A sensibilidade poética finissecular filtra a filosofia pessimista de Schopenhauer que coincide com a disposição decadentista: atitude desistente e prostrada; desejo de aniquilação e visão da morte como libertação. Por isso, a morte é recorrente nos poemas finisseculares, expressando o desejo de aniquilação de um indivíduo, como demonstram estes versos de Pessanha que abrem Clepsidra.
INSCRIÇÃO
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
Camilo Pessanha, Clepsidra
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Vocabulário:
lânguida: sem força, fraca, doentia
inerme: desarmada, sem defesa
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Série "Aborto", 1998. Paula Rego |
ORIENTAÇÕES DE LEITURA
A obra de Camilo Pessanha está agrupada em duas partes: Sonetos e Poesias. As duas partes estão perfeitamente unidas por uma espécie de prólogo que é o poema inicial Inscrição e por uma espécie de epílogo que é o poema final intitulado mesmoPoema Final.
Destacar a relação de semelhança e oposição entre luz e alma, por um lado, e chão e verme, por outro.
(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 297)
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Identifique os adjetivos com que o eu define o seu país e se autodefine.
Esses adjetivos reenviam-nos para o desânimo e para a ausência de ação. Relacione-os com o desejo expresso no poema.
Poder-se-á falar de uma inadaptação do eu ao mundo? Justifique.
Relacione o último verso com o título do poema.
Tereza Lopes vê no poema o desejo do eu em «voltar à virtualidade da preexistência». Discuta a afirmação.
(Ser em Português 12 A. Coord. A. Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999, p. 190)
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I. o texto aponta para a fragilidade humana;
II. o eu poético se percebe impotente frente ao fluir inexorável do tempo;
III. a vida é efêmera, a importância do ser é mínima.
Dadas as proporções:
a) I e II são verdadeiras; III é falsa;
b) I é verdade; II e III são falsas;
c) II é verdade; I e III são falsas;
d) III é verdade; I e II são falsas;
e) Todas são verdadeiras.
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No poema acima, que abre o livro Clepsidra, de Camilo Pessanha, está presente um dos temas recorrentes na poesia do escritor: [selecione a opção correta]
(A) a fusão que se estabelece entre o ideal e o real, motivada pelo ensimesmamento do sujeito lírico.
(B) a busca, através da palavra poética, da reconstrução de um universo fragmentado.
(C) a expansão desmesurada do eu como resposta a uma realidade destituída de sentido.
(D) a crise existencial do "eu lírico", manifesta no desejo de despersonalizar-se.
(E) o reconhecimento da palavra poética como instrumento de recuperação da transcendência perdida.
TEXTOS DE APOIO
A FONO-ESTILÍSTICA DE CAMILO PESSANHA
A opinião crítica é unânime em descontar (sem o excluir) o «sintagma anódino». (B. Spaggiari) «vi a luz» = ‘nasci’, tal como a univocidade do sentido (proposto pelo próprio poeta) «paiz perdido» = ‘Portugal decadente’. Aquela luz — vista outrora não só numa Pátria aviltada e já literalmente remota, mas sobretudo no pa(ra)ís(o) perdido (G. Santos) — é antes de mais «a luminosidade primordial não existente neste mundo. (A. Cardoso Gomes). Constitui portanto a recíproca da escuridão subterrânea que fecha a quadra, e com ela o ciclo implícito luz-trevas (ou nascimento-morte) nela inscrito, correspondente à «estrutura circular constante» detectada por Gilda Santos na obra toda do poeta.
Só Barbava Spaggiari alude aos micro-significantes, notando de passagem «l'insistenza, nel distico finale, sulla sibilante /s/ e la liquida /r/» e as aliterações paiz perdido e vi… verme. Na realidade, a insistência nas sibilantes não se limita aos quatro /s/ do dístico final. Contando o título (que não consta na versão autógrafa mas que o poeta autorizou para a primeira edição), somam doze: cinco /s/, três /š/, três /z/ e um /ž/. O significado subliminar óbvio destes micro-significantes é o deslizar do verme; e não deixa de ser pertinente a comparação com a segunda quadra de «No Claustro de Celas», soneto que no caderno autógrafo ocupa o reverso da folha correspondente a «Inscripção», e cuja redacção definitiva data do mesmo ano de 1916. Ali, exactamente na quadra das cobras que se rojam pelas lájeas, descobrimos nada menos do que vinte sibilantes a insinuarem aquele movimento rastejante ao pé da inscrição tumular de um nome delido11.
Depois das doze sibilantes são as onze liquidas (seis /r/, um /ȓ/, quatro /l/ e dez nasais não bilabiais12 que predominam em «Inscripção». O que é, no fim de contas, que estes micro-significantes, pertencentes a um nível subconceptual, significam no plano conceptual? Se as líquidas reforçam com a sua própria fluência a das sibilantes, a nasalidade não bilabial representa universalmente, tanto em chinês ou japonês como em qualquer língua indo-europeia, a negação, que é a tonalidade dominante na obra de Pessanha. O suave deslizar destes quatro versos, apenas interrompido por seis oclusivas num total de quarenta e sete consoantes, é um movimento descendente que acompanha o do poeta, do céu luminoso do primeiro verso ao refúgio subterrâneo do último.
As vogais também colaboram na criação deste efeito: no primeiro verso a ênfase recai nos três ii claros e altos, sendo o acento no u escuro de luz neutralizado pelo significado conceptual da palavra13; no último são as vogais escuras que predominam, com excepção do i de sumir-se, neutralizado da mesma maneira. O que é curioso é que o próprio título «Inscripção», com os seus dois ii do princípio resolvendo-se no ão final, parece ser uma antecipação em miniatura do poema.
A impressão subjectiva do leitor é que o vocabulário de Pessanha se caracteriza por palavras referentes a descidas e quedas. Até que ponto, a concordância preparada por B. Spaggiari virá sem dúvida esclarecer objectivamente; entretanto, vêm à memória versos como «Desce por fim sobre o meu coração», «O meu coração desce», «Desce em folhedos tenros a collina», «E sobre nós cabe nupcial a neve», «desmaiar sobre opoente», ou «A cada golpe caem, / Erguem-se logo. Caem. / [...] / Até que enfimdesmaiem.
Os últimos versos citados, que revelam uma convergência do movimento cadente com o cíclico já referido, são de «Branco e Vermelho» […].
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(11) O léxico de «Inscripção» é um indício da sua singularidade no conjunto da obra de Pessanha: de vinte e oito palavras, seis (paiz, languida, inerme, deslisar, sumir-se e verme) sãohápax (Spaggiari, p. 246). Se, como diz G. Santos (p. 21), «’país perdido’ fonicamente remete-nos a paraíso perdido», talvez não seja excesso de fantasia neste contexto edénico atribuirlanguida (e a imagem do verme) a um eco subconsciente da frase «latet anguis in herba». A terminação –ydra, de Clepsydra, é relacionada por T. Coelho Lopes (p. 27) com a «hidra torpe» do soneto «Esvelta surge!...». (Recorde-se que Proust, por exemplo, costumava entreter-se em desfazer palavras para observar as associações livres que as sílabas assim «desconceptualizadas» lhe sugeriam.)
(12) Sobre as implicações contrárias da bilabial /m/ ver Um Ramalhete para Cesário, pp. 89-90.
(13) Foi Mallarmé, salvo erro, que se queixou do mau gosto do francês em escolher uma palavra como jour, com a vogal escura u, para designar o dia, e nuit, com o i claro, para a noite.
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PARTIDA
“Inscrição” é uma prévia do trajeto (pré-via), que parece identificar e definir Clepsidra.
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
Distinguem-se aí três momentos:
1°) pretérito: um sujeito — Eu
uma ação — vi
um objeto — a luz
um lugar — em um país perdido
2°) presente: um traço do sujeito — A minha alma é lânguida e inerme.
3°) subjuntivo + infinitivo: um ideal do sujeito —
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
De pronto, destaquem-se as polissemias do sintagma frasal: “ver a luz”, além da evidente perceção de luminosidade, pode ser entendido tambémcomo nascer e comoconhecer (a Verdade, o Bem, etc.). Recorde-se que, das línguas neolatinas, a francesa mais evidentemente preservou a etimologia nos dois substantivos cognatos aos verbos:naissance, connaissance.
Já “país perdido” fonicamente remete-nos a paraíso perdido e, de facto, permite a leitura como país afastado no tempo, no espaço, na memória, para alguém que se ache exilado, ou ainda, na interpretação atribuída a Pessanha por João de Castro Osório (OSÓRIO, 1973, p. 29-30), como país perdido para a glória e o bem, implicando, assim, valores morais.
País tanto poderia ser paisagem originária, pátria natal, como, mais amplamente, Terra, Mundo.
Numa perspectiva autobiográfica, o poema revelaria a saudade que o poeta, em Macau, ainda alimenta por Portugal, perdido na distância e na História.
Cremos que todas essas possibilidades não se excluem, mas somam-se para configurar o sentimento de exílio, de inadaptação que este eu-poemático experimenta não apenas em relação à sua terra de origem, mas igualmente em relação ao mundo, numa atitude de a-patricidade essencial. E tal sentimento parece determinar as características da personalidade deste sujeito que a seguir, nos dois outros momentos, nos são reveladas: como é, o que deseja.
O penúltimo verso provoca imediato estranhamento: “deslizar sem ruído” conota ausência de vida, já prenunciada em “lânguida e inerme”, e agora alargada no último verso por uma configuração da morte, do enterramento, do potencial “vérmico” do homem, do desaparecer sem deixar traço, que tanto pode conotar o mais absoluto desejo de evasão como o mergulhar na procura das origens — “porque és pó e em pó te hás de tornar” (Genesis, 3, 19).
Observe-se que a progressão temporal evidenciada pelos três momentos apontados delineia um ciclo: entre o primeiro e o último verso inscrevem-se nascimento e morte, e seus correlatos luz e treva, conhecimento e anulação, busca e fuga, etc.
Assim, “Inscrição”, que numa primeira visada seria tão-somente a epígrafe do livro, assume também o sentido de (auto-)epitáfio. O mesmo substantivo do título aprisiona duas formas, autônomas e quase antônimas, de discurso.
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CLEPSIDRA: A PRESENTIFICAÇÃO DO PAN-SOFRIMENTO DA CONSCIÊNCIA LÍRICA DE CAMILO PESSANHA
O primeiro elemento que chama atenção nesse poema é o facto de sua estrutura corpórea ser reduzida, uma vez que todo ele é composto somente por quatro versos. Embora isso seja evidente, não seria escusado dizer que o seu campo semântico transcende os limites aparentes que sua estrutura física possa sugerir. Desse modo, a consciência lírica do eu-poético que emerge no âmbito desse poema faz sua voz vibrar num tom melancólico altissonante no qual ela deixa transparecer todo seu desânimo e descrédito diante de si (enquanto ente pertencente a uma realidade) e por si próprio (enquanto indivíduo consciente de sua condição existencial). A consciência de si que é expressa por essa consciência lírica constitui o fulcro anímico que alimenta o poema. É interessante observar que essa consciência lírica se autodefine, ou melhor, se autorreconhece após uma revelação presenciada num lugar “perdido”: “Eu vi a luz em um país perdido.” Posteriormente a essa visão, vem a revelação plena da essência dessa consciência do eu: “A minha alma é lânguida e inerme.”
Outro elemento a ser considerado no processo de autodefinição do eu-poético se assenta no uso dos adjetivos que são empregados como propósito de estabelecer uma ligação semântica entre o qualificativo de país (perdido) e os qualificativos da alma desse eu (lânguida e inerme). Lemos (1981, p.57) chama a atenção para essa aproximação semântica entre os qualificativos do eu e do lugar (país) entendendo-a como um elemento indicador de um estado de ânimo ausente e inerte na figura do eu. Após expressar a essência de sua alma e manifestar um certo descontentamento por aquilo que lhe é intrínseco, o eu responde à sua condição de ser, manifestando o desejo de habitar o mundo no qual sua existência seja ação e força motora: “Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! /No chão sumir-se, como faz um verme...”.
O desejo de habitar nesse mundo de ação é tão intenso no eu-poético que ele faz uso do vocábulo verme para expressar, num plano conotativo, que até os seres mais insignificantes desse mundo são dotados com a capacidade de se movimentarem. Entretanto, o vocábulo verme no corpo do poema se configura como um vocábulo plurissignificativo cujo plano conotativo ampliado designa aí a presença da morte.
O signo da morte é um elemento que se faz mais evidente no campo significativo do poema quando se percebe que a idéia expressa pelo título, Inscrição, remete para pedras tumulares (os epitáfios), como observa Lemos (1981,p. 57). Destarte, fica o simbolismo do poema alicerçado na base antitética: movimento (que pressupõe força anímica, e logo, presença de vida) e inércia (que pressupõe a ausência anímica, logo a morte).
Esse pequeno poema (em sentido formal) é capaz de exemplificar como os poetas simbolistas, como Pessanha, conseguiam apreender em poucas palavras questões de ordem existencial e filosófica tão conflitantes e discutíveis e elevá-las a um patamar de significação profundo e animado com uma singular beleza. É inegável que o movimento simbolista legou aos meios intelectuais e acadêmicos europeus no final do século XIX um novo modo de apreender a realidade e expressá-la segundo caracteres expressivos que tendem mais para a sugestão e, nesse caso, para sua recriação do que propriamente para representação ou retratação.
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CAMILO PESSANHA: O MORTO ALEGRE E A POESIA MODERNA
O primeiro poema de Clepsidra – “Eu vi a luz em um país perdido. / A minha alma é lânguida e inerme. / Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme...” revela uma ressonância espantosa com “O morto alegre” de Baudelaire. Em primeiro lugar, há a ideia de “cavar um buraco bem fundo” (BAUDELAIRE, 1985, p. 285) na terra para a obtenção de um almejado descanso; em segundo lugar, há a imagem do verme, sendo que no poema de Baudelaire os vermes são convocados a devorar o morto alegre que chegará, ao passo que no poema de Pessanha o trabalho sobre a imagem do verme é um pouco mais sutil. Ali, o verme serve como termo de comparação, pois o poeta não diz que quer ser devorado pelo verme, mas sim que quer ser o próprio verme. O verme, em seu sumiço debaixo da terra, é o alter ego do poeta, aquele cuja obra só se realiza por meio de um desaparecimento.
Além disso, o poema “Inscrição” parte da privação de relação com a origem, privação descrita no segundo verso como um enfraquecimento. Numa leitura mais imediata, poderíamos identificar o “país perdido” a Portugal, associando o país de Pessanha a toda uma rede de significantes que passam pela ideia de decadência, de desolação, de fracasso, leitura que não deixa de ser bastante pertinente. Outra leitura possível seria estabelecer uma relação entre o país perdido e o poeta, o que significa que não é o país que está perdido, mas que as ligações entre o poeta e seu país natal foram quebradas, cindidas. Ora, se se trata do país em que o poeta viu a luz – seu país natal – e se trata também do verso de abertura do livro, é o livro inteiro que estará marcado pelo signo do exílio, de uma perda que não pode ser eliminada, compensada ou mesmo ultrapassada. Acrescento a esse sentido um dado autobiográfico que ganhará também um desdobramento posterior: o exílio voluntário de Pessanha em Macau.
A condição inelutável do exílio pode ser reforçada, no sentido autobiográfico, pelo trecho de uma carta escrita por Pessanha, transcrita e comentada por Paulo Franchetti no livro Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha: “Todo o meu passado que me fugiu assim que eu voltei as costas. Agora escuso de tornar a Portugal.” (FRANCHETTI, 2001, p. 19)
Izabela Leal. Revista Convergência Lusíada, n.º 26, julho - dezembro de 2011, pp.42-43
RECORTES GROTESCOS NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA: CORPO EXAGERADO, LASCIVO, QUIMÉRICO E O NÃO-CORPO
Sonoramente, o que mais chama a atenção no poema é sua dupla possibilidade de leitura: seu verso heterométrico, sem uma marcação rítmica de se destacar aos ouvidos e olhos do leitor, também pode ser considerado isométrico, numa leitura pausada, lânguida, como indica P. Franchetti:
Para manter a isometria da estrofe, tem-se de fazer um verdadeiro esforço para evitar a crase e as elisões que ocorreriam normalmente, tem-se de lê-lo arrastadamente, realizando assim, no nível da expressão sonora, um símile do langor que é a sua matéria conceitual. (Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, pp. 36-37 )
A singularidade do verso é atestada pelo autor em variações possíveis ou não na leitura do mesmo. Além do aliterado /m/ no segundo e quarto versos, ternos a insistência do som chiante que enfatiza o “deslizar” do ser poemático. Parece-nos que a construção de uma sonoridade hermética constitui um paradigma senão grotesco, inusitado e extravagante.
A rima alternada e os marcadores linguísticos de pausa textual dão aos versos uma carga de isolamento que eles mais parecem aforismos do que um todo poético.
Essa fragmentação do discurso, marcadora de uma sensibilidade moderna, demonstra como a desconstrução dos símbolos ocorre para que eles permaneçam apenas símbolos. Os símbolos mais notórios do poema são: “país perdido”; “almalânguida e inerme”; e “sumir-se, como um verme”
Ao analisarmos o sentido dos versos, os aforismos, fragmentários, indicam um caminho de leitura, entre vários possíveis, em que o eu lírico que lê Portugal como destino, parafraseando Eduardo Lourenço, como uma falência múltipla, um corpo pátrio sem unidade alguma, seja ela corporal, histórica ou individual. Todos os símbolos são apenas símbolos. Destituídos de significação para o eu poemático e para a própria coletividade, eles encarnam um grotesco desejo, todo ele autômato, com origem, segundo Franchetti, no langor:
O langor, que na poesia finissecular tem larga voga e é talvez o topos mais frequentemente atualizado, não se apresenta como um sentimento simples nem estático. Pelo contrário, é cambiante, e se constitui por uma oscilação entre vários estados de alma, ou pela coincidência deles: atonia, volúpia, morbidez e definhamento — revestindo-se às vezes da coloração própria do tédio, mas sem com ele se confundir. De facto, o langor implica sempre o desejo, e, como nota Jankélévitch, se o tédio é amorfo, o langor é dinamizado pela esperança da volta.(FRANCHETTI: 2001, p. 35 )
Ainda que o langor seja dinamizado pela esperança, ele parece encerrar qualquer possibilidade que ela se manifeste. O primeiro verso-aforismo demonstra no adjetivo que o finaliza a visão que tem do país: “perdido”, no entanto será este país Portugal? Será Macau? Ou outro lugar qualquer? Segundo Franchetti, “a perda do país em que se deu o nascimento real ou espiritual conduz à languidez” (Idem, Ibidem, p. 36). Apesar de todo referencial intertextual que o substantivo “país” traz, poderíamos pensá-lo como um não-lugar, espaço abstrato e de abstração.
A sensação coletiva de vazio no período finissecular faz com que qualquer lugar seja nenhum. O niilismo se expressa não apenas na fragmentação dos discursos, mas também na lacuna e até mesmo no Nada. Ver luz no vazio, no nada, no “país perdido” é um paradoxo que potencializa o estranhamento, e mesmo o grotesco de um local impossível de se situar. O verso possibilita urna leitura filosófica da falta de direcionamento do eu poemático e de toda a civilização da época. Seria mesmo Portugal?
Em outra perspectiva, o “país perdido” pode fazer uma referência a Atlântida, ou a civilizações que se perderam na história. Dentre elas, é plausível identificar o Portugal mítico-saudosista. Sobre a criação da saudade como mito português. Eduardo Lourenço indica sua fundação em Oliveira Martins. Além disso, “(...) o mito martiniano, em torno do qual se articula a nossa história como decadência inconformada consigo mesma, reintegra-se o mais humilde e exato campo dos factos sebásticos ou messiânicos. (LOURENÇO, Eduardo. Op. Cit. p. 47)
Assim sendo, o pais historicamente perdido é uma criação da historiografia da geração dos Vencidos da vida, e se torna um elemento sorvido pela cultura portuguesa. No entanto, o segundo verso, numa ruptura absolutamente brusca do que era dito no verso anterior, faz uma afirmação típica do lirismo simbolista e decadentista: “A minha alma é lânguida e inerme.” O ar de moleza, morbidez e abatimento recai sobre a psique do eu poemático em uma única palavra. Seu complemento é a falta de defesa e a covardia.
Contraditoriamente, essa ruptura brusca entre os dois temas, país e alma poemática, encontra uma semelhança no uso dos adjetivos. Segundo Franchetti, os dois adjetivos. “lânguida” e “inerme” são os dois pontos focais do poema. Ambos possibilitam a inserção do anterior “perdido” no mesmo universo semântico. Sendo Portugal a macrorreferência do indivíduo, podemos pensar no corpo que transcende seus próprios limites e atinge um universalismo que o transforma em um corpo além do que se é, novamente referindo-nos a Nietzsche. Se a pátria arquetípica é Macau (China), as forças centrípetas de uma cultura outra atingem o indivíduo e ele se entrega sem resistência alguma a essas “luzes”.
Embora todas as leituras acima sejam pertinentes, é mais condizente com a estruturação do poema pensar em uma pátria que é o não-lugar. A não identificação do eu poemático com o espaço é indicativa de que ele pode se referir a qualquer lugar. O uso do artigo indefinido corrobora tal afirmação, No entanto, a contextualização do lugar nos é dada por fatores extrapoemáticos, ou por outros poemas contidos na exígua obra de) poeta. Assim sendo,
[...] talvez seja importante ressaltar que não é por estarem aqui diretamente justapostos os momentos extremos da temática do exílio, que nos devemos iludir, e esquecer as tantas e tão diferentes formas pelas quais o sentimento inicial do exílio evolui, até se cristalizar em langor. Esses quatro versos apenas condensam um longo desenvolvimento temático, cujos rastros parecem estar disseminados pela maior parte dos poemas de Pessanha. (FRANCHETTI: 2001, p. 37)
O exílio é langor e o país perdido é um não-lugar abstrato, idealizado como estranho a si e a quem o idealizou, afinal, parece-nos, ser uma parte daquela construção cultural que é o saudosismo mítico. Longe de ser um local comum, a própria indefinição desse espaço a aproxima do irreconhecimento que possibilita um viés grotesco. Se a pátria é aproximada do ser poemático, o mesmo ganha uma roupagem do universo grotesco.
Com mais uma ruptura semântica abrupta, o terceiro verso-aforismo indefine e/ou generaliza, até certo ponto desdenhando através do uso do pronome substantivo no início da oração. A invocação feita antes é para ninguém, ou seja, alguém que possa “deslizar sem ruído!” O niilismo finissecular permeia o texto não apenas em seu sentido, mas no corpo. A própria fragmentação do corpo do poema, do quarteto com versos individualizados nos leva a pensar numa linguagem poética experimental e, ao mesmo tempo, grotesca, pois não apenas se questiona como também se desconstrói e se recria cm um aforismo seco, duro ‑ um ultimatum a ninguém e a todos, do eu lírico para o eu lírico. O homem-além-do-homem.
Por outro lado, é a representação de um mundo que por si só é representação. Schopenhauer e sua aspiração à coisa-em-si se desconstroem no ceticismo e na melancolia do poeta. Estas, que constroem um corpo poético, um corpo de um eu poético, um corpo pessoal, uni corpo histórico, levam o ser ao nada. O corpo é grotesco em sua impossibilidade de ser metafisico. O terceiro verso procura restituir ao eu poemático um estado de resiliência do corpo e do ser, ainda que esta seja também deformação: “Ó! Quem pudesse deslizar sem ruido!”
A partir disso, pensamos no grotesco de Wolfgang Kayser e sua noções de estranhamento e alheamento. A teoria esperpêntica de Valle-Inclán discorre sobre a deformação do real para refletir sobre esse mesmo real. A teoria bakhtiniana do “mundo às avessas” não cabe neste poema, pois apesar de certa dose de autoironia, o eu poemático não possui a ambivalência necessária para a reconstrução do universo em forma de paródia. O espectro filosófico aqui pende para um precoce existencialismo que, ainda assim, não se reconhece.
O último verso-aforismo começa sem um sujeito a quem a fala se direciona. Obviamente que ele está elíptico e retoma o pronome usado anteriormente, mas o aspecto gramatical mais notável é que o verbo “sumir” se toma reflexivo e não possui o complemento que geralmente lhe é requisitado. O ser se esvai, se liquefaz e se toma o que é: nada, A teoria de Nietzsche, mesclada a de Heidegger, ou em um outro olhar mais sartreana, caracteriza o grotesco. Este perde seu caráter risível e se toma absolutamente tenso, retrátil. Ele não é estranho, nem o espelho deformado de si. Ele é irreconhecível — o grotesco está no desconhecimento completo de si mesmo. A subordinada adverbial comparativa a seguir, que encerra o verso e o poema, dá a única condição possível ao ser: comparar-se a um verme.
De viés mais filosófico, com sentido histórico ou pessoal, o corpo poemático, o corpo do eu lírico, o corpo da história, enfim, todos os corpos possíveis se tornam impossíveis numa existência em que o ser é não-ser, o ser não se reconhece em si, nem em nada, exatamente por isso grotesco. De outra maneira, o irreconhecimento é parte do belo ou do sublime? No caso do poema de Pessanha ele se junta ao seu ceticismo e melancolia para não Ser, mas ser feio e decepcionante.
“INSCRIÇÃO”
Sob o prisma da negação, o poema
“Inscrição” projeta o cunho decadente do eu lírico através de uma certa
distância temporal que parece haver entre o fato narrado e a narração da cena.
Uma vez que que a negação contempla conceitos de oposição em relação a
determinada verdade ou afirmação, o ato de enxergar do eu lírico é comprometido
pela indecisão e imprecisão do algo visto. Em outras palavras, a contemplação
resvala na incerteza da mescla do nada e do tudo: “Eu vi a luz em um país
perdido”:
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem
ruído!
No chão sumir-se como faz um
verme...
(PESSANHA, 2009,
p. 53).
Nota-se que o poeta não vê valores,
cultura, tampouco matéria, mas reconhece um algo que antecede a existência da
coisa em si. Esse batismo da luz, que tentaremos explorar em “Poema final”, é a
passagem do nada para o tudo, é a passagem do escuro para o claro, da não vida
à vida. Ainda que essa passagem pareça repelir a ideia de negação, é pertinente
observar que o batismo da luz não implica necessariamente a afirmação e a
consciência plena do existir. Embora a luz carregue uma carga simbólica de
clareza e descoberto, o objeto ou lugar banhado por ela está perdido. Diante
desse cenário, temos aqui uma antítese: a luz, contrariamente ao seu
pressuposto significativo, desponta como grau de intensidade para notabilizar a
ruína do país perdido.
Ainda nessa linha de pensamento, o que
observamos no país perdido é a negação da existência do país (está perdido) e
do próprio sujeito. Ainda observando os apontamentos de Schopenhauer, o
filósofo anota que “[...] tais metades [sujeito/objeto] limitam-se
reciprocamente: onde começa o objeto, termina o sujeito” (SCHOPENHAUER, 2015,
p. 6).
Ainda que Schopenhauer entenda essas
concepções da luz como reflexo pessimista do indivíduo, é de suma importância
constatar que o pessimismo compõe, observando os apontamentos de Kurrik (1979),
a esfera de determinados valores que convergem e completam a esfera de negação
em detrimento da afirmação. Por esse ângulo, o primeiro verso de Clepsidra afirma
uma imagem negativa e a ele vem atrelada uma série de pormenores que se
aglutinam e reafirmam a concepção da negação do presente ou da realidade.
Por essa linha de raciocínio, a afirmação
do eu lírico de ver algo (a luz em um país perdido) reconhece um pressuposto de
ter existido um país, seja ele real ou ideal, mas que essa realidade se
esboroou, restando dela apenas alguns resquícios de lembrança ou honra
metaforizadas pela luz. A negação do país jaz na ideia de aniquilação que o
próprio eu lírico parece propor ao empregar diferentes tempos verbais na
construção dos versos e da estrofe.
De modo específico, é pertinente notar que
há alguém no tempo presente anotando ter visto a luz em um país no passado;
logo após esse registro, o sentimento decorrente dessa lembrança pessimista
reflete no âmago do eu lírico no presente em que escreve. Essa mistura de
tempos verbais em que o “ver” do passado reflete no “ser” do presente (lânguido
e inerme) resulta, ainda, em um terceiro modo verbal afirmado pelo subjuntivo.
Gilda Santos, em Camilo Pessanha em dois
Tempos, afiança esse pensamento ao observar “que a progressão temporal
evidenciada pelos três momentos apontados delineia um ciclo: entre o primeiro e
o último verso inscrevem-se nascimento e morte, e seus correlatos luz e treva,
conhecimento e anulação, busca e fuga etc.” (SANTOS, 2007, p. 28). Não obstante
essa fusão de tempos presente/passado, a conjectura “Quem pudesse deslizar sem
ruído” respalda certa ideia de diluição temporal em que o tempo e o espaço já
estão definidos através de pressupostos (SCHOPENHAUER, 2015).
Ora, se tempo e espaço já estão
pressupostos através da universalidade das coisas, a preocupação de Pessanha no
que tange ao emprego dos tempos verbais se dá na medida em que o poeta observa
que a linearidade do tempo está comprometida pela pressuposição da mente. Isso
é negação: Pessanha não atribui aos seus poemas a verossimilhança temporal uma
vez que esta carece da precisão do intelecto em entender a necessidade do
começo do meio e do fim das coisas.
Sendo esse o tom do poema, o verso três
traz uma combinação de sons que respalda o desejo da não existência em face de
uma Vontade schopenhaueriana universal de existir.
O filósofo (2015) observa que a vontade que delibera sobre o mundo delibera,
também, sobre o sujeito, trazendo matérias à luz da existência através
de uma vontade autônoma que rege o cosmos.
Mesmo que Camilo Pessanha admita e
reconheça essa vontade autônoma e dominadora do cosmos, o poeta traça um
caminho oposto em relação a essa existência iminente e axiomática. Depois da
declaração de ver “a luz em um país perdido” e de constatar a melancolia do
espírito refletida nos vocábulos “lânguido” e “inerme”, o poeta se
utiliza da aliteração para causar um efeito sonoro oposto ao desejo expresso de
deslizar sem ruído: “Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se
como faz um verme...” (PESSANHA, 2009, p. 53).
Verifica-se, pelo desejo de aniquilação,
que o desejo silencioso do poeta é de não se fazer notar, de deslizar de um
lugar a outro, da vida à morte, de um modo silente em que a vontade não seja
preponderante, mas sim o desejo de aniquilação. Dessa forma, o contraste entre
desejo de não existência e existência forçosa pode ser visto justamente na
escolha dos vocábulos que repelem a tentativa do poeta de passar sem fazer
barulho.
Contrariamente ao desejo expresso pela voz
lírica, a aliteração causada pela repetição dos fonemas “S” e “Z” provoca
ruídos na declamação do verso fazendo com que “pudesse deslizar sem ruído”
sibile e sopre, finalizando essa onda de barulho com a vibração do “R” que
afronta a ideia do não ruído desejado pelo poeta.
A exploração de sons contínua nos dois
últimos versos do poema põe em evidência a luta de Clepsidra: a luta
contra a vontade cósmica, contra o cognoscível, contra o desejo de não existir
em face da existência iminente definida por Schopenhauer. E a partir desses
pressupostos, o poeta escolhe a negação, escolhe negar a presença, pois,
afinal, “[...] negação é recusa de existência” (SARTRE, 2015, p. 52).
Nessa ótica, a conexão da poesia de
Pessanha com a negação é efetuada pela desassociação; ao invés de trilhar o
caminho da luz, da cognição, o poeta percorre uma estrada oposta optando pelas
sombras e pelo subsolo, numa tentativa frustrante de se esvair à medida que a
vontade o impele à decadência.
Ezequias da Silva Santos. Aspectos
de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato Branco,
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2019
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/24/inscricao.aspx]