quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA (Camilo Pessanha)


ACUARELAS KUBI | Rain & Umbrella
        
         
Imagens que passais pela retina 
Dos meus olhos, porque não vos fixais? 
Que passais como a água cristalina 
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina 
Vosso curso, silente de juncais, 
E o vago medo angustioso domina,
— Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
— O espelho inútil, meus olhos pagãos! 
Aridez de sucessivos desertos...

Fica, sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
— Estranha sombra em movimentos vãos.
    
Camilo Pessanha
       
           
Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:
Autógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Publicações anteriores:
   Progresso, de Lamego, (22 de janeiro de 1898): sob o título genérico de "Sonetos", formando um díptico com o n.º 15;
   Centauro (dezembro de 1916): junto com o soneto 15.     
       
        
        
RECOLHA DE ORIENTAÇÕES DE LEITURA
      
        
O SENTIMENTO DE SOLIDÃO E DE INUTILIDADE
        
I
1. A componente fónica é nos textos simbolistas carregada de expressividade e de musicalidade. Por isso, merecem uma atenção especial os elementos seguintes:
‑ versos decassilábicos, rima grave e aguda, cruzada, transportes nas duas quadras;‑ predominância de sons sibilantes, sugerindo o fluir do tempo;‑ a rima em -ais: sugestão de espanto;‑ a rima em -ina: sugestão de grito;‑ a rima em -aos: sugestão de negrume, falência,‑ predomínio do som /i/ nas quadras e a sua redução nos tercetos, sugerindo, respetivamente, ansiedade forte e redução dessa ansiedade;‑ frequência dos sons nasais: conotação de negatividade;‑ musicalidade, conseguida pela repetição de vogais e ditongos. Todos estes dados são conjugados habilmente para criar uma atmosfera de inquietação e de desalento face ao fluir do tempo.

2. A componente morfossintáticaAs ideias são expressas em palavras e estas organizadas segundo regras gramaticais. Por isso, é preciso conhecer os elementos do nível morfossintático:‑ os verbos que traduzem movimento contrapõem-se aos que indicam estabiildade: passais, ides, levais, lixais, termina, domina, fica. Assim, os verbos dinâmicos são anulados pelos estáticos, sugerindo que o movimento das imagens é permanente, só terminando na morte;‑ a ligação sintática de vocábulos abstratos/concretos ou concretos/abstratos: olhos pagãos, aridez de desertos, espelho inútil, dedos incertos, sombra das mãos, movimento vão. Os elementos abstratos destroem os concretos, sugerindo o niilismo que se encontra sintetizado no sintagma "lago escuro";‑ três frases interrogativas, sugerindo angústia;‑ duas frases exclamativas ligadas a signos reticentes, sugerindo ansiedade, espanto perante o impossível;‑ abundância de marcas do sujeito poético: meus, m/m, me, vós, meu, minha, sugerindo o obsessão da posse que não consegue realizar.


3. A componente semânticaTodos os dados anteriores terão de ser confirmados pelas figuras deste nível:‑ predomínio de imagens simbólicas: espelho inútil → aridez; fonte para nunca mais → morte; como água cristalina → fluir perfeito; lago escuro → morte;‑ imagens criadas pelo uso das sibilantes, dos sons nasais e da vogal /i/;‑ antíteses: lago escuro/ água cristalina: o eterno oposto ao efémero.

(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 304)
       
        
II       
1. Faça a classificação formal do poema.


2. O poeta procura uma relação de si próprio com a realidade.2.1. Note como a pessoa verbal utilizada nos reforça essa imagem de relação.2.2. O mundo exterior aparece conotado com a fugacidade, com a efemeridade; que elementos, a nível morfo-sintático e semântico, nos transmitem essa sugestão?2.3. «Sem vós o que são meus olhos abertos?»Que comentário lhe merece esta interrogação, na perspetiva da relação atrás indicada?2.3.1. Relacione-a com os dois versos subsequentes — comente as imagens utilizadas para definirem os olhos.
3. Na segunda quadra sugere-se a temática da morte, ligada à ideia, atrás apontada, da efemeridade das coisas.3.1. Que elementos sugerem essa ideia?3.2. Que visão da realidade nos fornece essa sugestão?
4. No segundo terceto, o poeta dirige-se à sombra das suas próprias mãos.4.1. Comente o modo verbal utilizado.4.2. Que valor atribui ao facto de se tratar das sombras e não das mãos?4.3. Comente o valor semântico dos adjetivos utilizados nos dois últimos versos.

http://testesdeportugues.blogspot.pt/2010/03/imagens-que-passais-pela-retina.html
               
III       
Analise o soneto “Imagens que passais pela retina”, incluindo os aspetos seguintes:
  o destinatário escolhido ‑ não elementos do real, mas as imagens do real ‑ e seu significado;
  os processos de representação da passagem do tempo e da sua suspensão, na morte;
  os pedidos expressos pelo sujeito poético, identidade das suas implicações;
  as consequências da passagem do tempo 
     ‑ no conhecimento da realidade,
     ‑ no autoconhecimento.
     ‑ na atribuição de um sentido à existência.
(Plural 12 A, E. Costa, V. Batista, A. Gomes. Lisboa Editora, 1999, p. 164)
       


Outro tema característico da poesia  de Pessanha verifica-se nestas duas coisas correlativas: por um lado, a descrença de que algo de essencial exista  para além das [...] simples aparências sensoriais; por outro lado, a indecisão, a abulia do próprio poeta. Em certo vocabulário predileto, e até pelos seus nexos sintáticos mais típicos [...], o poeta insinua constantemente tudo encarar como simples imagens, miragens, sonhos transitórios, senão evanescentes ou mesmo dúbios ‑ imagens  que não se fixam  na retina dos olhos, este espelho inútil e aridez de sucessivos desertos. As próprias mãos se reduzem a uma estranha sombra em movimentos vãos, com dedosincertos em mera flexão casual. Quer isto dizer que o instrumento primordial da vontade, o desses dedos manuais, nos surge ferido de estranheza, desintegrado de um querer pessoal totalizante. [...] Estamos perante a inessencialidade do que quer que seja, implicando por seu turno a mais completa indecisão e inapetência; pois onde, com efeito, haja vontade, tem de haver um postulado de essência ou racionalidade objetiva.              


Óscar Lopes, “Pessanha, o quebrar dos espelhos”, in Ler e Depois, 3.ª ed., Porto, Ed. Inova, 1970

      
       
IV      
     
Elabore o comentário global do texto analisado, orientando-te pelos tópicos seguintes:     
- tema;    
- desenvolvimento do tema;    
- relação o sujeito poético com o mundo;     
- significado da falência dos olhos e dos dedos;     
- recursos expressivos;     
- ligação do poema ao simbolismo.
(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 304)
         
      
            
ANTOLOGIA DE TEXTOS DE APOIO
      
Exploração do soneto “Imagens que passais pela retina”, Lilás Carriço (1977)
Realismo e Simbolismo em ClepsidraJoão Camilo (1984)
À sombra das mãos: o sujeito e a escrita. Gilda Santos e Izabela Leal (2007)
Análise e interpretação do poema “Imagens que passais pela retina”:
 - por Nilza A. Hoehne Rigo (2007)
 - em www.lithis.pt
A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Camilo PessanhaMelissa Andrea Marietti (2008)
O “eu” revelado e as máscaras do “eu”. José Eduardo Ferreira (2011)
O século XIX: visão subjetiva e pós-imagemIcaro Ferraz Vidal Junior (2012)
Recortes grotescos na história da literatura portuguesa: corpo exagerado, lascivo, quimérico e o não-corpo. José Horácio de Almeida Nascimento Costa (2012)
Uma poética do signo, da imagem e da sugestão. Fernanda Maria Romano (2013)
      
       
 
        
           
EXPLORAÇÃO DO SONETO “IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA”
Numa breve apreciação formal, dizemos que no soneto há rima grave e aguda, cruzada, quer nas quadras, quer nos tercetos. O verso é o decassílabo, de ritmo variado, ora deslizante, ora sacudido, ora martelado ‑ «Porque ides sem mim, não me levais?» ‑ (note-se o hiato), com o transporte que ou o alonga, ou o encurta, a traduzir a ansiedade, a inquietação, até o nervosismo, atenuado, ao concluir, com os sons nasais e as aliterações ‑ «Estranha sombra em movimentos vãos.» em ressonância, à maneira de um eco.
Observe-se na rima: → ais – espanto
                                     → ina – grito
                                     → ãos ‑ negrume
                                     → ãos ‑ negrume
São mais abundantes os sons sonoros; predominam as palatais e as labiais também, mais favoráveis do que as guturais à sugestão do fluir que o poeta procura transmitir.
O conteúdo
Muito embora estejamos perante uma composição que afirma a excelência dosimbolismo de Pessanha já quanto às imagens, já quanto à musicalidade, nela se espraiam, como num estuário, os obsessivos pensamentos do poeta resultantes da motivação que é uma constante nos seus poemas ‑ a fugacidade da vida, a dolorosa consciência de que a realidade para ele não passa de imagens rápidas, passageiras.
Tal como, por vezes, acontecia na poesia barroca, e recordamos, a propósito, o soneto de uma poetisa anónima ‑ «Amor, se uma mudança imaginada», também neste soneto é possível reduzir os catorze versos a um esquema ideológico que se traduz no conteúdo da, 1.ª frase ‑ Imagens que passais (pela retina dos meus olhos) ‑ do 4.° verso da 2ª quadra ‑ Porque ides sem mim ‑ e o 1.º e 2.º do 1.º terceto ou o último verso do poema ‑ Sem vós que são os meus olhos abertos? ‑ espelho inútil (aridez de sucessivos desertos – estranha sombra). Os mais versos do soneto funcionam complementarmente em relação a este eixo ideológico constituído, talvez, por dois cardiais, conforme o sublinhado.
O tema das mudanças, que Heráclito constatou com o seu desencanto de filósofo pessimista e que vimos já desenvolvido por tantos poetas desde o sirventês moral e iremos ver em Fernando Pessoa, surge, aqui, mais negativamente apresentado pois, em qualquer dos poetas clássicos, como Camões, Sá de Miranda, D. Bernardes ou R. Lobo, pressente-se um estado atual negativo, mas para trás algo ficou de positivo. Não assim em Pessanha, como vemos no soneto.
O tema apresenta, aqui, um desdobramento. À 1.ª pergunta inquietante, segue-se uma 2.ª carregada de niilismo. A uma atitude ansiosa traduzida nas perguntas, a traduzir a certeza de que tudo passa, segue-se, pois, nos tercetos a afirmação do nadaque é ele ‑ e o homem ‑ o qual, à semelhança de Tântalo, não consegue prender a vida, que passa, para matar a sede de viver. Nesta 2.ª parte, justifica o poeta esse niilismo, pois os olhos, embora abertos e não cegos, são pagãos ‑ nada fixam, nada pensam, são espelho inútil, aridez de sucessivos desertos ‑ tudo despido ‑ e até os seus dedosincertos têm ‑ «movimentos vãos». Notem-se, nesta sequência de elementos conotativos de niilismo, os pares abstrato-concreto ou concreto-abstrato (olhos pagãos; aridez de desertos; espelho inútil; dedos incertos, sombra das mãos; movimentos vãos). Da mesma forma que são passageiras as imagens da vida, é fugaz a sombra; mas, apesar de tudo, o poeta agarra-se a ela como a única forma de presença possível na incapacidade de segurar a realidade, que não passa de imagens. E o imperativo ficatraduz a ansiedade do poeta perante esse evoluir imperdoável, refugiando-se neste último recurso que, assim, restringe a vontade do todo numa parte.
A mudança não tem tempo; nela não há passado nem futuro-a vida é-sempre no presente, que é rápido, e sempre a caminho do fim. Note-se, pois, a escassez de verbos, e, portanto, de orações, principalmente subordinadas. Nos verbos, aos que traduzem movimento como ‑ passais (duas vezes), ides levais, contrapõem-se os de estabilidade ‑ fixaistermina, domina, fica. Mas estes são anulados por aqueles e, nem sequer‑termina domina destroem esta noção de movimento que só acaba com a morte.
São abundantes as imagens simbólicas, significativas, de uma poesia abstrata a traduzir uma atitude de dúvida, ansiedade, desencanto, como já dissemos. Esses símbolos ou são dados diretamente pela metáfora: ‑ os olhos → (espelho inútil →aridez...), morte → fonte para nunca mais → lago escuro ‑ (uma e outra com sentido gradativo crescente) ou indiretamente pela comparação: ‑ Imagens / que passais como a água cristalina ‑ (a comparação sugestiva do quase invisível, do quase impalpável): ou, até mesmo, pelos sons – o predomínio da sibilante a conotar a ligeireza do tempo; a intensidade do som ‑ gritante nas quadras mais tradutoras dessa ansiedade (11 vezes aparece ele), reduzindo-se nos tercetos à medida que se atenua essa angústia sem remédio, assinalando-se, até, o predomínio do som fechado oral ou nasal, mais cheio e rico de som; ainda sugestivo o emprego do som u ‑ fechado ‑ escuro, curso ‑ com a sua conotação espacial.
As imagens simbólicas registam-se ainda a nível de localização espácio-temporal que não conta na poesia de Pessanha Aqui, simbolicamente ‑ nunca mais nega o tempolago escuro nega o espaço e levam-nos ao pensamento da morte, como vimos já.Note-se a antítese entre lago escuro ‑ morte, o que é eterno, e água cristalina ‑ vida, o que é efémero, o que passa ‑ a água cristalina aponta para a efemeridade da vida que passa sem se dar conta, assim como a água da qual não se vê nem a cor, nem a forma. Várias notações de lugar: pela retina ‑ por uma fonte ‑ para lago ‑ onde ‑ que são realçadas pela cor ‑ cristalina e escuro e pelo não-som ‑ silente ‑ que está contrariado pela presença de juncais (pavor-medo-morte?)
Há uma curiosa ligação entre a ideia de fugacidade das imagens sugeridas nas quadras e a vacuidade dos seus olhos que não podem reter essas imagens.
Atente-se também no valor da pontuação ‑ três frases interrogativos ‑ a lembrar-nos Antero, o inquiridor, também angustiado de «Noite, irmã da Razão e irmã da Morte»; duas exclamativas e duas reticentes a conotarem a inquietação, a ansiedade, o espanto perante o inatingível, o impossível.
A poesia serve para caracterizar o comportamento de Pessanha quanto à noção de espaço. Porque nos oferece uma visão subjetiva, porque fala de imagens, aponta para o colorido dominante da sua poética carregada de indefinições, ideias vagas, fluidas, imprecisas tal como o seu pensamento que, por isso, rejeita a descrição. É uma técnica tipicamente impressionista pelo significado dos sons, pelo indefinido dos traços, pela leveza das imagens captadas subtilmente pelos sentidos. Aliás, em Pessanha, o simbolismo instrumental de Verlaine afirma-se com frequência, como tivemos ocasião de observar.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano, 1986 (4ª ed.), pp. 357-359.
      

        
       

      
     
REALISMO E SIMBOLISMO EM CLEPSIDRA
Se se quisesse apontar um dos traços essenciais, talvez o mais significativo, da poesia de Camilo Pessanha, devia precisamente sublinhar-se esta alternância, que é mudança constante, de frases suspensas, invocações que instauram um clima de rêverieou de meditação nostálgica, e de frases interrogativas, em que se manifesta a vontade de compreender e a revolta.
Este processo é tão frequente que encontramos exemplos dele em cada poema. Num poema como Imagens que passais, que ilustra bem o que acabamos de afirmar, a interrogação sobrepõe-se inicialmente à simples afirmação nostálgica. Toda a segunda quadra é uma interrogação, que continua aquela já expres.sa nos dois primeiros versos do poema. Os dois últimos versos da primeira quadra («Que passais como a água cristalina/ Por uma fome para nunca mais!... ») constituem, porém, a afirmação em que se exprime a simples nostalgia; e contrastam, pela atitude de aparente conformismo e impotência que manifestam, com a interrogação que os precede e que se continuará em seguida até ao primeiro verso do primeiro terceto, logo que o sujeito do poema se interroga: «Sem vós o que são os meus olhos abertos?». A resposta introduz de novo frases exclamativas, em que as reticências exprimem a suspensão do discurso) sugerindo a nostalgia do espírito embebido em recordações e meditações: «‑ O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos...» O poema prossegue com a expressão de um desejo («Fica sequer, sombra das minhas mãos», etc.), prova evidente de que o sujeito do poema subsiste ainda enquanto ser dotado de vontade, disposto a não se conformar inteiramente com a situação que acaba de evocar (disposto a não se sentir definitivamente afastado e excluído do mundo). Mas o último verso reintroduz de novo a atitude contemplativa e manifesta o sentimento de estranheza do sujeito do poema, que caracteriza os gestos das suas mãos como (Estranha sombra em movimentos vãos.»
Boletim de Filologia, tomo XXIX, Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa, 1984, p. 297.
      
       

      
     
À SOMBRA DAS MÃOS: O SUJEITO E A ESCRITA
Este soneto foi escrito em 1896, conforme as indicações presentes no Caderno Poético de Camilo Pessanha, onde observamos o aparecimento desta data em dois registros diferentes do mesmo, conforme consta nos anexos 1 e 2 deste trabalho. Em primeiro lugar, temos o recorte de uma publicação que, de acordo com Paulo Franchetti, seria do jornal O Progresso, e aparece no Caderno com data de 1896, configurando um díptico com o que se inicia por “Quando voltei encontrei os meus passos”, este recebendo o número I e aquele o número II. Encontramos, em ambos os poemas, inúmeras correções de Pessanha, feitas por cima do recorte colado no caderno. Algumas páginas adiante há o segundo registo do poema, dessa vez totalmente manuscrito, onde se apresenta uma versão que parece resultar das correções efetuadas sobre a colagem, com data também de 1896. Em 1916, Pessanha deixa a D. Ana de Castro Osório um manuscrito, constituindo um conjunto de dezoito poemas autógrafos que entrariam na organização da Clepsydra. Nestes autógrafos, como nos relata Paulo Franchetri (FRANCHETTI, 1995 p. 33), o soneto é apresentado de modo a manter-se em díptico com o outro poema já referido, mas a disposição se apresenta invertida, pois Pessanha coloca “Imagens...” como o primeiro e “Quando voltei...” como o segundo, indicados, respetivamente, pelos algarismos 1 e 2, entre parenteses. O mais curioso é que a versão indicada neste autógrafo parece ser a que vem no recorte de jornal, com pouquíssimas modificações — quase todas de pontuação.
Com relação à ordem dos dípticos, problema que tem sido bastante discutido, aceitaremos a indicação de Paulo Franchetti, que, em sua já citada edição crítica da Clepsydra, estabelece “Imagens que passais pela retina” como o primeiro e “Quando voltei encontrei os meus passos” como o segundo, de acordo com a vontade do poeta expressa nos autógrafos de 1916, e não na ordem inversa em que figurou em todas as edições de Ana de Castro Osório e João de Castro Osório.
Pode-se inferir a importância deste poema no conjunto da obra de Pessanha pela constância com que vem sendo analisado, ocupando um lugar de destaque em praticamente todos os trabalhos que sobre esta têm sido realizados. Ao tomá-lo como poema-chave para o estudo da sua obra, não pretendemos, com isso, depreciar qualquer outro poema seu, nem estabelecer uma hierarquia de valores entre este e os demais. Acreditamos apenas que este concentre os principais temas que perpassam a poética de Pessanha, sendo uma espécie de fragmento capaz de iluminar o todo, de modo a oferecer uma excelente oportunidade para repensarmos a sua obra e inseri-la em uma discussão sobre a criação poética.
Analisaremos o soneto “Imagens que passais pela retina”, primeiramente, de uma forma bastante geral, para depois focalizá-lo em seus detalhes, optando por uma close reading. Para tanto, a observação a ser feita inicialmente é a da presença de um sujeito que dirige uma série de interrogações às imagens que passam por sua retina. Temos de constatar a importância atribuída aos olhos — instrumentos privilegiados de interaçäo com o mundo — que representam um ponto de partida central para o estudo da obra de Pessanha. Tamanha é a recorrência deste tema, que Barbara Spaggiari chega a assinalar que é a palavra olhos a que se apresenta com maior freqüência cm toda a Clepsydra. (SPAGGIARI: 1982, p. 116) Não deve causar surpresa, portanto, que o eu-lírico se dirija diretamente às imagens, e que os olhos sejam o atributo principal desse sujeito que fala no poema.
O soneto tem uma estrutura aparentemente simples. O seu primeiro quarteto abre-se com um vocativo explícito: “Imagens”, pressionadas estas a responder, na primeira como na segunda estrofe — e já aqui implícitas —, à pergunta “por quê?” formulada pelo sujeito que busca a causa de sua angústia. É ainda para elas que vai, no primeiro terceto, a terceira questão, esta, sobre sua própria essência: “o que são os meus olhos abertos?”
O segundo terceto mantém o tipo de discurso direto, diálogo sem resposta, mudando-se apenas o alocutário, que talvez se duplique: “sombra das minhas mãos, / Flexão casual de meus dedos incertos”. Uma gradação, porém, se estabeleceu no tom empregado pelo sujeito filante: a princípio, instava, questionava: “porque não vos fixais?”, “porque não me levais?”; agora, implora, suplica: “fica sequer”; esta última súplica deve ser observada cuidadosamente, pois aqui o sujeito já parece conformado com o pouco que pede, embora, no ponto em que nos encontramos, esse pedido final pareça bastante estranho.
Assim, podemos observar que o sujeito se dirige às imagens num tom nitidamente angustiado. Pelo que nos é dito já no segundo verso, o mal-estar por de experimentado estaria relacionado à não fixação das imagens, pois elas apenas passam pela retina, passam incessantemente, sem jamais se deterem. No primeiro quarteto, o movimento ininterrupto das imagens é comparado ao movimento contínuo da água que passa por uma fonte. A interrogação estabelece um núcleo de sentido em cada uma das estrofes em que está presente, e, nesse caso, parece relacionar-se a um desejo de fixar as imagens, impedindo que o eterno transcorrer do tempo venha depositar, uma após outra, novas visões na retina. Se a fonte aparece como um lugar de passagem submetido a um fluir totalmente irreversível — a água passa para nunca mais —, e se a ela é utilizada como uma metáfora da própria retina, também o ato através do qual o sujeito experimenta o mundo é revestido do mesmo caráter transitório, pois as imagens que passam pela retina parecem estar para sempre perdidas, não podendo o sujeito conservá-las.
A segunda estrofe introduz um dado novo na leitura do soneto. As imagens percebidas têm agora um curso específico, não apenas se sucedem umas às outras. A trajetória das imagens tem um fim, um lago escuro e silencioso, que transmite, realmente, uma ideia de morte, tendo mesmo sido associado ao Hades como um todo, por Tereza Coelho Lopes (LOPES, 1983, p. 111), e mais especificamente à Lagoa Estígia, por Óscar Lopes (LOPES, 1987, p. 123). O verso que abre a segunda estrofe tem sido amplamente discutido. Paulo Franchetti faz uma análise bastante detalhada no que diz respeito à disjuntiva ou, interpretada por vários comentadores como uma falsa oposição. Concordamos inteiramente com a leitura de Franchetti, que vê na disjuntiva uma alternativa, mas não em relação ao destino das imagens, e sim como sendo as duas opções que o sujeito concebe para evitar o sofrimento. As duas soluções apontadas poderiam, então, ser lidas da seguinte forma: porque não vos fixais? ou porque não me levais? Em suma, para escapar a essa angústia da transitoriedade do mundo, o sujeito desejaria, como já apontou Franchetti:
por um lado, cristalizar o real, interromper o movimento e assim apropriar-se dele; por outro, fundir-se no real, integrar a sua mobilidade, dissolver a consciência pela identificação com o fluxo indiferenciado que termina no lago silencioso e escuro onde já as próprias imagens deixam de existir enquanto objeto de contemplação.(FRANCHETTI: 2001, p. 63)
É no primeiro terceto que temos a impressão de que o soneto começa a tornar-se um pouco mais complexo. Completando a interrogação deixada no último verso do segundo quarteto, o terceto abre com uma nova indagação, que intensifica a dramaticidade do clima melancólico esboçado até aqui. Parece-nos, pelo menos de início, que o sujeito se questiona a respeito de sua condição, e considera o que poderia significar, para ele, a perda das imagens. Devemos notar que há uma certa mudança de perspetiva introduzida nesse momento, pois até aqui havia uma lamentação pela impermanência das imagens pela impossibilidade de detê-las ou de movimentar-se com elas. Aqui, ao perguntar “Sem vós o que são os meus olhos abertos?”, a problemática parece deslocar-se um pouco, já que até agora não tinha sido vislumbrada a possibilidade de estar sem imagens; observação que já foi feita por Paulo Franchetti (FRANCHETTI: 2001, p. 65). Se no início do poema o sofrimento do sujeito se apresentava a partir da transformação ou sucessão das imagens, o que agora se apresenta está relacionado à sua ausência. Na falta de elo do que o ligue a elas, elo cuja natureza ainda não podemos delimitar, a sua condição é definida como a de um espelho inútil, ou de desertos áridos que se sucedem, passam, como as imagens e a água.
O último terceto contribui para acentuar ainda mais a tensão que se vinha desenvolvendo ao longo do poema. João Camilo já havia se referido a uma característica peculiar de alguns poemas de Pessanha: a maneira como são construídos, por omitir algumas relações lógicas entre as suas diferentes partes, acaba suscitando dificuldades de interpretação. (CAMILO: 1984, p. 31) Acreditamos que “Imagens que passam pela retina” seja um desses casos. Em uma primeira leitura, temos a impressão de que este terceto foge completamente ao tema que vinha sendo discutido. Não fosse o facto de o primeiro verso começar com o verbo ficar — no imperativo, apresentando um pedido direto —, e estabelecer uma relação de sentido com a questão da transitoriedade das imagens e o desejo, por parte do sujeito, de fixá-las, acreditaríamos que o poeta teria mudado completamente de assunto, introduzindo uma problemática totalmente nova. Mas qual seria essa problemática? Há, ou não, a introdução de um novo tema? Pediremos somente que se observe um dado inicial: ao colocarmos lado a lado as duas versões — que podem ser observadas nos já referidos anexos deste trabalho —, esta é a única estrofe que permanece praticamente inalterada, as pouquíssimas modificações que nela notamos dizem respeito apenas à pontuação.
[…]
Camilo Pessanha em dois temposGilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 125-129.
      
       
      
     
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DO POEMA “IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA” DE CAMILO PESSANHA
I
Introdução
Esse poema evoca a sensibilidade visual do leitor, usando explicitamente o vocábulo “imagens”, como termo introdutório do soneto. A valorização das imagens é patente pelo fato de o poeta dirigir-se a elas como se fossem um ser vivo, animizando-as. De fato, o caráter dramático do poema é dado nesta estrofe, pelo diálogo do poeta com as imagens que por ele passam. A colocação na forma vocativa enfatiza essa dramaticidade citada acima.
Na primeira estrofe, a imagem da água revela a idéia de transitoriedade. Essa idéia é reforçada pelo próprio verbo “passais” que aparece em repetição (1º e 3º versos). A qualidade cristalina da água denota, não só a fragilidade das imagens que não se fixam, mas também certa tranqüilidade ou paz interior, que sofrerão transformação gradativa. 
A atitude do poeta aqui é passiva; é a de um observador dos fatos exteriores. A preocupação com o seu “eu” interior está, por enquanto, em nível secundário (ele vai intensificar essa preocupação a partir da segunda estrofe, havendo reiteração da idéia de “meus olhos” duas vezes na terceira estrofe). Na terceira estrofe, os olhos do poeta, os olhos em si, não aparecem como qualidade inerente a ele, mas sim restringindo a idéia principal da retina. O “enjambement” utilizado também é índice desse distanciamento. Por outro lado, o aparecimento de “que passais” e a interrogação “porque não vos fixais?”, dirigindo-se às imagens, demonstra a preocupação predominante na primeira estrofe que são as imagens fugidias, passando para nunca mais voltarem.
Estrato Fônico
Novamente a atitude do poeta faz o tom do poema, e o tom é calmo, quase resignado, com a pergunta solta, desfechando o segundo verso e uma reticência, fechando a própria estrofe. Aliás, a reticência sugere não só a resignação do poeta, mas a idéia do fluir sem fim da água que se escoa para distâncias desconhecidas. O tom e a imagem nos são transmitidos não apenas pela seleção de semas, mas também pelas qualidades sonoras dos vocábulos. Existe um entrecruzamento das imagens visuais com as imagens sonoras, dando-nos uma dimensão do sentimento daquele que descreve. As tônicas predominantes são vogais abertas, claras, e grande parte delas é constituída da vogal medial /a/, cuja emissão se faz em posição de relaxamento da boca: imagens;  passais;  fixais;  passais;  água; mais;  olhos;  cristalina;  fonte. As duas tônicas do /i/, reforçadas pelo fato de estarem em rima no 1º e 3º versos, sugerem a idéia de infinito que vai ser reforçada no último verso a ser explicado. A própria palavra “infinito” mostra o valor da vogal /i/.
O 4º verso: “Por uma fonte para nunca mais!...”, já introduz vogais posteriores como uma preparação para o que virá na estrofe seguinte. Esse verso é impregnado de nasais. Das seis palavras que nele aparecem, apenas duas não contém nasais, e trata-se de instrumentos gramaticais cuja carga semântica é bastante reduzida. Os sons nasais nos transmitem a idéia de continuidade das imagens que vão passando, como passam as águas, continuamente, até o infinito. O vocábulo “mais”, com que se fecha a estrofe é muito sugestivo. O próprio som da palavra revela um lamento que se perde no infinito, conforme o que foi dito do /i/. E o lamento vai ecoando à distância, sem encontrar uma parada, o que é sugerido pela sibilante /s/. Esse lamento aparece não só nas rimas do 2º e 3º versos, como também na reiteração do verbo “passais” no 1º e 4º versos. Os “ais” estão contidos nessas palavras que ocupam posição importante dentro do esquema da estrofe. Aparecem em paranomásia. O ritmo da estrofe também expressa a calma do poeta: é fluente, contínuo. Essa cadência rítmica reforça a sucessão das imagens e a idéia de continuidade. Existe maior tensão após a cesura do 2º verso, o que vai enfatizar a interrogação: “porque não vos fixais?”.
Na segunda estrofe o tom adquire um aspeto sombrio. O poeta volta-se para dentro de si, fato nitidamente mostrado no 3º verso, após o que duas referências a si mesmo aparecem no 4º verso: “mim” e “me”. Agora a imagem da “água cristalina” é substituída pela do “lago escuro”, uma imagem sombria, tétrica, conotando morte em oposição à vida das imagens anteriores. O elemento, água, é o mesmo. Apenas o aspeto é que muda. Esse elemento de diluição vai culminar na “sombra das mãos”, na última estrofe do soneto. Por enquanto, vamos analisar a segunda estrofe. Novamente temos a aliança da imagem visual com o plano sonoro do poema. Note-se a predominância marcante das vogais fechadas, com o grande número de vogais posteriores, que dão a própria imagem do sombrio: /u/ e /o/. No verso mais expressivo dessa estrofe que é o 3º, aparece apenas uma vogal aberta em contraposição a cerca de dez vogais fechadas, na maioria, posteriores. Esse verso é importante porque denota a mudança de atitude do poeta. Essa valorização é feita inclusive no plano sintático, havendo uma quebra da ordem natural do pensamento com a identificação da oração que constitui o 3º verso e a continuação da idéia anterior no 4º verso (o enjambement de ”termina” valoriza a idéia da própria palavra terminando o verso). Essa quebra revela a tensão do narrador. O ritmo dessa estrofe, aliás, é tenso em comparação ao da primeira. A leitura torna-se mais pausada, mais lenta. A imagem do “lago escuro”, “silente de juncais”, se nos apresenta pois como a de um “poço” parado (sem vida) e profundo. A partir do momento em que o poeta se volta para dentro de si, no 3º verso, o tom passa a ser outro. “Porque ides sem mim, não me levais?” sugere um despertar para a realidade da sua dor. A interrogação adquire agora tom mais desesperado; o objeto dessa interrogação é ele mesmo: “porque não ME levais?” e esse ME é uma reiteração da idéia já expressa em “mim”. Esse verso é dividido em duas partes, havendo uma cesura após a palavra “mim”. Ambas as partes têm o mesmo significado, o que muda é a estrutura da frase, acarretando uma nova dimensão para a negação. Não ocorre uma simples repetição do conteúdo sob duas formas estruturais, mas uma mudança de estrutura, ocasionando diferenças de grau na interrogação negativa: a primeira frase nega, mas por exclusão (através do termo “sem”), ao passo que a segunda reforça tal negativa pelo uso da negação absoluta “não”.
Reforçada a interrogação, reforça-se também o objetivo dessa interrogação que, com já dissemos, é o próprio poeta. A cesura é elemento também importante na valorização da interrogação: “porque não me levais?”.
Simultaneamente ao distanciamento, ao afastamento das imagens, temos uma aproximação do “eu”. Depois de constatar sua inutilidade (pela diluição das imagens), apela para a “súplica” que é uma tentativa de agarrar-se a um referente externo, relacionado com o “eu”. No 3º verso do primeiro terceto há uma concentração de sibilantes /s/ e uma ausência total de nasais, sugerindo a interrupção do fluir anterior e o aspeto do deserto. Essa concentração nos dá a impressão de que as imagens são realmente “sucessivas” e se diluem, desaparecendo totalmente e dando lugar à súplica que aparece no último terceto.
Plano da Sintaxe
Consideremos ainda o 1º terceto. O que é o “eu”? O “eu” são os “meus olhos abertos” que nada fixam: recebem a imagem e a devolvem porque os “meus olhos” são o “espelho inútil” cuja reflexão é momentânea (sem poder de fixar as imagens). O 2º verso é aposto, referindo-se aos “meus olhos” do 1º verso, enfatizando a idéia inicial. Esse aposto registra a conscientização de seu ceticismo que culmina com a afirmação de que seus olhos são pagãos. Pagãos porque não acreditam em nada transcendental (estão em estado de não batizados, não preparados para a vida espiritual). O misticismo proposto está no nível do contato direto com a vida em seu aspeto material. A constatação de qualidade pagã de seus olhos presencia a resposta à interrogação que constitui o 1º verso. A resposta é dada pela imagem “aridez de sucessivos desertos”. Essa imagem é altamente valorizada pela insistência de apelo visual.
“Olhos” está triplamente qualificado (“abertos”, “inútil” e “pagãos”). A adjetivação e o aposto não são suficientes para qualificar os olhos, que são parte dele (poeta), já neste terceto, totalmente voltado para si mesmo (“meus olhos” = “eu”). A “aridez de sucessivos desertos” é, não somente os “meus olhos”, mas “eu”, “poeta”. A aridez é sentida também no choque de oclusivas (des/de) tornando desagradável a emissão. Novamente a sugestão de distanciamento das imagens aparece em “sucessivos” e, finalmente, a reticência reforçando a idéia dos “áridos desertos” que se distanciam. O desenvolvimento gradativo da consciência exterior para interior termina no primeiro terceto.
No primeiro verso do segundo terceto, com o início da súplica, temos mais uma mudança, que é a do tempo verbal: de presente do indicativo em todos os empregos anteriores para imperativo (positivo). Esse emprego constante do presente também pode indicar uma impossibilidade da parte do poeta, de reter as imagens, já que elas “vem” e “vão” (“passais”) e ele permanece num dado momento do tempo: o presente. Essa tentativa também fica marcada pela ação das mãos e dos dedos que se flexionam, mas fica destruída, no entanto, no plano da adjetivação, quanto ao aspeto semântico (“flexão” / “casual” – “dedos” / “incertos” – “sombra” / “estranha” – “movimentos” / “vãos”). Trata-se de uma tentativa aleatória: as imagens já se dissiparam e resta apenas a sombra, na súplica do poeta, numa última instância de desvanecimento, pois a sombra é “estranha” (desconhecida, nada representando e tornando-se fugidia). Esse último instante do fluir (nesse caso escapar) é marcado também pela quantidade de nasais e sibilantes cujo significado já tentamos propor. A flexão de suas próprias mãos e, mais especificamente de seus próprios de dos, além de trazer uma intensificação do apelo, forma verdadeira imagem plástica do desejo de reter algo que se esvai. No aspeto gráfico, “flexão casual” ligada a “dedos incertos”; “sombra das minhas mãos” cruzada com “estranha sombra”, reiniciando o último verso; “flexão casual” cruzada com “movimentos vãos”, são elementos que dão essa visão plástica dos movimentos incertos. Já que é impossível fixar algo que tenha (ou dê) ao menos a ilusão de sua existência (representada pela “sombra de suas mãos”), a sombra, então, seria suficiente para lhe proporcionar a ilusão de vida no mundo que o cerca. Elas, as mãos, existem e são parte dele, e ele existe porque sente, mas nada é concreto (ele não sabe até que ponto ele, poeta, ou suas mãos são concretos). Há assim um apelo ao mínimo da imagem: a sombra. Na intensificação do apelo há ao mesmo tempo, uma intensificação do não ter. Afinal, a vida é uma imagem e a sua imagem será a referência de sua vida. A súplica é resignada e a diluição das imagens é total: “eu” e “imagens” integram-se em plano exterior. Ele é a própria imagem (“sombra das minhas mãos”). O “eu” não é nunca explícito; aparece através de possessivos o que denota a fragilidade de sua pessoa: a diluição do “eu”. Esse “eu” diluído representa o máximo de diluição (“a sombra da imagem”, dada pela “flexão casual dos dedos incertos” em “movimentos vãos” é a “sombra das mãos” e é “sombra estranha” donde se pode concluir que as “mãos são estranhas”). Na fragilidade de seu apelo, de suas evocações, isso é tudo que lhe resta.
Passível. Por certo, de várias interpretações, este poema nos chamou a atenção para duas, por algumas razões. Assim tentaremos expô-las.
Tomamos as imagens como o mundo e a retina como o ponto de contato do poeta com o mundo. Num nível de constatação, as imagens estão ligadas à água e , portanto, à vida. Diante desse mundo, o poeta possui duas opções dadas pela imagem da “água cristalina” ou do “lago escuro”. Isso pode dar uma idéia de finito e infinito e também de vida e morte. Essa idéia de morte, liga-se ao “silente” e ao coletivo “juncais” que pode denotar obstrução. Num primeiro nível de consciência o poeta fala em “vago medo”, donde surge o apelo (“porque ides sem mim”). Ele se questiona e a imagem do “espelho”, aposto de “olhos” nos dá a idéia de refletir a vida num processo de interiorização. A resposta, dada pela “aridez de sucessivos desertos” liga-se à ausência de água que de certa forma significa ausência de vida. O apelo do poeta é intenso, mas resignado sugerido pelo uso de “sequer” (pelo menos). A sombra é um resquício da imagem, ou seja, da vida (da relação do poeta com a vida) e as mãos são algo do próprio poeta. A flexão dos dedos é casual e revela uma tentativa infrutífera de agarrar algo. A sombra é estranha e essa estranheza induz o alheamento do poeta, sua incapacidade de se contatar com o mundo e fixa-lo em seu interior. Resta-lhe então a súplica que, dada como vã, leva a um grau extremo de diluição.
Uma outra linha de análise que desenvolvemos baseou-se, principalmente, num levantamento do vocabulário, numa verificação do poema no conjunto da obra e no seu confronto com o poema inicial, “Inscrição”. Chegou-se, assim, a uma visão do poema poder referir-se ao próprio fazer poético. As “imagens” sendo a “reprodução” no espírito de uma sensação, “na ausência do objeto que as produziu”, podem estar representando, entre outras coisas, a parte inicial da obra, e este poema, o último, está voltado para ela. As imagens passam pela retina que é “a parte mais interna do olho”, “instrumento essencial da visão”. O apelo denota o desconhecimento da causa da não fixação dessas imagens. As imagens são como a água que pode significar a “qualidade do talento”. Nesse caso a água (vida) está ligada à existência poética. Essas imagens fluem de duas maneiras entrevistas na imagem da “água cristalina” e do “lago escuro”.
A “água cristalina” está ligada à idéia de fonte de início de criação, de vida de algo que é claro como a água. Ao “lago escuro” está ligada a idéia de espaço fechado, de escuro, de não transparente. O próprio termo “curso” lembra escrita e é um “curso silente de juncais”. O termo “juncal” sugere várias idéias: a de obstrução, a de elemento inerente, (ou ligado) à água, à idéia de fibra e por semelhança gráfica e sonora, a “juncal”, lembra, remotamente, papiro ou papel. O medo do poeta, “vago”, representa um início de consciência e pode referir-se a medo de várias coisas (do silêncio, da inutilidade da produção, da impossibilidade de transmitir o que a retina captou). Na repetição do apelo (“porque ides...”) temos a idéia de que o poeta aceitaria qualquer uma das opções. O apelo reiniciado por “sem vós...”, feito pelo poeta que pergunta a si mesmo, denota uma gradação que possibilita ver uma intercalação maior. A imagem do “espelho” aposto de “olhos” revela uma impotência para reproduzir as sensações (a idéia de rebater dada pelo espelho) ou a incapacidade do signo de fixar a imagem real, sensações do poeta diante do mundo. A resposta dada pela imagem do “deserto” que implica em ausência de água e de vida pode levar também a idéias de solidão e de esterilidade (podendo inclusive possibilitar a imagem do poeta como um “marginal”). Temos em seguida novo apelo para que fique a sombra, que seria um vestígio da criação, ou da tentativa de criar. Enquanto os olhos são o instrumento da captação da realidade exterior, as mãos são o instrumento da fixação da “visão” dessa realidade no papel, ou seja, aquilo que grava o que a mente visualizou. Na idéia de “flexão casual”, tentativa infrutífera de fixar algo, temos possibilidade de ligar “flexão” a “flexão de palavras” e “casual” também pode lembrar “caso” ( declinação). A sombra, por ser estranha, indica o alheamento e, portanto, resta apenas a própria tentativa. A diluição pode ser considerada em dois níveis – o do poeta que não consegue captar a realidade e transmiti-la e o das palavras que podem “significar tudo” ou “não significar nada”. Se não resta a sensação (imagem), nem qualquer tipo de vestígio, mas apenas o tentar que se dilui e se reduz ao próprio apelo, temos uma perda, por parte do poeta, do domínio (“mão) sobre o que ele produziu; uma intensificação do não ter.
Nilza A. Hoehne Rigo, 21/09/2007http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/661555
Bibliografia:
PESSANHA, C. (1969). Clepsidra e Outros Poemas. Introdução por João de Castro Osório. Lisboa: Edições Ática.
      
       
Eduard Ed Gordeev fotografia como pinturas de aquarela impressionista de cidades na chuva melancolia luzes noite
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II
Tema: a fugacidade da vida, a dolorosa consciência de que a realidade para ele não passa de imagens rápidas, passageiras.
O tema apresenta, aqui, um desdobramento. À 1ª. pergunta inquietante, segue-se uma 2ª. carregada de niilismo. A uma atitude ansiosa traduzida nas perguntas, a traduzir a certeza de que tudo passa, segue-se, pois, nos tercetos a afirmação do nadaque é ele e o homem o qual, à semelhança de Tantalo, não consegue prender a vida, que passa, para matar a sede de viver. Nesta 2ª. parte, justifica o poeta esse niilismo, pois os olhos, embora abertos e não cegos, são pagãos, nada fixam, nada pensam, são espelho inútil, aridez de sucessivos desertos, tudo despido e até os seus dedos incertostêm "movimentos vãos"Notem-se, nesta sequência de elementos conotativos de niilismo, os pares abstrato-concreto ou concreto-abstrato (olhos pagãos; aridez de desertos; espelho inútil; dedos incertos, sombra das mãos; movimentos vãos). Da mesma forma que são passageiras as imagens da vida, é fugaz a sombra; mas, apesar de tudo, o poeta agarra-se a ela como a única forma de presença possível na incapacidade de segurar a realidade, que não passa de imagens. E o imperativo fica traduz a ansiedade do poeta perante esse evoluir imperdoável, refugiando-se neste último recurso que, assim, restringe a vontade do todo numa parte.
A mudança não tem tempo; nela não há passado nem futuro, a vida é sempre no presente, que é rápido, e sempre a caminho do fim. Note-se, pois, a escassez de verbos, e, portanto, de orações, principalmente subordinadas. Nos verbos, aos que traduzem movimento como passais (duas vezes), ides levais, contrapõem-se os de estabilidadefixais, termina, domina, fica. Mas estes são anulados por aqueles e, nem sequer terminadomina destroem esta noção de movimento que só acaba com a morte.
São abundantes as imagens simbólicas, significativas, de uma poesia abstrata a traduzir uma atitude de dúvida, ansiedade, desencanto, como já dissemos. Esses símbolos ou são dados diretamente pela metáfora: "os olhos" (espelho inútil = aridez…),morte = fonte, para nunca mais = lago escuro (uma e outra com sentido gradativo crescente) ou indiretamente pela comparação: Imagens/que passais como a água cristalina (a comparação sugestiva do quase invisível, do quase impalpável); ou, até mesmo, pelos sons: o predomínio da sibilante a conotar a ligeireza do tempo; a intensidade do som i gritante nas quadras mais tradutoras dessa ansiedade (11 vezes aparece eie), reduzindo-se nos tercetos à medida que se atenua essa angústia sem remédio, assinalando-se, até, o predomínio do som fechado oral ou nasal, mais cheio e rico de som; ainda sugestivo o emprego do som u fechado: escuro, curso com a sua conotação espacial.
As imagens simbólicas registam-se ainda a nível de localização espácio-temporal que não conta na poesia de Pessanha. Aqui, simbolicamente nunca mais nega o tempo e lago escuro nega o espaço e levam-nos ao pensamento da morte, como vimos já. Note-se a antítese entre lago escuro - morte, o que é eterno, e água cristalina - vida, o que é efémero, o que passa: a água cristalina aponta para a efemeridade da vida que passa sem se dar conta, assim como a água da qual não se vê nem a cor, nem a forma.
Várias notações de lugar: pela retina, por uma fonte, para o lago onde, que são realçadas pela cor cristalina e escuro e pelo som silente que está contrariado pela presença de juncais (pavor-medo-morte?)
Há uma curiosa ligação entre a ideia de fugacidade das imagens sugeridas nas quadras e a vacuidade dos seus olhos que não podem reter essas imagens.
Atente-se também no valor da pontuação: três frases interrogativasa lembrar-nos Antero, o inquiridor, também angustiado; duas exclamativas e duas reticentes a conotarem a inquietação, a ansiedade, o espanto perante o inatingível, o impossível.
A poesia serve para caracterizar o comportamento de Pessanha quanto à noção de espaço. Porque nos oferece uma visão subjetiva, porque fala de imagens, aponta para o colorido dominante da sua poética carregada de indefinições, ideias vagas, fluidas, imprecisas tal como o seu pensamento que, por isso, rejeita a descrição. É uma técnica tipicamente impressionista pelo significado dos sons, pelo indefinido dos traços, pela leveza das imagens captadas subtilmente pelos sentidos. Aliás, em Pessanha, o simbolismo afirma-se com frequência, como tivemos ocasião de observar.
      
       
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A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO POÉTICO E A NOÇÃO DE TEMPO NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
O descompasso entre a perceção temporal do indivíduo e o tempo do mundo é experimentado apenas pelo sujeito poético: ainda que a industrialização, a invenção do relógio e a associação dele ao tempo de produção tenham acelerado a vida na modernidade, tudo está no seu curso normal, é o eu que tem a visão “distorcida” da realidade e não se adapta a esse novo modo de se relacionar com o mundo, com as coisas, com o processo de execução de tarefa e com o tempo despendido para isso. O tempo psicológico do eu difere-se do tempo cronológico; segundo a filosofia Kantiana, esse conflito ocorre porque o tempo é abstrato e sempre subjetivado, de modo que existe apenas dentro do próprio sujeito que, por sua vez, transfere seu próprio tempo para os objetos exteriores:
O tempo não é um conceito empírico, derivado de qualquer experiência (...) o tempo não passa, pois de uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (a qual é sempre sensível, isto é, implica que nos somos afetados pelos objetos), e nada é, em si mesmo fora do sujeito” (KANT, Emmanuel, Crítica da Razão Pura, p. 109, citado por Encilopédia Einaud, p. 44)
Assim, tudo ao redor do Eu está em perene movimento enquanto ele adota postura estática, permanecendo à distância, à margem, apenas contemplando o tempo passar. Esse descompasso é expresso nesta estância de outro poema de Pessanha, no qual o sujeito poético é alguém desencantado e entediado porque o tempo passa e não o leva consigo:
Imagens que passaes pela retina 
Dos meus olhos, porque não vos fixaes? Que passaes como água cristalina Por uma fonte para nunca mais!... 
Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncaes, E o vago medo angustioso domina, - Porque ides sem mim, não me levaes?

Nesses versos, estamos diante de um sujeito que contempla as imagens à distância, mas elas não se fixam na sua mente, apenas passam pela retina, visto que seus olhos são “espelhos inúteis”. Dessa maneira, o presente resume-se ao drama da captação do inefável, a apreensão da fugacidade das coisas. Portanto, a atitude de desistência e passividade do Eu é fruto desse pessimismo que o faz “encarar” a vida absolutamente como sofrimento. Nessa perspetiva, o presente, o passado e o futuro se igualam, pois as limitações de tempo desconfiguram-se na mente do sujeito, já que a sensação de sofrimento e desajuste no mundo é constante e independente do tempo cronológico. Por isso, o sujeito poético sente seu tempo, interiorizado e subjetivado, passar mais lento se comparado ao tempo exterior, cronológico e objetivado; por conseguinte, deseja ser levado juntamente com as imagens que passam diante dos seus olhos. Devido à impossibilidade de aceleração de tal processo, ele interroga as próprias imagens: “Porque ides sem mim, não me levais?”.
Melissa Andrea Marietti. São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008, pp. 89-90
      
       
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O “EU” REVELADO E AS MÁSCARAS DO “EU”
Vejamos outro poema em que se põe a problemática do sujeito na sua relação com as imagens do mundo: «Imagens que passais pela retina».
Tanto Paulo Franchetti (FRANCHETTI: 2001, pp. 59-60) como Esther de Lemos (LEMOS. 1981. pp. 159-161) comentam a estranheza que causa a construção desse poema. Começando pelo enjambement dos dois primeiros versos, que formam, na verdade, um verso de catorze sílabas poéticas e um verso de seis — recurso também empregado nos dois primeiros versos da segunda quadra.
Ainda é notada a dificuldade do oitavo verso, por se tratar de um verso que pode ser lido como de 9 sílabas. O verso que abre os tercetos tem 11 sílabas poéticas e, muitas vezes, a acentuação, como no 1º verso do último terceto (que chocam as tónicas “quer” e “som”), é bastante incomum: “Mas” — ainda segundo Esther de Lemos — “os tercetos deste soneto é que oferecem o principal exemplo da instabilidade, da aparente desordem rítmica que tão bem serve ao nervosismo do poema” (Ibidem, p. 160).
A complexidade estrutural do soneto brota de seu conteúdo complexo: o que de facto o sujeito poético não consegue reter, o real, ou as imagens do real? A conjunção alternativa “ou”, que abre a segunda quadra, serve para opor “uma fonte para nunca mais” a “lago escuro”, ou serve como um elemento que possibilite ao sujeito poético capturar as imagens e, ao mesmo tempo, ser levado por elas? Ou não há nem oposição, nem sincronia e o conectivo só aparentemente causa essa estranheza?
A leitura que se fará desse poema, concorda com as leituras de Paulo Franchetti e de João Camilo (CAMILO, 1984, p.30). O sujeito não consegue reter o real, que é feito de imagens, e as imagens das imagens, que podem ser as recordações, as memórias ou qualquer coisa que supostamente detém o real sob outra forma. Essas imagens se tomam o “objeto de desejo” do sujeito poético que, ora quer que elas se fixem, ora quer que elas o arrastem. A mera estagnação do sujeito diante do trânsito do real torna o ato de ver e de estar no mundo uma completa inutilidade: “Sem vós o que são meus olhos abertos? — O espelho inútil, meus olhos pagãos!”.
Daí o sujeito almejar ser levado para onde “deságua” essa fonte: “para o lago escuro onde termina / vosso curso”. O término do curso representa, também, o fim do desejo do sujeito poético o que, por sua vez, remete ao fim do sofrimento e ao fim da vida — fazendo eco à ideia de Schopenhauer de que o desejo é a fonte da dor.
Paulo Franchetti, na sua análise desse poema, afirma:
É por isso que é possível, no decorrer do poema, que o sujeito lamente cormo índice de vacuidade a pura capacidade reflexiva dos olhos que já não produzem ativamente as imagens. Desprovidos do poder de interagir, de ajuntar à sensação algo próprio, passam a ser espelhos inúteis. Já não refletem, não acrescentam nada às imagens, não geram a vida anímica a partir dos estímulos exteriores, e por isso se tomam agora eles mesmos, como todo o mundo circundante, que já nada recebe deles, áridos desertos (FRANCHETTI: 2001, p. 68)
Na última estrofe, o que fica são os movimentos rápidos das mãos, isto é, o sujeitopoético se sente tão próximo de um aniquilamento total que o próprio corpo deixa de ser percebido como realidade concreta. Dai a caracterização do movimento das mãos e, por conseguinte, do deslocamento do “eu” no espaço como: “‑Estranha sombra em movimentos vãos”.
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 
Universidade de São Paulo, 2011. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 70-71.
      
       
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O SÉCULO XIX: VISÃO SUBJETIVA E PÓS-IMAGEM
Em Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, Henri Bergson propõe uma conceção radical da matéria, ele a concebe como um “conjunto de imagens”. Esse gesto, cujo arraigamento no século XIX é bastante intenso, proporciona uma materialização da imagem que, na metafísica socrático-platônica, bem como em certa vertente do pensamento pós-moderno (cf. Baudrillard, 1981), foi recorrentemente desrealizada sob a alcunha de simulacro, como algo desprovido de ser. Pessanha não chega a se posicionar com respeito ao que sua conceção poética de imagem significa, entretanto, intuímos que o poeta pressente a temporalidade do mundo, e o próprio mundo, em um sentido aproximável ao bergsoniano.
Bergson, nesta mesma obra, postula o corpo humano também como uma imagem, mas como uma imagem privilegiada, na medida em que é um centro de ação. Portanto, essa imagem, que é meu corpo e precisa agir, imobiliza, em virtude de sua necessidade de ação, o fluxo incessante de imagens que é o mundo. A estabilidade do mundo é, portanto, segunda em relação a um movimento originário e incessante. A pergunta que inicia este, que é um dos mais famosos (e, sem dúvida, o mais filosófico) soneto de Pessanha, parece fazer todo o sentido se supusermos que o sujeito poético da Clepsydra é um sujeito cuja alma é “lânguida e inerme”, como a abertura do livro prenuncia. Novamente, um postulado da obra de Bergson pode nos auxiliar: desta vez na relação de modulação que estabele entre o sujeito agente e o sujeito sonhador. O sujeito agente sendo aquele que opera no limite da imobilização total do mundo para a ação e o sonhador aquele que permite a atualização dinâmica de suas memórias. O sujeito poético de Pessanha parece suspender esses dois pólos e operar segundo a conceção bergsoniana de intuição, através da qual se acessa o mundo como tal, enquanto puro fluir e mudança incessante, como um passar de “água crystalina/Por uma fonte para nunca mais!...”.
A segunda quadra deste soneto refere-se ao ressentimento desencadeado pelo passar do tempo, pela dificuldade, derivada das metafísicas espacializantes (os paradoxos de Zenão são os exemplos maiores disso), de habitar a duração, habitação esta que demandaria a coincidência com o tempo presente e o esquecimento de passado e futuro. O lago escuro onde termina o rio do tempo (a morte) precisa ser esquecido, a fim de que se possa nadar em paz, sem o “vago medo angustioso”, nas águas do tempo. E a pergunta ao fim da quadra “- Porque ides sem mim, não me levais” só pode ser feita por um sujeito poético que não flutua nas águas do rio do tempo, mas que tenta nadar contra essa correnteza.
Os dois tercetos finais prosseguem na ambivalência entre o caráter inexorável e fluido das imagens do mundo e um desejo de fixação e segurança. O sujeito poético reconhece e vincula sua própria vida ao rio do tempo “Sem vós o que são meus olhos abertos?”, mas deriva disso a inutilidade da vida “- O espelho inútil, meus olhos pagãos!”. Por fim, clama para que ao menos as sombras de sua mão permaneçam, “Fica sequer, sombra das minhas mãos”, mas mesmo os movimentos destas sombras lhe parecem vãos. Deste modo, o soneto parece alcançar o caráter ambíguo da própria escrita literária e se situar entre a morte e a revelação. Apresentando o movimento incessante como morte progressiva e revelando a necessidade do estático (por oposição às imagens), procedimentos filiados a uma tradição metafísica imobilista, o sujeito poético “mata” tal perspetiva, e o poema revela, afinal, que a fixação é a morte do movimento que é a própria vida, a imagem-mundo.
Forjada em um contexto no qual a dignidade ontológica do movimento, das cores e dos sons começa a ser filosoficamente restituída - processo que tem nas novas tecnologias de produção e reprodução de sons e imagens um elemento catalisador, como esperamos haver deixado claro em nossa síntese das teses de Jonathan Crary, a poética de Pessanha configura-se como um efeito e, ao mesmo tempo, como um instrumento na complexa rede de configuração das sensibilidades modernas. Entretanto, não tendo sido apenas um seguidor de tendências, Pessanha parece apresentar, em gérmen, um sujeito poético fragmentado e opaco em um grau que sua época estranhou e negligenciou. Tal sujeito que os pós-modernos pleitearam como a grande novidade da segunda metade do século passado, pode ser revisto e, senão negado enquanto algo novo, ao menos nuançado à luz de nossos pais modernos – Pessanha entre eles –, cuja herança insistimos em negar.
in Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual. 
Orgs. Monteiro, R. H. e Rocha, C., Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012, pp. 162-167.
      
       
      
 

     
RECORTES GROTESCOS NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA: CORPO EXAGERADO, LASCIVO, QUIMÉRICO E O NÃO-CORPO
O poema que sempre foi indicado pelo primeiro verso é a pedra de toque da poética de Pessanha. Todo estudo sobre a obra do poeta tem uma análise de Imagens que passais pela retina..., e no nosso caso não é diferente até pela opinião que temos a respeito do texto no que tange à sua importância e ao aspeto grotesco inerente a ele. A sonoridade das vogais do poema tem uma forte tendência a privilegiar as vogais fechadas. Quando aparece uma intensa vogal aberta, logo depois ela é suplantada por sons vogais e consoantes graves, com uma conotação de escuridão que permeia todo o poema à exceção dos versos que possuem um travessão inicial. Estes privilegiam uma sonoridade mais clara, ainda que seu conteúdo seja também sobre a precariedade da existência.
Os três versos que possuem travessões: “‑Porque ides sem mim, não me levaes?”, “‑ O espelho inútil, meus olhos pagãos!” e “— Estranha sombra em movimentos vãos.” referem-se todos às imagens que passam. Aliás, o sujeito lírico tem uma característica comum a vários poemas analisados aqui: ele é um voyeur. É como se o poema possuisse dois ritmos sonoros: o primeiro, pertencente ao eu lírico; e o segundo, próprio do mundo, demonstra o descompasso entre um e outro.
Contraditório um sujeito voyeur que se submete às imagens que passam, sem, no entanto, vê-las. Ele passa pelo mundo sem ver. Como o mesmo diz, “porque não vos fixaes?” O passar das imagens tem como elemento de comparação a água. Esta é ambígua — cristalina e fosca. É através da comparação com a água, seja ela cristalina, seja um lago escuro e pantanoso, que se gera um leque de possibilidades de interpretação do poema. Simbolicamente, a água talvez seja o elemento com o maior número de possibilidades de interpretação. A análise de Chevalier é reveladora:
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. […] As águas, massa indiferenciada, representando a infinitude dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retomar às origens, carregar-se, de novo, num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e regenerescência.(CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Op. Cit. p. 15)
Ainda que a água seja considerada um símbolo primordial, toda representação é ambivalente. No período finissecular, é comum utilizar a imagem da água para estabelecer um vinculo com o inconsciente e com o estado fetal, origem da vida. No poema, a pureza da água cristalina contrasta com a escuridão do lago. Metonimicamente, a escuridão do lago é também da água. Com isso, é interessante notar o aposto construído pelo poeta. A sinestesia se faz presente: coadunando-se à escuridão do lago, o silêncio dos juncais. A escuridão, tal qual a simbologia da água para os decadentes, é um mergulho nas profundezas do inconsciente: o silêncio sugere a recetividade de algo novo, o aprendizado.
Voltando à primeira estrofe, o último verso remete a uma atmosfera fantástica no universo da linguagem, pois passar para “uma fonte para nunca mais” é substantivar algo absolutamente indefinível. Esse elemento estranho, que antecede as imagens surrealistas, causa espanto e admiração. Assim sendo, o dito acima sobre a pureza da água se desconstrói, ou se reconstrói com um sentido absolutamente inusitado para a expressão, mesmo no universo decadente-simbolista. Se o poema carece de luminosidade, a água cristalina, que possibilita essa luz em um único momento do poema, liquefaz-se não na escuridão, mas na impossibilidade de sua “cristalinidade”, evidente no substantivo que nos parece composto “nunca mais”.
Paulo Franchetti, a partir dos binômios imagens:olhos e água:fonte, tem a seguinte perspetiva de análise:
[…] as imagens passam pela retina, sucedem-se nela e não deixam traços ao serem substituídas pelas novas sensações visuais. Quando lemos os dois primeiros versos, é esse o sentido mais imediato, mais facilmente atualizado.
E apenas quando lemos o terceiro e o quarto versos que se introduz o estranhamento, pois,uma vez dada a comparação com a fonte, lemos de lidar com um movimento que não é o da sucessão apenas, mas o da passagem através. De facto, o que faz uma fonte é o movimento da água que flui através dela. Em si mesma, ela é apenas um lugar de passagem e manifestação de algo que nela aflora. Assim, se os olhos são como uma fonte é porque as imagens os atravessam. E da mesma forma que a água depois de passar pela fonte desenvolve o seu curso, também as imagens, depois de atravessarem os olhos, continuam o seu trajeto até desembocarem no lago morto e silencioso. (FRANCHETTI: 2001, p. 62)
Ainda que a perspetiva de análise difira. Franchetti identifica imagens que atravessam os olhos: e nossa leitura caracteriza o eu poemático como quem recebe imagens, tal um voyeur, mas nada vê, é a alternativa inicial da segunda estrofe que indetermina todo o poema:
A segunda quadra abre com uma alternativa que tem sido interpretada de maneiras diversas. À leitura corrente da disjuntiva, opõem-se alguns críticos, afirmando que não há de facto oposição. Cremos entretanto, que a alternativa existe, mas não diz respeito ao destino das imagens ou das sensações, e sim às duas possibilidades de o sujeito estar em sincronia, em interação com o objeto do desejo, que no caso são as imagens. Almejando essa interação, o eu que nos fala nesse poema desejaria fixar aquilo que flui ou deslocar-se com ele. Por se tratar de duas impossibilidades, por certo que acabam em equivalência, mas as duas soluções hipotéticas permanecem distintas: por um lado, cristalizar o real, interromper o movimento e assim apropriar-se dele; por outro, fundir-se no real, integrar a sua mobilidade, dissolver a consciência pela identificação com o fluxo indiferenciado que termina no lago silencioso e escuro onde já as próprias imagens deixam de existir enquanto objeto de contemplação. (FRANCHETTI: 2001, p. 62)
Notamos que as imagens passam, não se acabam. Passar para “uma fonte para nunca mais” é, também, transferir-se do campo do discurso, do poema em si, para o irrealizável. Essa perda das imagens se vincula a outra, “Ou para o lago escuro onde termina vosso curso”, não é um fim em si, representação do limite, mas marca do niilismo que permeia toda sua poética e da, como indica Franchetti, sua descrença na possibilidade de transcendência.
Assim, o silêncio é mais do que expressividade. As sensações diversas acabam em um silencioso ressoar de juncais. Desta maneira, esse mutismo sugere múltiplas introspeções, mas a principal é a que marca a vacuidade do estágio posterior à visualização das imagens. Do mesmo modo, a escuridão do lago, submerge o eu, juntamente com a fonte, em um falso paradoxo: ou as imagens vão para o nunca mais, ou têm um fim na escuridao. A visualização das imagens não tem um sentido, afinal, tal qual ocorre com o eu lírico e com o Ser, centro maior de especulação do poeta, também elas se direcionam ao nada. É como se o silêncio e a escuridão das imagens e da água desvelassem um paradoxo existencial: o Ser parece ser um Não-Ser.
Uma estrutura simples da linguagem grotesca adotada pelo poeta é adjetivo + substantivo + adjetivo, sendo que os dois qualilicadores se referem ao mesmo ser: “vago medo angustioso”. Se há uma clara descrença elo eu poemático, qual o motivo do medo angustioso’? Querer crer em uma imagem posterior e não poder? Querer crer em um Ser posterior e não poder? Pode até ser uma marca disso, mas a pulverização do Ser aniquila-o não no possível futuro, mas no agora. Franchetti discorre que ao não ter água na fonte, esta deixa de ser e o sujeito não existe quando desprovido de suas sensações.
No entanto, parece-nos que a condição do sujeito é mais profunda. Aniquilado, com ou sem perceção, ele inexiste. Parece haver em Pessanha uma múltipla variação de formas para desconsirução do ser. Neste caso, as sensações são apenas um motivo para que o corpo se torne uma impossibilidade de existência. Sua materialidade, se é que existe, é uma ilusão de ótica, e a impossibilidade de transcendência caracteriza o ser como grotesco. Ser e não-ser não é mais uma questão, mas condição de um corpo nada fantasmagórico e absolutamente impossível e inexistente.
O verso que conclui a segunda estrofe é o primeiro a possuir um travessão. Além disso, ele gera uma inflexão do tema para o eu poemático. A conversão mostra uma mescla entre niilismo e inércia. O Mundo das representações schopenhaueriano é muito latente nas imagens que não se consumam. As representações são “espelhos da vontade”. As sensações são espelhos da singularidade e da própria existência do indivíduo. No poema, há uma sugestão de que tudo é ilusão, o que gera a melancolia moderna que Eduardo Lourenço identifica muito bem.
[…] A perturbação de Pascal perante o famoso ‘silêncio dos espaços infinitos’ é menor que a dos poetas que sentiram primeiro que ninguém o tempo da melancolia quando se deram conta de que já não eram capazes de ver a hora do Homem no relógio de Deus. [...]
A melancolia moderna, a de Baudelaire, tal como a dor ou a tristeza, não é já a alegoria medieval, representação ampliada e sintética das dores e tristezas reais, mas um símbolo. Perdida a referência do transcendente, os signos que evocam essa perda não podem ser senão símbolos, mesmo quando são objeto de uma alegoria de grau superlativo, como é justamente o caso de Baudclaire. (LOURENÇO, Eduardo,Mitologia da saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 21)
O escoamento do tempo e do espaço é a forma do eu lírico se situar no mundo. A assimilação se dá através da perda da identidade. Além dos olhos, as mãos representam metonimicamente a totalidade do indivíduo, porém, este, tal qual as representações de imagens advindas da vontade, não existe a ele mesmo, é apenas uma imagem reflexa. Não se pode dizer que o eu é multifacetado, como no caso dos modernistas portugueses, mas ele se reconhece no outro que, paradoxalmente, não existe.
O grotesco se manifesta no vazio, na nulidade, na ausência do Ser. Ainda assim, o eu poemático-existencial, representação da vontade, e por isso mesmo niilista e melancólico, torna o eu irreconhecível a si mesmo e torna o outro parte do eu: “Sem vós o que são os meus olhos abertos?” Adentrando a terceira estrofe, temos a resposta, na segunda interferência feita pelo travessão: “O espelho inútil, meus olhos pagãos!” Então, tudo gravita em torno do eu, absolutamente irreconhecível em si. Paulo Franchetti afirma algo similar:
O movimento possível […] na poesia de maturidade de Camilo Pessanha, é apenas este: fixar a própria perceção, ou a impossibilidade de perceção. Em ambos os casos, o que determina o olhar mclancólico é a reflexividade, e o que o caracteriza é uma operação brutal, de esvaziamento e fragmentação dos objetos da contemplação: tudo o que o sujeito consegue perceber e a si mesmo, tudo o que consegue fazer é duplicar, exteriorizar a melancolia; reencontrar, nos vários fragmentos que ludicamente reordena, o seu próprio olhar. (FRANCHETTI: 2001, p. 73)
O estudioso identifica que o eu lírico tenta fixar sua impossibilidade de perceção através do esvaziamento e da fragmentação. Além disso, percebe uma reordenação do próprio olhar. Todavia, para nós, o Ser e toda a existência são ilusórias para os vários eus que penetram a poesia de Pessanha. O grotesco em sua obra se constrói novidadeiro — na inexistência artística. Apesar de Bakhtin reconhecer o grotesco apenas na realidade empírica e Kayser admiti-lo na metafísica, o que ocorre aqui é a aniquilação física de um ser pensado na metafísica.
O facto de estar mais próximo do pensamento ligado ao fantástico não significa ue seus poemas estranhos sejam fantásticos. Por exemplo, ainda na terceira estrofe, temos um símile dos olhos como “espelho inútil”. Na simbologia, o espelho é o que desvela a alma, no entanto, o adjetivo “inútil” entrega mais uma desconstrução estranha do símbolo. Não há o que ser revelado. O niilismo não é apenas uma força latente na poesia de Pessanha, nem é carregada apenas pela perspetiva nictzschcana. Nada na constituição desse universo, e de quaisquer outros, é permanente.
Parece-nos que o poema é central na poética de Pessanha justamente por deixar evidente que sua poesia vê o estado liquefeito e transitório de todas as coisas. O verso que resume essa tendência de sua poética é exatamente o que encerra a terceira estrofe: o mundo/tudo é uma “aridez de sucessivos desertos...”, inclusive o eu lírico “reflexivo” de Franchetti. A água, imagem insistente do início do poema não aparece mais na segunda parte, mas a aridez, sua antinomia, aponta para uma precariedade do Ser, tal qual a água o faz anteriormente.
Então, não há saída. O que é vida, nascedouro, também é morte, finitude. O grotesco fica ligado a um aspeto existencial e a última estrofe do poema demonstra através da cessão de movimentos que nada se conserva. O sujeito poemático parece se olhar por uma outra perspetiva, externa, e não se interessa por nada que vê. Ainda que perceba a existência de algo, parece-lhe aparência. O Ser é nada. Revogar a si a existência gera um estranhamento de uma poética ímpar, mas após as análises de Franchetti, não podemos deixar de citar a hipótese de um eu poemático absolutamente opiómano.
A partir da inflexão que o texto faz para o próprio eu lírico, o corpo se torna intangível ao próprio ser que o controla. A absoluta ausência de controle dos sentidos fica evidente em versos que transferem o controle para outrem. seja ele água, deserto ou o próprio corpo. Com a divisão estabelecida pelo eu poemático, no verso final da segunda estrofe, todos os versos seguintes culminam no não reconhecimento daquilo que lhe é de posse — o próprio corpo: “Fica sequer, sombra das minhas mãos,/ Flexão casual de meus dedos incertos,/ ‑ Estranha sombra em movimentos vãos.” O corpo não tem domínio sobre si, o que caracteriza uma vertente grotesca que o próprio W. Kayser identifica, com uma pequena variante: o não reconhecimento do próprio eu é, nessa perpectiva de leitura do poema, um descontrole. No entanto, esse descontrole semelha-se a uma inexistência niilista e grotesca, apenas Representação.
      
       

      
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Yuko Nagayama, Musetouch
   
        
UMA POÉTICA DO SIGNO, DA IMAGEM E DA SUGESTÃO
Um dos temas recorrentes nos versos da Clepsydra é a constatação angustiante da irreversibilidade do tempo. Uma inquietude emergida da apreensão dessa liquidez em que se insere a existência humana e que na obra de nosso poeta é, também, expressa por toda uma imagética sugerida pela metáfora do fluir das águas. A própria Clepsydra, que dá nome ao livro de Pessanha, é um relógio de água usado pelos antigos para medir o tempo. Assim, como a areia de uma ampulheta, a água que vai passando é o tempo que vai se esvaindo. Tomemos, como exemplo, o seguinte poema, que não só se estende nesse tema, como também confirma essa “fonte contínua de exaltação estética” indicada por Fernando Pessoa: “Imagens que passaes pela retina”.
Esse soneto, um identificador da obra de Pessanha, constrói-se dentro de toda uma observância estética privilegiando versos decassílabos ricamente rimados e ritmados. Tal cuidado formal parece fazer-se de berço para abrigar as imagens sugeridas nos signos que o constroem. A própria palavra “imagens” inicia o poema e, assim, de uma forma quase que metalinguística, teríamos imagens no texto sugerindo essas “imagens”. Ainda, nesse primeiro verso, chama-nos a atenção a palavra “retina” que parece suscitar um paradoxo pelo seu significado. Ela deveria “reter”, mas a pergunta que o sujeito faz no segundo verso, mostra o contrário: “porque não vos fixaes?”. Tais “imagens” que a “retina” não absorve são comparadas pelo sujeito, no terceiro e no quarto verso, à “água cristalina” que passa “para nunca mais”.
Essa transitoriedade que se faz presente na imagem da água persiste no segundo quarteto. Ela alude agora à outra água para onde o “curso” da “fonte” termina, a do “lago escuro”. O sujeito, então, expressa no terceiro verso a sua sensação diante desse “lago escuro”, desse desconhecido: “o vago medo angustioso domina”.
No primeiro terceto, percebe-se na expressão “successivos desertos” não só a antítese da água corrente, mas a sugestão da imagem do vazio, do nada que se fixa. Essa ausência intensificar-se-ia na pergunta que o sujeito faz às imagens que não são retidas: “sem vós o que são os meus olhos abertos?”. O último terceto confirma, então, essa fugacidade da vida, onde nada persiste, por meio da imagem do nada agora sugerida pela afirmação do sujeito: “fica sequer, sombra das minhas mãos”.
Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da 
Universidade de São Paulo, 2013, pp. 112-114.
    
            
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/02/imagens.que.passais.pela.retina-.aspx]

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

FONÓGRAFO (Camilo Pessanha)


London in the 1920's-street gramophone player
                         

         
        
FONÓGRAFO

Vai declamando um cómico defunto. 
Uma plateia ri, perdidamente, 
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente 
A cripta e a pó — do anacrónico assunto.

Muda o registo, eis uma barcarola: 
Lírios, lírios, águas do rio, a lua... 
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua 
Sobre um paul — extática corola.

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro — o cheiro de junquilhos,
Vívido e agro! — tocando a alvorada...

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas 
Quebrou-se agora orvalhada e velada. 
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!
Camilo Pessanha



Nota bibliográfica coligida por 
J.G. Elzenga:
Autógrafo original de 1916 do espólio de Carlos Amaro, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa. Publicações anteriores: A Tribuna de Lisboa (15 de Outubro de 1899), com o título "Phonographo" e datado de "Macau, 1896"; Centauro(Dezembro de 1916): com o título "O Phonographo", sem data.         
          
*
          
O SUBJETIVO NO DOMÍNIO DA PERCEÇÃO
Note que o real da música no fonógrafo desperta, estimula a construção de outro real distinto do eu. Repare, também, no ritmo intersectado, criando ambiguidades, sinestesias. Há uma imitação da marcha militar, compassada, automatizada.
É a partir do modo como os sons se inscrevem no eu que este os transcreve, produzindo o texto.
1. Saliente a origem de cada um dos conjuntos de registos sonoros captados pelo eu.
2. Em cada um desses conjuntos, as sensações auditivas ligam-se a outras sensações. Exemplifique.
3. Que figura de estilo melhor exprime a associação aludida em 2.? Dê exemplos.
4. Associe o percurso da agulha no disco ao percurso de escrita.
(Ser em Português 12 A. Coord. A. Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999, p. 192)
          
      
Music: Martin Munkacsi, Germany, 1930
Martin Munkacsi - Dancing children, Germany, 1930s
          
          
ASPETOS ESTILÍSTICOS DA OBRA DE PESSANHA: A MUSICALIDADE
O soneto «Fonógrafo» apresenta uma repartição rigorosa da matéria, que é distribuída estrofe por estrofe como as faixas de gravação que se sucedem nos sulcos de um disco.
Pessanha faz reviver a audição de um disco, as solicitações sucessivas que, através do ouvido, estimulam a fantasia e a memória.
A cena é um pouco lúgubre e tenebrosa; um velho teatro cheio de pó, onde um cómico, já morto, continua a fazer rir com as suas piadas gastas um público de fantasmas: dominam aqui os fonemas nasais «a dar impressão de arrastar, de lentidão».
Com a mudança do registo começa a música com o seu poder mágico de evocação da realidade, no ritmo de uma barcarola e sobre as ondas da música surge uma paisagem idílica, com a reflexão da lua e os lírios nas águas de um rio; e o sonho do poeta flutua e torna-se, em êxtase, diante a mulher amada; mas é, todavia, sempre uma flor de paul.
Na última parte o registo muda outra vez com o som de um clarim agudo e penetrante, com o perfume dos junquilhos. Depois o silêncio, em que permanece o perfume das violetas, para evocar uma manhã de Primavera, a nostalgia do passado e da mocidade.
O que fica no final do disco são os timbres vocálicos e os sons que se apagam melancolicamente.
           
J.G. Elzenga, Universidade de Utrecht, 7 de outubro de 2009. 
Trabalho final do estudo mestrado na Literatura e Cultura da Europa Ocidental.
          
         
          
ANÁLISE LITERÁRIA
O soneto na era da inspiração técnica. Talvez surpreenda - pelo menos não conheço testemunho contrário - que um poeta como Pessanha tivesse realçado a máquina que abriu o caminho das invenções mediáticas do século XX, justamente a inaugural, aquela que arruinou irreversivelmente o monopólio da escrita. Talvez surpreenda menos que tivesse percebido nela possibilidades espectrais. Sabe-se que se trata da mesma coisa: e o «cómico defunto», arrastando na declamação o odor a cripta e a pó, ilustra desde logo a sobrevivência da voz dos mortos (uma das capacidades que, segundo Edison, comprovavam o enorme interesse da sua invenção), sobrevivência da voz além da morte, ou mesmo sobrevivência causando a morte. Por isso, ou o cómico é defunto ou o defunto se torna cómico: qualquer deles releva aqui da exclusão, absoluta e condição do fonógrafo, de contacto físico entre cómico e plateia. Acresce que esta possibilidade espectral se alarga à plateia, e até a define: se se ri perdidamente na presença do velho jarreta, quando captada ao vivo, perde-se para dela ficar o riso, a ponto de o riso da plateia que o fonógrafo reproduz já não se poder distinguir do riso da plateia que o fonógrafo produz. A plateia ri perdidamente diante do velho jarreta ou diante do fonógrafo?
É a primeira indistinção, que define a primeira quadra. O soneto na era da desinspiração técnica: parte da escuta, de sons, aliás vozes, acolhe as vozes, é até gerado por elas - mas não as transmite. Se na origem está o fonógrafo, reproduzindo sons - e decerto está («O fonógrafo gera o poema», escreve Gustavo Rubim no ensaio incontornável sobre este soneto de Pessanha, e que aqui sigo de perto) -, nenhuma cadeia nele se gera incluindo o soneto, o qual sobrevive numa onda heterogénea à do fonógrafo. O soneto interrompe a cadeia, num registo impessoal, descrevendo o som que dimana do aparelho, como que sem sujeito e como que ao abrigo dos efeitos do fonógrafo. Tudo ali provém do passado - cómico, defunto, jarreta, cripta, pó -, tudo se produz e reproduz anacrónico, mas no presente e na duração do presente: enquanto o bom jarreta vai declamando, há um odor no ambiente. A passagem para o plano olfático reforça porém o efeito espectral. Literal ou figurado, presente na atualidade da escuta ou armazenado na gravação, o odor desprende-se do fonógrafo ou do ambiente em que a plateia escuta o fonógrafo? A pergunta é necessária, por ser também irrespondível: a primeira quadra procede como se não houvesse diferença, como se a plateia se risse perdidamente como se, em qualquer caso, estivesse sempre em presença do cómico defunto. Ora este «como se», enquanto atualiza o defunto, espectraliza a plateia - perdidamente: a inscrição do soneto mima o funcionamento do fonógrafo. Afinal, o soneto interrompe a cadeia do mesmo modo que o fonógrafo interrompe qualquer cadeia unindo na mesma proximidade e na mesma atualidade emissor e recetor. Por outras palavras, o que sempre se transmite, o que persiste transmitindo-se é a própria possibilidade espectral.
Entretanto, muda o registo - o do fonógrafo, e o do soneto com ele. Se a primeira quadra pressupõe uma espécie de não-sujeito, deslocando-se afora da plateia, observando-a e descrevendo-a, da segunda em diante o não-sujeito define-se antes por se dissolver nela, ou até por dissolver em si a plateia, que desaparece. A primeira mudança de registo demarca uma fronteira na linearidade do soneto: a continuidade do fonógrafo provoca uma descontinuidade da escuta. Dir-se-ia que a mudança de registo nos leva da descrição do fonógrafo à experimentação dos seus efeitos. Passagem de uma escuta que não retém senão o odor a cripta e pó a uma escuta que evoca e transporta? Da palavra declamada à música? É possível. Em qualquer caso, tal passagem sustenta-se por inteiro na «poética interativa» (Gustavo Rubim) que quase prescinde de sujeito, ou rigorosamente o coloca fora de si mesmo e em direção a algo diverso de si mesmo. Outra vez o soneto na era da inspiração técnica. O movimento que, sem qualquer laço de conexão lógico-simbólica, sucessivamente transporta para fora da cripta, para outros locais e outros odores - rios e águas de rios, lírios, junquilhos -, e por efeito da barcarola, gorjeios e estribilhos, faz-se na mesma onda em que a plateia ri perdidamente: espécie de entusiasmo, com o fonógrafo no lugar do rapsodo, um rapsodo mecânico e por isso mesmo a modalidade ideal de rapsodo.
O soneto é o registo do trabalho do fonógrafo, dos efeitos que produz e dos efeitos que subsistem quando cessa. Fixa-os, guarda-os - inscreve-os em testemunho. Mas não os transmite por sua vez: a descrição da passagem da escuta ao olfato não é passagem da escuta ao olfato. A descrição do fonógrafo é ainda a interrupção do fonógrafo. E é também a interrupção do sujeito que ouve e descreve, incapaz afinal de se constituir sujeito de coisa nenhuma: apenas lugar de passagem, dessa passagem que o soneto fixa e guarda. Desapropriado da experiência da escuta do fonógrafo, no soneto esse sujeito pressuposto não chega a deixar mais do que um mero «meu», ali perdido - perdidamente. O que sempre se transmite, o que persiste transmitindo-se é a própria possibilidade espectral.
Abel Barros Baptista, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 496-498.
            
      
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/01/fonografo.aspx]

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

CREPUSCULAR (Camilo Pessanha)



CREPUSCULAR

Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos d’amor, d’ais comprimidos…
Uma ternura esparsa de balidos
Sente-se esmorecer como um perfume.

Às madre-silvas murcham nos silvados
E o aroma que exhalam pelo espaço
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias d’ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas d’anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este enlanguecer da natureza,
Este vago soffrer do fim do dia.
   
    
        
Camilo Pessanha. Clepsydra; poemas de Camilo Pessanha. Estabelecimento de texto, introdução, crítica, notas e comentários por Paulo Franchetti.
Campinhas: Editora da Unicamp, 1994, pp. 89-90.
        
        
        

TEXTOS DE APOIO
        

Aspetos estilísticos da obra de Pessanha: a musicalidade, Barbara Spaggiari (1982)

Pseudo-ápice, Gilda Santos e Izabela Leal (2007)

Uma poética do signo, da imagem e da sugestão, Fernanda Maria Romano (2013)
        
        


 Melencoliah
        
        
        

ASPETOS ESTILÍSTICOS DA OBRA DE PESSANHA: A MUSICALIDADE

Em «Crepuscular», o tom da poesia é atenuado, como um instrumento que toca em surdina. A atmosfera é abafada e submissa, mas também um pouco triste e banhada de inquietude. Nas primeiras duas estrofes domina entre vogais tónicas o u (murmúrio, queixume, ternura, murcham). E a murmúrio ―onomatopaico ― corresponde no início da segunda estrofe o aliterante murcham, que indica a percentagem de decomposição inerente ao ambiente descrito.

O simbolismo na obra de Camilo Pessanha,
Barbara Spaggiari. Lisboa, ICALP, 1982. Colecção Biblioteca Breve - Volume 66, p. 68.

          

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PSEUDO-ÁPICE

Em “Crepuscular” finalmente tem-se um eu e um tu reunidos […]

Eu e tu surgem cercados de “murmúrio de queixume”, “desejos de amor”, “ais comprimidos”, “aroma” com “delíquios de gozo e de cansaço”, “espasmos”, mãos entre mãos e olhos nos olhos... Isto nas três primeiras estrofes. Mas, quando se pensa tratar-se do encontro amoroso entre homem e mulher, logo surge a suspeita de que aqueles dados sensuais não existam senão “no ambiente”, na natureza tão envolvente que é capaz de motivar os arroubos humanos. E passa-se à última estrofe, que caracteriza a mulher com mãos anémicas e olhos tristes, num “enlanguescer da natureza” e “vago sofrer do fim do dia” (observem-se os clichés da estética romântica), confirmando uma atmosfera de melancolia e fenecimento já prenunciada em madressilvas que murcham e agonias de aves. Recupera-se, pois, o título do poema: tudo se passa ao crepúsculo. Mas que crepúsculo? Só o agonizar do dia? Não será também o crepúsculo de uma relação a dois, de um amor? E este amor existiria mesmo fora da atmosfera lânguida e onírica suscitada pelo crepúsculo?

Ao que tudo indica, mais uma ilusão a desfazer-se… Como no soneto “Floriram por engano as rosas bravas”.

Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal,
Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 51-52.

         
          

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UMA POÉTICA DO SIGNO, DA IMAGEM E DA SUGESTÃO

Já em “Crepuscular”, outro poema de Pessanha, há toda uma expressão sinestésica da hora do ocaso em imagens fortalecidas pelos signos que as constituem.

Logo, na primeira estrofe, a audição mescla-se ao olfato. O sujeito percebe que “há no ambiente um murmúrio de queixume”. Esse rumor que parece ser contínuo e sussurrante, “de ais comprimidos”, sente-se esmorecer como um perfume”. Tal sensibilidade olfativa permanece na segunda estrofe pelas “madre-silvas” e “o aroma que exalam pelo espaço”. Na terceira estrofe, o toque físico parece simultâneo à troca de olhares na declaração do sujeito: “tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas / o meu olhar no teu olhar suave”. Notamos, nesse poema, também, um jogo de signos e imagens que culminam nos dois últimos versos da quadra final, onde temos uma grande metáfora para expressar a intensa significação que o poeta dá ao crepúsculo: “é este enlanguecer da natureza,/ este vago soffrer do fim do dia”.

Assim como o ocaso sugere a passagem do dia para noite, fazendo dele um momento efémero, o outono, também presente na obra desse nosso poeta, indica um período de transição entre o verão e o inverno. Se tomarmos, por exemplo, o primeiro quarteto do soneto “Passou o outono já, já torna o frio”, perceberemos que são reveladas, nesse poema da Clepsydra, as imagens de um outono que se rende ao inverno e de um Sol que perde sua intensidade, na mesma transitoriedade das águas límpidas dos rios. Vejamos:

Passou o outomno já, já torna o frio...
— Outomno de seu riso maguado.
Algido Inverno! Oblíquo o Sol, gelado...
— O Sol, e as águas límpidas do rio.



Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 2013, pp. 114-116.

        
        
        
QUESTIONÁRIOS
        

I

Camilo Pessanha é considerado o expoente máximo da poesia simbolista portuguesa. Os seus versos reúnem o que há de mais marcante nesse estilo de época por traduzirem sugestões, imagens visuais, sonoras e estados de alma, além de notória ausência de elementos que se detenham em descrição ou em referência objetiva.

É correto afirmar que os versos do soneto “Crepuscular” transcritos nas opções, a seguir, traduzem as considerações postas nesses comentários, com exceção de:

(A) “Uma ternura esparsa de balidos,”
(B) “As madressilvas murcham nos silvados”
(C) “É este enlanguescer da natureza,”
(D) “Há no ambiente um murmúrio de queixume,”
(E) “Este vago sofrer do fim do dia.”



        
        

II

Tempo e espaço diluem-se na poesia de Camilo Pessanha, como índice de duração e de impressões confusas. Observa-se, então, em seus versos, uma espécie de nostalgia e de dolorosa sensação de não pertencer a lugar nenhum, sem qualquer possibilidade de assegurar futuro e sucesso. Destaque e comente dois versos que justifiquem essa afirmativa.

“Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d´ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.
……………………………………………
Sentem-se espasmos, agonias d´ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
‑ Tenho entre as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave

As tuas mãos tão brancas d´anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.”


PESSANHA, Camilo. Clepsidra . Lisboa, Ática, 1975.

        
            
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/31/crepuscular.aspx]