Guerra Civil Espanhola, como denota a epígrafe entre parênteses, a composição transpira aversão ao lirismo comedido, compassivo, de que é feita a poesia recheada de boas intenções. O ódio serve-lhe de estribilho e sustentáculo, um ódio espesso e universal — “às lágrimas mal choradas diante dos poetas (...), ao mar a modelar deuses (...), à primavera (...), às serenatas (...),etc. —, apenas remediado pela esperança na “Salvação do Mundo / sem anjos / nem demônios / — mas só homens e Terra”. Poesia de fone acento cotidiano e humanista, aproxima o autor do Neorrealismo, por coincidência de atitudes e não de programa, como reconhecem os filiados a essa corrente dos anos 40 e seguintes. Poesia irrompida aos jatos, aos gritos, como em praça pública, perante um auditório que pode ser toda a Humanidade, num andamento ora whitmaniano, em versos de sinfônica cadência, ora contido, quase murmurado, como a reprimir um lamento, — não esconde o sentimento romântico que a impulsiona. Ainda é de notar a metaforização, de recorte surrealista, igualmente por espontânea convergência, fruto de uma sensibilidade aberta a tudo, inclusive ao onírico, ainda que o sonho mais acalentado fosse o “Ranger do Grande Dia”. As pulsões romântico-surrealistas é que preservam o poema de resvalar no prosaísmo vizinho do panfleto, frequente na poesia militante desse tempo, e explicam por que, retornando tão tarde para a poesia em livro, José Gomes Ferreira conquistou logo um espaço destacado na modernidade literária portuguesa do pós-guerra de 39.
            
Massaud Moisés, A literatura portuguesa através dos textos, p. 590
            


            
Só um poeta, José Gomes Ferreira, no caso vertente, poderia perceber esta relação umbilical: «Na verdade, a guerra de Espanha […] tomou conta das palavras». Apalavra revela-se, assim, investida do poder de operar o trânsito do caos ao cosmos, de um poder cosmogónicoApalavrar o trauma, o drama, a tragédia, é já iluminá-los, inteligi-los, para compreendê-los, para superá-los.
Uma geração define-se sempre em função de um acontecimento histórico determinado. Neste caso, teria sido em função do acontecimento trágico da Guerra de Espanha que se definiu a geração neorrealista portuguesa e o carácter da sua intervenção artística nas questões que a provocavam1.
«Neste momento estremeço – como nos folhetins – a sentir pesarem-me nos bicos da pena três palavras que hesito em traçar no papel… Três palavras suscitadoras de comoções agras, noites insones agarrado à rádio e a amargura da derrota frente a frente ao caminho do Destino frustrado. Três palavras que ainda hoje me magoam como uma lâmina de arrepio no sangue.
Estas: guerra de Espanha… que o nosso grupinho viveu em morte semanas, meses, anos (sim, anos!), com as unhas enterradas na carne das mãos.
Mas não foi para sofrer em voz alta que as escrevi. Com essa evocação – ó manes de Lorca e de Machado! – pretendi apenas extrair as implicações literárias inerentes. Recordar que críticos vários insistem em considerar a guerra de Espanha como o marco principal da viragem da poesia na Europa, até então sob o domínio francês do surrealismo.
Na verdade a guerra de Espanha entrou em forma de tempestade pelas casas dos poetas dentro, partiu as vidraças das janelas, varreu a inspiração livresca, e a vida-vida tomou conta das palavras. Alguns poetas pegaram até nas espingardas para haver sangue nos versos.
Eu na minha gaveta fiz o mesmo. O que levou Adolfo Casais Monteiro a atribuir à guerra de Espanha a transformação do meu lirismo de pássaros – hipótese que não me repugna atentar se lhe juntarem o hitlerismo como prelúdio.
Mas, com franqueza completa, nem ao nazismo nem à guerra de Espanha fiquei a dever o meu horror à poesia de origem livresca, de que na realidade me libertara desde Viver sempre também Cansa. Livros, poucos. Apenas aqueles raros em que as palavras respirassem com pulmões e bocas de grito em canto» (José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras ou o Gosto de falar de mim, Círculo de Leitores, p. 154.)
             
No conjunto dos 40 poemas intitulado Heróicas (1936-1937-1938), incluso emPoeta Militante I, pp. 113-215, o tema da Guerra de Espanha é a triste musa inspiradora de José Gomes Ferreira, cujo teor mental se depreende das legendas antepostas a esses poemas numerados, de que destacamos, em nota de rodapé, algumas das mais significativas2.
           
José Marques Fernandes, “Recepção da Guerra de Espanha pelos intelectuais portugueses. Contexto e divergência” in Diacrítica ‑ Revista do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Série Filosofia / Cultura, n.º 21/2, 2007
                
_________________
(1) Mário Dionísio preferiria a designação de Geração socialista, conforme se depreende da seguinte consideração: «…dificilmente encaixáveis numa expressão estética de visão marxista do mundo, que suponho a definição mais correcta do projecto neo-realista» (Mário Dionísio, «Prefácio». José Gomes Ferreira, Poeta Militante I, Círculo de Leitores, p. 15). No mesmo texto, esclarece Mário Dionísio: «O neo-realismo ou não de José Gomes Ferreira – problema que considero aliás de interesse assaz restrito – reduz-se para mim a esta conclusão bem simples, que em nada o diminui e afasta da caminhada comum: na área do seu campo magnético não há Revolução nos termos precisos decorrentes da visão de Marx. Há, sim, o sofrimento inconformado e rebelde da “Revolução Inverosímil imanente”, que o deslumbrou em Brandão e profundamente o marcou» (Mário Dionísio, «Prefácio». José Gomes Ferreira, Poeta Militante I, Círculo de Leitores, p. 17).
(2) II – [«A noite de hoje é tão diferente de todas as outras! Começa a jogar-se o Grande Destino Ibérico»]; III – [«Revolução em Espanha»]; V – [«Guerra Civil de Espanha: Sofro por sentir inúteis as armas das palavras»]; VI – [«Garcia Lorca foi fuzilado»: «Terra …remorso»]; XV – [«Começou o ataque à Cidade Heróica de Madrid. Há sempre uma cidade heróica na estrada dos tempos»]; XVII – [«Fui visitar o meu irmão Raul, preso pelo Governo Civil por não ter dado dinheiro para uma subscrição a favor dos fascistas espanhóis revoltados contra a 2.ª República»]; XX – [«Revolução dos marinheiros nos navios de guerra portugueses ancorados no Tejo. Foram vencidos e enviados pelos fascistas para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Futuro, decora este nome, símbolo de infâmia: Tarrafal»]; XXV – [«Um jovem comunista, recém-saído da cadeia, procurou-me para me dizer: “Vou para Espanha bater-me ao lado dos republicanos” »]; XXX – [«Fomos derrotados. O inimigo – treva (?) – que importa o nome? – não tardará a entrar na Cidade»]; XL – «Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes»].
                 
            
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/09/homens.na.noite.do.desanimo.aspx]

domingo, 8 de setembro de 2013

NÃO, NÃO QUEREMOS CANTAR (José Gomes Ferreira)


 JOSÉ GOMES FERREIRA
             
                    
HEROICAS
VII
                
(Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)
               
Não, não queremos cantar 
as canções azuis 
dos pássaros moribundos. 

Preferimos andar aos gritos 
para que os homens nos entendam 
na escuridão das raízes. 

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes 
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição. 
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas 
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros. 
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto 
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto. 
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária 
a falarem de amor 
ao pé duma máquina de tempestade 
a soluçar cidades de fome 
na cólera dos ruídos... 

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho 
do que o nosso destino 
de nascer em todas as bocas... 

...Nós, os poetas viris 
que trazemos nos olhos 
as lágrimas dos outros.
                       
José Gomes Ferreirapoema VII da série Heroicas (1936-1937-1938) in Poesia I, 1948

                                
EXPLORAÇÃO DO POEMA «NÃO, NÃO QUEREMOS CANTAR»
            
José Gomes Ferreira, que tantas vezes nos oferece a poesia do eu/tu como emIdílio de Recomeço de Poesia IV, a poesia centrada no eu, como em Encruzilhada do mesmo conjunto, a refletir, à sua maneira, os seus anseios, as suas dúvidas, as suas inquietações consequentes do problema da morte, «a morte não acorda», do confronto entre o presente e o passado, da convergência do sonho e da realidade, da efemeridade da vida, coloca-nos, neste momento, perante o binómio eu/os outros numa poesia de combate, de empenhamento social como tantas que tem escrito na esteira de poetas do passado como Antero, Junqueiro e Gomes Leal e enquadrado num ambiente de literatura contemporânea mais voltada para os problemas do homem, a qual se foi afirmando, depois da 2.ª Guerra Mundial, com o aparecimento do neorrealismo.
O parêntese, que, em tantos poemas, desdobra, explica, completa o título dos seus poemas, aparece também aqui a marcar uma posição consequente dele: Não, não queremos cantar. Rejeita energicamente uma posição (note-se a repetição da negativa) e declara seguir outra. Sente, pois, que os jovens, com a sua dinâmica, são a grande força modificadora. Por isso é com eles que quer avançar com a sua mensagem poética e o poema vai explicar qual o motivo da sua tomada de posição.
«Não, não queremos cantar... pássaros moribundos». A oposição enunciada no título e no parêntese vai agora desdobrar-se de uma forma mais enérgica e objetiva.Não queremos... preferimos ‑ opõem-se. Opõem-se os verbos contar canções e andaraos gritos. Aos sons fechados nasais (6) do 1.° terceto sucedem-se versos onde é frequente o aparecimento do i que conota o grito. Ele não quer situar-se no número dos poetas agarrados ao passado, inspirados por um saudosismo romântico, negativo ‑ o que ele sugere com as canções azuis dos pássaros moribundos. A este terceto opõe-se outro que contrapõe a essa poesia interiorizada, mórbida, passiva, a poesia gritante, ruidosa, ativa, mensagem do poeta para os homens, a poesia que todos entendem, porque voltada para os problemas de todos, a poesia que desce às raízes dos problemas que afligem a humanidade, em geral.
E começa, então, a desdobrar alguns momentos significantes de injustiça social que considera revoltantes e lhe merecem denúncia: ‑ a faina inglória dos pescadores, dos fogueiras, o trabalho duro e desumano dos escravos e o idílio amoroso dos operários vivido no inferno de uma fábrica. E, neste 2.º momento da composição que, aliás, é o núcleo da célula lírico-dramática que a enforma, estamos no ponto alto, nevrálgico, desta mensagem, pelo seu dinamismo e pelo seu colorido humano. As reticências que se seguem ao último quadro sugerido deixam pressupor a possibilidade de apresentar muitos mais semelhantes a estes e igualmente indignos de um mundo civilizado.
Em quatro verbos se centra a dinâmica desta denúncia: puxam (as redes), lançam(vivos), arrastaram, falarem (de amor) ‑ denúncia que é apontada com mais vigor recorrendo o poeta à anáfora ‑ Aos gritos como os pescadores, ... Aos gritos como, às comparações contidas nas quatro expressões e à escolha de momentos com a sua carga de lirismo, mas também com a sua força dramática.
«Aos gritos como... exposição.» ‑ realidade / arte (sonho) entrecruzam-se neste primeiro diapositivo que nos oferece o poeta observador ‑ a dureza do trabalho dos pescadores em tardes de fome pitoresco, labutando ao serviço dos outros, por uma sobrevivência difícil, é motivo de inspiração para os pintores ‑ que depois vendem caro os seus quadros a uma sociedade privilegiada. Em Cala-te, Mar!, a propósito, dirá: «no desmaio das aguarelas / com poentes fulvos / a porem impossibilidades de tormentas /nos salões de seda dos palácios.»
«Aos gritos como... dos outros.» ‑ o trabalho difícil, obscuro, mecanizado, dos fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas, também na luta pela vida, mas, igualmente, ao serviço dos outros. Nem estes, nem os que indicou ou vai indicar se ocupam em trabalhos voluntários; são as exigências da vida que os atiram para essa forma de escravidão – pitoresca ‑ como diz, no 1.° quadro que apresenta.
«Aos gritos como... Egipto». Foi, é e será, talvez, sempre assim. Até quando? Foi assim no passado ‑ arrastaram. Também os escravos, quantas vezes, batidos pelo azorrague, foram obrigados a trabalhar para os outros ‑ arrastando pedras ‑ ao serviço dos grandes faraós. Tudo quanto ficou não é mais do que um grande monumento à dor humana particularmente centrado no Egipto.
«Aos gritos como... dos ruídos...». Afinal a abolição da escravatura não se consumou no passado, porque a vida dura dos pescadores, dos fogueiras e dos operários que falam de amor por entre ruídos ‑ ao pé duma máquina de tempestade,nada mais é do que outras formas de escravidão, como dissemos. Neste 4.º quadro, nos parece mais condensado o sentido de denúncia do poema. O amor que solicita interiorização e uma vivência a duo é perturbado pelo ambiente e processa-se desgarrado, sem qualquer colorido que lhe seja propício. Pelo contrário, não só se processa por entre ruídos que descolorem a beleza do idílio, como ainda é nublado pela consciência de que, apesar de tudo, o salário mal chega para sobreviver. Dai, o contraste ‑ falar de amor / soluçar cidades de fome – superlativado pelo substantivocólera ‑ denotativo do ambiente físico e conotativo do ambiente psicológico.
No outrora ‑ Egipto ‑, pois, como agora.
Em qualquer destes quatro quadros daquilo que, no poema, consideramos o 2.° momento ‑ aquele em que o poeta especificou a motivação da sua poesia que, por isso, deverá ser ‑ aos gritos ‑ sentimos que um elemento tem uma posição de relevo, depois das personagens. Referimo-nos ao espaço. Este endurece progressivamente alternando o exterior com o interior. É difícil e perigosa a vida do pescador no mar ou na faina do arrastar das redes sobre a areia; mas o ambiente que o cerca tem horizontes, é belo e repousante. São como enterrados vivos os pobres fogueiras que suam para que as máquinas dos navios funcionem perfeitamente; mas, nos portos por onde passam, conhecem novas terras e novas gentes, embora sem o calor humano que diariamente espera o pescador no regresso da sua faina. Foi inconcebível a dureza de vida do pobre escravo, aqui localizado no Egipto, que sofreu, com a escravidão real, a dureza do trabalho, para mais, num deserto ‑ sem que, no regresso, no fim de um dia de trabalho, gozasse a liberdade ou o descanso no seu lar, sem o olho atento do guardador. Porém, a barbárie da época não lhes possibilitava uma tomada de consciência plena do seu grande drama. Mas, estar no começo da vida, «sentir a ave da poesia (do amor) ‑ pipilar(dentro do coração)» ‑ como diz Castilho, e ser forçado a viver esse poema de amor no inferno dos ruídos e na azáfama do trabalho de uma fábrica ‑ verdadeira Babilónia de seres humanos ‑ isso talvez seja para o poeta, como poeta, ‑ e aqui aflora o lírico, sem dúvida ‑ a situação real de escravidão mais cruel e inconcebível, embora não a mais dura, a mais injusta, a mais desumana.
Muitos mais momentos de injustiça social podia o poeta sugerir na sua panorâmica poética. Estes, porém, com o seu colorido lírico e a sua força dramática, chegam bem para dar ao poema a carga dinâmica que «andar aos gritos» deixa pressupor como forma de exteriorização do eu / outros que o poeta visava.
Vamos para o último momento da composição ‑ breve como o primeiro. Este oferece-nos o enunciado; o segundo desenvolve-o; o terceiro tira a conclusão.
A poesia só tem sentido quando o eu egoísta, numa atitude de altruísmo, se esquece de si, sai do seu mundo interior e se debruça sobre os problemas dos outros, como diz em vários momentos de Poesia IV de Comboio-- «Abaixo a propriedade privada das lágrimas! ‑ V», ‑ e, aqui, se confirma nos dois últimos versos: «Nós... que trazemos nos olhos os lágrimas dos outros.»
Acaba como começa, num ritmo ligeiro, com versos curtos, em estrofes de três versos, com um isolado, enquanto o desenvolvimento tem onze versos em geral, como convém à sua natureza descritiva de natureza impressionista.
A literatura de empenhamento está aqui objetivada e afirmada com orgulho. Sentir que a poesia está ao serviço de todos e não se dirige só a um escol de privilegiados, sentir que o poeta é intérprete dos problemas que afligem o homem trabalhador, os grandes explorados da sociedade, enche o poeta de emoção, rejuvenesce-o, fá-lo sair do grupo dos pássaros moribundos e entrar no grupo dospoetas viris que lançam aos quatro ventos, aos gritos, a sua mensagem para que o homem explorado por tantos séculos, anestesiado, desperte, finalmente, para a luta ‑ tentativa frustrada que também animou alguns momentos da poesia de Antero, mais significativamente nas Odes Modernas ‑ (À História, Tentando via... ).
A linguagem não oferece momentos abundantes de conotação. É predominantemente denotativa, próxima da norma, como convém a uma poesia que, como se diz, se destina a andar, a «nascer em todas as bocas...». Realçamos ‑ as canções azuis dos pássaros moribundos; a fome pitoresca, grande monumento à Dor Humana, cidades de fome, cólera dos ruídos a que já aludimos.
Os verbos orientam, com a sua força expressiva, os três monumentos que consideramos no poema ‑ 1.º ‑ motivação ‑ Não queremos Preferimos; 2.º ‑ predomínio da ação ‑ puxam, se lançam, arrastaram, falarem de amor; 3.º conclusão –há, trazemos. Predominam os substantivos vincadamente concretos como convém à natureza objetiva do poema com vista à realidade. Não são muitos os adjetivos, mas aparecem com o colorido que o conteúdo requer, não são supérfluos: azuis ‑ a sugerir o vago, o indefinido (romântico, pois), moribundos (saudosistas, ultrapassados); pitoresco‑ propiciadora de quadros; vivos ‑ cheios de vida, num desgaste inglório; intactos ‑ apontando para a obrigatoriedade do trabalho; grande ‑ objetivado nas dimensões e no significado; viris ‑ pujantes, «engagés», carregados de dinamismo, ousados.
Feita pois uma breve análise desta composição e situando-a no momento em que se sente uma tomada de consciência de uma classe privilegiada quanto ao pensamento, classe que, ao longo dos séculos, quase sempre se manteve fechada no seu mundo interior ‑ poetas trovadorescos, palacianos, renascentistas, românticos, em especial ‑, podemos dizer que o ridendo castigat mores que fez brotar a sátira dramática vicentina, a visão critica, de Manuel de Melo nos Apólogos, principalmente, a visão satírica da sociedade do século XVIII, que nos oferecem Cruz e Silva, Correia Garção e Tolentino, a poesia de agitação social que se sente em Antero, Junqueiro e G. Leal, precisaram da mecanização do homem pela revolução industrial para arrancar, do antropocentrismo humanístico estagnado do classicismo, dum iluminismo que mal ensaiou os primeiros passos entre nós e dum realismo materialista que não saiu dos limites acanhados da burguesia, arrancar, dissemos, para uma literatura em prosa e verso ‑ e José Gomes Ferreira é disso uma afirmação concludente – uma literatura verdadeiramente do homem ao serviço do homem. Foi o que vimos também em Jorge de Sena, Régio, Nemésio, Sophia de Melo BreynerMiguel Torga, e que vamos ver em Egito Gonçalves, e poderíamos ver em tantos mais poetas do presente e de um passado próximo. Foi o que vimos na prosa de Aquilino, de Fernando Namora, de Miguel Torga, de Alves Redol, de Joaquim Soeiro Pereira Gomes e outros e que vamos ver na obra dramática de Sttau Monteiro e de Bernardo de Santareno.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), p. 511-514.
 
JOSÉ GOMES FERREIRA

A sua ânsia de intervir e de se imiscuir na terra é pautada, essencialmente, pelo grito, como prova o poema VII da série Heroicas. Nele, o poeta estabeleceu o confronto entre duas atitudes: cantar e gritar – “nós não queremos cantar” (…) “preferimos andar aos gritos”1, ‑ enunciando, pela primeira vez, a dicotomia (canto e grito) que preside à poética ferreiriana. Reafirma a preponderância do grito, ao repetir o vocábulo sete vezes. Para explorar o conceito de grito, associa a sua vontade de gritar a outras pessoas que, em situação precária, também gritaram: os escravos, os pescadores, os fogueiros, os operários. Termina a primeira parte do poema com uma confirmação da importância de gritar: “Aos gritos, sim, aos gritos”. Já na segunda parte, fala do orgulho de ser poeta e de poder “nascer em todas as bocas”, unindo-se àqueles que o rodeiam. Consciente, no entanto, da impossibilidade de tal ato, diz que os poetas trazem “nos olhos as lágrimas dos outros”, mostrando que, embora conhecedores do sofrimento do mundo, não o podem evitar, só o podem partilhar.
                  
dissertação de mestrado de Virgínia Maria Faria de Sá, 
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006.
                     
_______________________
(1) “E se o poema fosse como um grito terrível, como um punhal que se crava, como golpe decisivo de uma lâmina? É isso também o que o poeta procura: versos como lâminas, feridas como relâmpagos, gritos como pombas subitamente fugitivas” (Eduardo Prado Coelho – “Poeta: apenas vê o que não ilumina.” In A palavra sobre a palavra. Porto: Portucalense, 1972, pp. 94-95).
            
            
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/08/nao.nao.queremos.cantar.aspx]