Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, - tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, - tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
Camilo Pessanha, Clepsidra e outros poemasColeção Poesia
Edições Ática, 1973
Edições Ática, 1973
ANÁLISE TEXTUAL
O soneto “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, de Camilo Pessanha, tem-se prestado a duas análises textuais: uma é biografista; a outra pretende colar-se à escola simbolista. Cabe ao leitor, no seu olhar crítico e esclarecido, fazer a síntese de ambas no que de proveitoso cada uma tem para oferecer.
Nesta segunda leitura, “o poeta quer afirmar um processo violento de destruição, e nada há que se lhe possa opor. Assim, a temática será a recusa do passado que a mãe simboliza, e a abertura para a morte. Discurso sobre a absoluta negatividade a que o eu está sujeito pela sua própria condição”. (Cf. Aula Viva. Português A 12º Ano. 1º Volume, João Augusto da Fonseca Guerra e José Augusto da Silva Vieira, Porto, Porto Editora, 1999, p. 309)
“Tudo está marcado pelo signo do frio, da ausência. A mãe não é mais do que umavirtualidade (Alma da minha mãe), pelo que a sua ação primordial não se pode fazer sentir. Os imperativos lançados à mãe pelo sujeito resume-se a uma recusa: recusa damemória que ela é, recusa do passado/vida que ela simboliza, ou seja, abertura plena para a morte, agora que o próprio lugar da morte, onde se pretendia recuperar a pureza original (meus tão castos lençóis), foi violado.” (Clepsidra de Camilo Pessanha, 2ª ed. Teresa Coelho Lopes, Lisboa, Editorial Comunicação, 1983)
*
A angústia ‑ A elegia da infância: a primeira morte e o impossível regresso a casa.
No soneto que inaugura com o verso “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, Camilo Pessanha convoca a voz da mãe, retornada da cova, para exprimir na primeira pessoa do singular a dor sentida perante as ruínas da casa materna, agora desabitada – rasgados e poluídos os lençóis de linho onde a mãe esperou morrer, arrancados os girassóis ao seu jardim exíguo, quebrada a mesa de cear, “tosca tábua de pinho”, espalhada a lenha e entornado o vinho – o que confere à visitação um pathos fora do comum. Ao intercetar com a voz do filho, nos dois tercetos finais, a voz fantasmática da mãe, o sujeito enunciador chama de volta a si o pathos que havia transferido na primeira parte do soneto. É já com a voz do filho que insta ao repouso definitivo da mãe na sepultura, permitindo em simultâneo o repouso da memória afetiva filial: “Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais./ Alma da minha mãe… Não andes mais à neve,/ De noite a mendigar às portas dos casais”. A única reunião permitida é, pois, não com a terra mater mas com a terra morte.
Rui Carlos Morais Lage, A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI - Perda, luto e desengano.
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010, pp. 249-250.
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010, pp. 249-250.
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Comentário do poema
Esta poesia, que Camilo Pessanha escreveu quando lhe morreu a mãe, divide-se em duas partes - as duas quadras e os dois tercetos. Na primeira parte, há uma seriação de sensações produzidas por factos desastrosos: lençóis rasgados, girassóis lançados no caminho, mesa de cear partida, lenha espalhada pela cozinha, vinho entornado. Todas estas sensações, uma vez relacionadas, constituem um símbolo, uma "palavra nova" a exprimir o que vai na alma do poeta: a dor de ficar sem aquilo que para ele era a intimidade, o aconchego, o carinho, o sustento; a dor que um filho sente ao perder sua mãe. É como se, faltando ela, o filho não tivesse mais onde se deitar (lençóis), não encontrasse mais qualquer coisa bela para ver (flores do jardim), não tivesse onde poder comer (mesa) e que beber com alegria (vinho), como se não tivesse mais onde se aquecer (lenha).
Se fosse possível entender este poema em estilo parnasiano, o significado expresso pelo significante (palavras) equivaleria a um assalto a uma residência e mais nada. Praticamente, um caso para a polícia resolver. Mas, como estamos em contacto com um poema simbolista, o significado primeiro (o assalto) transforma-se num significado segundo, numa "palavra" nova que nos leva à mensagem do poeta, ou seja, à desolação sentida após a morte da mãe.
Repare-se como os elementos que constituem o símbolo são de uma pureza nativa: lençóis de linho, altos girassóis, mesa de cear, lenha, vinho. Mas foram desviados para o lado oposto dessa pureza, foram torpemente violados: poluídos os lençóis, arrancados os girassóis, quebrada a mesa, espalhada a lenha, entornado o vinho. Atente-se na propriedade vocabular. E também na insistência nos símbolos da dor em frases curtas e soluçantes. As imagens, no seu evoluir antitético pureza - violação, são de um impressionismo rico e sugestivo.
Na segunda parte, o poeta dirige-se à mãe em termos diretos. Ainda aqui há um conjunto de sensações aptas a criar um símbolo: noite, vento, a casa em ruínas, a neve – tudo o que há de mais frio e desolador. Então a mãe que se deixe estar na cova, que não mendigue mais. Alude com certeza ao desgosto perene da mulher que o deu à luz, a qual nunca passou de amante e criada de seu pai, apesar de toda a vida suspirar pelo casamento.
António Barreiros, História da Literatura, vol. II, pág. 353, 9ª ed., Editora Pax, 1982.
Atenção: esta interpretação é biografista.
Segundo a perspetiva simbolista, tal como no poema “Madalena”, não se pode ver aqui a sua mãe física, mas sim o que uma mãe significa: segurança, amparo e origem.
Subjetividade, sentimento e conhecimento na Poesia de Camilo Pessanha:
A melancolia e os seus objetos.
A melancolia e os seus objetos.
Se uma das fontes, remotas, da tristeza será uma violência fundamental, inerente ao ato de existir1, no caso de Pessanha, acresce a experiência de uma violentação dos seus afetos mais caros, um desmoronar do refúgio que o poderia abrigar das tempestades da vida, a vivência do luto, da irreparável perda de um ser querido. É no extraordinário soneto «Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho» que essa dor lacerante tem a expressão mais aguda.
Sendo o único poema de Clepsidra em que se refere explicitamente um familiar, «Ó minha pobre mãe!», é também o poema mais passível de uma leitura biografista, psicanalítica ou de análise temática, desenvolvida por Jean-Paul Weber. Antonio Quadros informa que, em Macau, em 1895 ou 1896, ao saber que a sua mãe estava a morrer, Pessanha jorrou a sua dor neste «desgarrador» soneto. Se foram essas as circunstâncias da produção do poema, está explicada a intensidade emotiva que o ensopa. Contudo, convém assinalar que o soneto conhece seis versões (Cf. Mário Garcia, «Sobre Camilo Pessanha», in Brotéria, vol. 122, n.º 4, 1986, p. 389). De qualquer modo a interpretação de Quadros cola demasiado o significado do texto as figuras parentais, quando assevera que o eu devastado, profanado, das duas primeiras quadras «e a mãe» e o «quem», o agente da destruição, que no poema não e identificado, e o pai (que ele aliás respeitava, mas que naquele momento de desespero inculpa) (Quadros, «Introdução biográfica e crítica», in Obras de Camilo Pessanha, Clepsidra e poemas dispersos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988, pp. 34-35). A leitura psicanalítica é demasiado óbvia para nos cansarmos a sugeri‑la. A «análise temática» deste poema poderia proceder, ora considerando a situação da infância (o estigma da ilegitimidade, «o poço de miséria e dor que foi sempre a casa do meu pai») do poeta, subindo para a sua expressão textual neste poema (é a démarche progressiva), ora partindo do texto, dos seus motivos, para remontar à infância (a démarche regressiva) (Cf. Carlos Reis, Técnicas de Análise Textual, Almedina, Coimbra, 1981, pp. 90-91).
A extensão e a profundidade dessa violentação são dadas, formalmente, por uma série de processos reiterativos2, e pela escolha de situações e objetos constitutivos do espaço vital, íntimo do sujeito que a fúria dessa violentação vandalizou e destruiu. Justamente, a crueldade dessa destruição ressalta da pureza dos rituais e objetos que violentou. O seu absurdo avulta por não se identificar a causa, a entidade responsável pela destruição («Quem destruiu…?»).
Os dois primeiros versos entrelaçam infância e morte. Os mesmos lençóis que o envolveram docemente na infância deveriam ser os que lhe serviriam de sudário na morte.
Pode‑se detetar aqui o muito humano desejo de morrer na casa, ou na terra ou na pátria que nos viu nascer, desejo tornado impossível. Os castos lençóis de linho contêm as ideias de pureza e aconchego, visadas respetivamente pelo «poluiu» e pelo «rasgou». Do leito, o espaço da intimidade distende‑se para o jardim, cujo simbolismo de paraíso é realçado pela luminosidade implícita dos altos girassóis, planta que é imagem do sol. O carácter exíguo do jardim reforça o seu valor íntimo, de recinto protetor, e não é acidental que os girassóis sejam altos (altura, verticalidade, vontade, confiança, alegria de viver…).
Tínhamos notado já em «Caminho II» o encanto rústico do ato de sentar‑se à mesa, de departir o mesmo vinho… Esses gestos que de tão simples, familiares e repetidos se tornam rituais que nos seguram à vida são aqui retomados e alargados. A nota rústica – a «tábua tosca de pinho», a lenha, o vinho, que, acidulado e fresco, pode indicar o vinho característico do Minho – expande as ideias de pureza, autenticidade e aconchego da primeira quadra. A brutalidade animalesca, desumana, da destruição é destacada pelos parênteses, ao jeito de comentário indignado: «(que furor cruel e simiesco)».
No segundo bloco do soneto, a dor ganha acentos ainda mais patéticos. Em situações trágicas ou repulsivas, diz‑se por vezes: ainda bem que fulano de tal já cá não está para ver isto… Um sentimento similar, mas mais complicado, anima estes tercetos. Pois à mãe que estaria morta, sepultada, é dada uma existência espectral, de «alma penada». Está e não está morta.
Paradoxalmente, ao apelo a não se erguer da cova segue‑se o imperativo de «Olha a noite, olha o vento» e, subentende‑se, olha «Em ruína a casa nova…» e a vida a extinguir‑se no teu extremoso filho. Esta desolação devastadora imprime mais força ao triplo imperativo negativo que forma o último terceto. O cenário virtual da segunda parte do soneto é espectral e lúgubre. Cova, noite, o vento, propiciador dos espíritos, a «ruína», o vagabundear, a neve, o mendigar…
A origem dos fantasmas, dos espectros, das «almas do outro mundo», da sua aparição e da sua ação é atribuída, regularmente, a um nó existencial não resolvido, um crime hediondo a que não foi feita justiça, um segredo inconfessável que emerge fantasmaticamente (veja‑se O Espectro de Henry James), um amor que não foi realizado pela intervenção despótica de terceiros (lembre‑se neste ponto O Monte dos Vendavais), o luto não resolvido, etc.
Os espectros são normalmente reificações da reposição da justiça, ou de tormentos da consciência (as Erínias que profligam o criminoso que escapou à justiça humana…) ou da teimosia de não aceitar a ausência, por morte, de seres queridos.
O vagabundear, o mendigar da «alma da mãe» podem, assim, significar a errância de uma alma a que não se fez justiça, o prolongamento além‑túmulo de um sofrimento inocente que continua a fazer ressoar a dor de um destino infeliz. As figuras da casa (nova, mas que decaiu inexplicavelmente em ruína), do lar, da mãe (cuja infelicidade ecoa, transfigurada em alma errante, tornada mais dilacerante por essa metamorfose) escalonam a muralha afetiva que protegeria o sujeito das forças da desagregação. Desfeitas essas defesas…
Mas antes de incluir o tempo e a morte, palavras‑chave do dicionário da melancolia, no imaginário melancólico de Pessanha, de modo a alargar o campo fenoménico da melancolia, faremos uma citação do estudo já mencionado: «a melancolia da tradição médico‑filosófica apresenta‑se como um «pacote» de relações, atitudes e condutas, substâncias e objetos, frequentemente marcados por uma forte ambivalência (imobilidade ou errância, claustrofobia ou claustrofilia). Puros predicados qualitativos ou espaciais (negro, pesanteur, em baixo..) encontram‑se associados a substâncias reputadas «saturnianas» (terra, pedra, lama e neve, chuva e tempestade, minerais e metais, chumbo, ferro, ouro…) e a objetos reputados melancólicos (espelho, escada, chaves, forno de alquimista, instrumentos de geómetra e de pedreiro, compasso, livro, tudo objetos presentes na «Melencolia» de Dürer; lugares e objetos funerários e todo o ritual da morte, ausentes da gravura de Dürer)» Pierre Dufour, (“«Les Fleurs Du Mal», Dictionnaire de Mélancolie”, in Littérature, Nº 72, 1988, p. 37).
À luz deste vasto leque de sintomas, podemos detetar alguns desses traços do imaginário melancólico na poesia de Pessanha (a qual, dada a sua escassez, por um lado, não oferece uma matéria extensa que multiplique os elementos repetitivos de conteúdo que formem a base ampla de um tema; por outro, tem a vantagem, na sua concisão vigorosa, de tornar um, dois exemplos, a base segura para extrapolações temáticas):
‑ a tendência espiritual para a queda, que toma as formas do espojar‑se na lama (soneto «Madalena») ou da fuga subterrânea («Inscrição», «Na cadeia», «Porque o melhor, enfim,») e da fascinação apavorada pelo abismo («o abismo não sondeis»);
‑ a chuva como lacrimae rerum e simultaneamente como reflexo e projeção das lágrimas, da melancolia íntima do sujeito em «Água Morrente», que une este tópico, explicitamente respigado de Verlaine, com o tema anterior: o sujeito desdobra‑se, apelando para os seus olhos se fixarem e depois se identificarem, numa gradação descendente, com «a água morrente», gerúndio que associa água e morte: ao imperativo «vede» a água «cair, sempre cair», verbo que «quase» coincide com morrer‑«Cair, quase morrer…», sucedem os fusionantes «afogai‑vos», «Caí e derramai‑vos»3; o poder de dissolução da chuva, aliada da morte, é invocado num poema de circunstância, «Em um retrato»: a terra fresca que «há‑de inumar» o sujeito é potenciada na sua função obliteradora pela chuva abundante ‑ «E depois de já muito ter chovido,/ Quando a erva alastrar com o olvido»;
‑ a fascinação com a mineralização da vida, com os restos da vida consumada, acontecida, o seu retorno à sua fase larvar e mineral (o verme da «Inscrição», «Seixinhos da mais alva porcelana,/ Conchinhas tenuemente cor‑de‑rosa (…) róseas unhinhas que a maré partira…/ dentinhos que o vaivém desengastara…/ Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…», em «Singra o navio.»). Expandindo a nota de Óscar Lopes acerca da menção dos «vestígios mineralizados», relíquias desvitalizadas de afogamentos, de naufrágios, Perrone‑Moisés vê no mundo poético de Pessanha o plasma do fracasso visto, menos na sua eclosão, no fragor do seu despedaçar, do que no «depois» dos seus remanescentes, concisamente apontados: «Assim que se entra no universo poético de Pessanha, percebemos logo que chegamos demasiado tarde. Já tudo aconteceu, e tudo acabou mal. A sua poesia é um constatar de sinistro. Este universo de depois do desastre constitui‑se de restos e indícios, tanto mais pungentes quanto o poeta no‑los apresenta de maneira sucinta e contida. Traços evanescentes de um caminho percorrido sobre a areia, sulco de um barco que acabou de passar» (Cit. in Gustavo Rubim, A Inscrição Espectral: Poética do Vestígio em Camilo Pessanha, Dissertação de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 34).
O momento do derrame melancólico não é o do deflagrar da tragédia, chocante, violento, mas o momento posterior, o das suas consequências e da sua perdurabilidade em ruínas e vestígios. Alguns poemas iniciam‑se, marcando explicitamente esse momento reflexivo posterior (por exemplo, «Depois da luta e depois da conquista», «Eis quanto resta do idílio acabado», «Quando voltei encontrei os meus passos», «Depois das bodas de oiro», «Parei a cogitar», «Porque o melhor, enfim»). A fixação nos vestígios do que foi, na decomposição do orgânico no inorgânico tem como contrapólo, remontando o fluxo da vida, o deter‑se na fase embrionária, latente da vida: as cores represadas no limbo e os abortos parados, embebidos no líquido morto de vasos de laboratório no «Poema final». A vida, a existência é um breve e doloroso intervalo entre extremidades onde mora o não ser;
‑ a efemeridade das flores, a secreção de morte que libertam com o desmanchar da sua beleza (as «Anémonas, hidrângeas,/ Silindras, – flores tão nossas amigas!», decoração conivente com o idílio, desaparecidas e substituídas pelas urtigas, planta agreste, repulsiva, em «Eis quanto resta do idílio acabado»; a «Dália a desfolhar‑se – o seu mole sorriso…», o seu deperecimento suave, levemente irónico, levemente resignado, em «Foi um dia de inúteis agonias.»; «Putrescina: ‑ Flor de lilás./ Cadaverina:‑ Branca flor do espinheiro!», as flores despidas das suas galas pela ação purificadora do sal e do sol, reduzidas à podridão, em «Roteiro da Vida»);
‑ a errância, o errar sem saber ou não querer saber para onde se vai, o «não sei por onde vou, sei que não vou por aí», o estar bem onde não se está («Que eu desde a partida,/ Não sei aonde vou.», «Nem sei de onde venho»4).
Outras manifestações de melancolia, não contempladas na citação: a perturbação do crepúsculo, que pode reunir‑se ao tema da queda (o ocaso do sol, a imobilidade pensativa dessa hora, a agonia da luz e a iminência da chegada da noite), as paisagens de inverno; a atração pelas ruínas.
Também a melancolia segregada pelos espetáculos teatrais. De facto, a frase The show must go on pressupõe o vazio, o abatimento do show realizado, terminado, de que importa reemergir. «Vai declamando um cómico defunto./ Uma plateia ri, perdidamente,/ Do bom jarreta… E há um odor no ambiente/ a cripta e a pó, ‑ do anacrónico assunto.» ‑ a gravação pelo fonógrafo, eco de um evento desvanecido, reforça a inanidade do riso convulsivo da multidão e a vanidade da performance do cómico; daí o salto associativo para o bolor das coisas irremediavelmente passadas, sepultadas pelo tempo, no seu odor sui generis; aflora‑se aqui o velho tema barroco do teatro, vazio postiço da vida? Pour cause, a forma de auto‑deprecação escolhida em «Madalena» é a do «abominável cómico», daquele a quem lhe afivelaram uma máscara que o torna outro que não ele próprio, obrigado pela vulnerabilidade do seu carácter fraco a mascarar‑se ad populum.
O derruir das ilusões, o amargor do desengano. Com efeito, no temperamento melancólico coexistem as sacudidelas reativas à estagnação (a fase maníaca, eufórica do maníaco‑depressivo, em que se podem radicar os referidos «élans héroïques», inchados pela megalomania5) e o rememorar ora mais resignado, ora mais dolorido da sua inutilidade: este balancear do espírito é detetável em muitos versos da Clepsidra: «O barro que em quimera modelaste/ Quebrou‑se‑te nas mãos. Viça uma flor…/ Pões‑lhe o dedo, ei‑la murcha sobre a haste…» ‑ a implícita comparação ao gesto criador de Adão, a escolha do símbolo da flor, como concreção do vigor e da beleza, marcam mais impressivamente a crueldade da ilusão que não se prolonga, que não concede mais tempo ao engano, desfeita pelo mero contacto físico, como que amaldiçoado, do sujeito.
Essa celeridade do desfazer da ilusão é ainda mais sinteticamente expressa no verso «Castelos doidos! Tão cedo caístes!...», evocando a imagem dos castelos as metáforas lexicalizadas dos «castelos de areia» ou dos «castelos no ar»; um oriental diria «tigres de papel», segundo os clichés sedimentados na sua cultura.
João Paulo Barros de Almeida,Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p. 107-114.
_________________________
(1) Certa psicanálise desenvolveu a ideia de que, marcando o nascimento uma separação, todo o ser humano carrega por toda a vida a fratura desse momento traumático, procurando, inconscientemente, o retorno à paz uterina (regressus ad uterum), à supressão da individualidade.
(2) No artigo já referido de Stephen Reckert [«A fono‑estilística de Camilo Pessanha», in Colóquio/Letras, nº 129/130, pp. 87‑96], a propósito de «Branco e Vermelho», o crítico chama a atenção para o facto de aspetos estilísticos desse poema fazerem lembrar a afirmação de Jakobson de que «à tous les niveaux de la langue l´essence, en poésie, de la technique réside en des retours réitérés». Esta observação é aplicável a outros poemas de Pessanha, como este.
(3) O cotejo com o «original» de Verlaine é realizado por Jacinto do Prado Coelho em «De Verlaine a Camilo Pessanha e a Fernando Pessoa», in Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, pp. 209‑214. Ao mesmo nível de excelência na musicalidade, o poema de Pessanha, o que é influenciado, «é mais complexo, mais perturbante que o de Verlaine» (ibidem, p. 211). Na nossa opinião, não será mais complexo, mas é de certeza mais perturbante, porquanto a tristeza indefinida do «coeur» do sujeito do poema de Verlaine é envolvida, afagada pelo «bruit doux de la pluie», pelo «chant de la pluie», enquanto que no de Pessanha a chuva não canta, cai, é água morrente no seio da qual os «olhos» do sujeito são compelidos a «afogar‑se».
(4) Em carta a Carlos Amaro, salientada num post sriptum, o conhecido desabafo: «P. S. – Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino.» O último parágrafo desta carta merece também ser citado: «Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um a minha alma perpetuamente agoniza.» (Camilo Pessanha,Contos, Crónicas, Cartas escolhidas e Textos de temática chinesa, Organização e Notas de António Quadros, Lisboa, Publicações Europa América, 1988, p. 95).
(5) «Timbre: rompante, a megalomania…», em «Tatuagens complicadas do meu peito». De notar o adjetivo, o particípio presente «rompante», que quadrando com «megalomania» acerta no cariz compulsivo desses safanões da inércia depressiva, dessa descarga de energias represadas pelo marasmo precedente da fase depressiva (estas considerações pressupõem a equivalência conceitual entre «melancolia» e «psicose maníaco‑depressiva», doença de foro psiquiátrico, caracterizada pelo ritmo bipolar de depressão e expansão… A depressão, contudo, é subdividida pela vulgata da psiquiatria contemporânea em diversas subespécies: depressão melancólica e depressão nevrótica, endógena e exógena, unipolar e bipolar, etc. Arriscámos a hipótese da «depressão bipolar», sem de todo pretender ler a poesia de Pessanha como uma sintomática de um caso clínico, devido a esses sobressaltos de ação, às arremetidas de uma vontade prima facie heroica que latejam em alguns dos seus poemas).
LEITURA METÓDICA DO POEMA
I – Resolva o questionário proposto no manual escolar Ser em Português 12 A.Volume 1, coord. Artur Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999, p. 193.
II – Elabore um comentário global do poema, incluindo o desenvolvimento dos seguintes tópicos:
• significado das interrogações, relativas a um desconhecido agente de dor e destruição;
• identificação dos objetos da destruição e seu valor simbólico;
• relação entre estes objetos, a casa, o eu (repara no 3º verso do 1º terceto);
• relação entre os arquétipos casa/mãe;
• interpretação dos pedidos expressos nos tercetos;
• representação da morte como suprema desproteção, suprema solidão (anulada a possibilidade de surgir como entidade protetora);
• o retrato da condição humana.
(Plural 12º Ano-A, Elisa C. Pinto et alii, Lisboa Editora, 1999, p. 168)
VÍDEO-POEMA
Camilo Pessanha, "Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” (1895-6).
Dito por Luísa Cruz na antologia / CD Ao Longe os Barcos de Flores (Assírio & Alvim, 2004).
A estratégia narrativa do vídeo - feito de imagens noturnas captadas na aldeia de Monsanto - procura criar no público o mesmo efeito surpresa que o poeta magistralmente conseguiu. Só na segunda parte do poema se compreende a razão de ser do plano de abertura e do fluir das imagens que lhe sucedem.
Cine Povero
* * *
Estúdio Raposa, apresenta outros vídeo-poemas de Camilo Pessanha, disponíveis aqui.
INTERTEXTUALIDADE
VELHO POETA EM MAUS LENÇÓIS
Quem poluiu…CAMILO PESSANHA
Esses lençóis onde dormi com ele,
onde temi morrer acompanhado
‑ quem os limpa, quem os põe de lavado?
Mesmo depois de rasgados, conservam
a treva do seu corpo luminoso.
O corpo dele igual ao grito rouco
de falcão na nobreza do voar,
ou de águia – na doce mira do rapto.
Nesses lençóis – onde dormiu um deus:
onde temi morrer na sombra de outrem.
Sombra longa de faca que foi círio
vermelho numa tenda toda branca.
Esses lençóis onde dormi com ele,
ninguém devolve em branco do vermelho
de círio não pequeno de tamanho
nem parco de consolo na memória.
Castos lençóis – aí dormiu um deus:
luz vermelha de círio nesse branco.
Círio não triste embora já pretérito
‑ nem parco de beleza agora frio.
Quanto tempo padecer meio louco,
em lençóis embrulhado tal fantasma
do pai do Hamlet, noutra Dinamarca
‑ sem mulher nem filho, apenas morto?
onde temi morrer acompanhado
‑ quem os limpa, quem os põe de lavado?
Mesmo depois de rasgados, conservam
a treva do seu corpo luminoso.
O corpo dele igual ao grito rouco
de falcão na nobreza do voar,
ou de águia – na doce mira do rapto.
Nesses lençóis – onde dormiu um deus:
onde temi morrer na sombra de outrem.
Sombra longa de faca que foi círio
vermelho numa tenda toda branca.
Esses lençóis onde dormi com ele,
ninguém devolve em branco do vermelho
de círio não pequeno de tamanho
nem parco de consolo na memória.
Castos lençóis – aí dormiu um deus:
luz vermelha de círio nesse branco.
Círio não triste embora já pretérito
‑ nem parco de beleza agora frio.
Quanto tempo padecer meio louco,
em lençóis embrulhado tal fantasma
do pai do Hamlet, noutra Dinamarca
‑ sem mulher nem filho, apenas morto?
José António Almeida, Arco da porta do marLisboa, &etc, 2013
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leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas,
por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio
ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).
► A Biblioteca Nacional de Portugal, colocou na web o espólio de Camilo Pessanha, que permite o acesso a informações sobre a vida e a obra do autor, a manuscritos e a correspondência.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/16/quem.poluiu.aspx]