Claude Monet, Impressão, nascer do sol, 1872
PAISAGENS DE INVERNO
II
Passou o Outono já, já torna o frio...
— Outono de seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
— O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
— E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
Camilo Pessanha
Publicações anteriores:
O Progresso, de Lamego, (16 de Fevereiro de 1895).
Novidades, de Lisboa, (18 de Fevereiro de 1897):
Centauro (Dezembro de 1916).
QUESTIONÁRIO
1. Sobre o Simbolismo, movimento ao qual é vinculado o poeta Camilo Pessanha, e o Impressionismo, movimento ao qual é associado o pintor Claude Monet, é INCORRETO afirmar que
A) por ser, no século XIX, o início do caminho artístico em direção à abstração, o Impressionismo, cujas figuras não devem ter nitidez e contornos absolutos, é considerado um dos primeiros marcos da Arte Moderna.
B) a arte simbolista valoriza o espiritual, o misterioso, o vago, o inconsciente, retomando, inclusive, a subjetividade, o misticismo e o individualismo caraterísticos do Romantismo.
C) no final do século XIX, a estética simbolista e seu espírito decadentista decretam a falência do Positivismo, do Cientificismo e do Naturalismo.
D) na tentativa de valorizar a sugestão, os sentimentos e as emoções, a arte simbolista utiliza com frequência as descrições pormenorizadas dos objetos.
E) para os impressionistas, o essencial não é retratar a realidade do objeto, mas, sim, a impressão que esse objeto produz.
2. A partir de Paisagens de Inverno II, poema simbolista português, é correto afirmar que
A) ao explorar o efeito sonoro das palavras, Camilo Pessanha restringe as possibilidades de interpretação das sensações dos leitores.
B) ao evidenciar a dor da perda feminina, Camilo Pessanha apresenta resquícios da temática da comiseração destacada pelo Realismo.
C) ao construir um texto utilizando a função emotiva da linguagem, Camilo Pessanha aproxima-se dos ideais da poesia moderna.
D) ao construir um texto hermético, Camilo Pessanha torna mais agradável e acessível a compreensão plena do texto.
E) ao trabalhar com imagens subjetivas, Camilo Pessanha desconecta a temática do poema do universo da realidade.
3. Considere as seguintes afirmações sobre as composições de Camilo Pessanha eClaude Monet:
I. O texto literário e a pintura impressionista concedem destaque à relação de aflição e medo existente entre o homem e a natureza.
II. O texto literário e a pintura impressionista retratam situações compostas pela somatória de conceitos objetivos e subjetivos.
III. O texto literário e a pintura impressionista são compostos por uma estrutura e temática que ampliam a possibilidade interpretativa dos leitores.
Assinale a alternativa correta.
A) Estão corretas as alternativas I e II.
B) Estão corretas as alternativas I e III.
C) Estão corretas as alternativas II e III.
D) Todas as alternativas estão corretas.
E) Nenhuma das alternativas está correta.
4. Ao utilizar-se da natureza em Paisagens de Inverno II, Camilo Pessanha
A) sugere uma analogia entre a realidade oculta e a realidade aparente.
B) busca a simplicidade e o equilíbrio idealizado pela poesia greco-romana.
C) desloca a realidade para um ambiente bucólico e pastoril.
D) manifesta a aspereza e o rancor provenientes de sua perda amorosa.
E) estabelece uma relação mimética com as paisagens nacionais.
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Decanato_Academico/Vestibular/2014_1o/Grupos__I_IV_V__VI_2014_1o_sem.pdf
TEXTOS DE APOIO
REALISMO E SIMBOLISMO EM CLEPSIDRA
Se se quisesse apontar um dos traços essenciais, talvez o mais significativo, da poesia de Camilo Pessanha, devia precisamente sublinhar-se esta alternância, que é mudança constante, de frases suspensas, invocações que instauram um clima de rêverieou de meditação nostálgica, e de frases interrogativas, em que se manifesta a vontade de compreender e a revolta. […]
No segundo poema de Paisagens de Inverno, que se inicia com a frase «Passou o Outono já, já torna o frio...», o segundo e o quarto versos aparecem como uma explicação do verso que os precede; mas a explicação, se precisa o sentido do verso precedente, é também um processo do intensificação, em que melhor se revela a obsessão contemplativa e a nostalgia do sujeito do poema: «Passou o outono já, já torna o frio…/ ‑ Outono de seu riso magoado./ Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado... /O sol, e as águas límpidas do rio» O último verso, sob a forma aparente de uma simples precisão ou explicação, repete na realidade, alargando-a, uma parte do terceiro verso (assim posta em destaque): a referência ao sol. Mas pode dizer-se o mesmo do segundo verso em relação ao primeiro.
A segunda quadra inicia-se com uma frase exclamativa («Águas claras do rio!»). Parte da mesma frase introduz a seguir uma interrogação que ocupa dois versos e meio. A quadra termina com outra pergunta, em que se faz referência directa ao «coração vazio» (expressão que substitui, tornando-as mais precisas, as referências ao «olhar cansado» e ao «vão cuidado», e em que se resume, afinal, o estado de espírito do sujeito do poema): «Águas claras do rio! Águas do rio, / Fugindo sob o meu olhar cansado,/ Para onde me levais meu vão cuidado? // Aonde vais, meu coração vazio?» O primeiro terceto começa por exprimir um desejo de que não está no entanto ausente a nostalgia nem o estado de rêverie contemplativo: «Ficai, cabelos dela, flutuando, / E, debaixo das águas fugidias,/ Os seus olhos abertos e cismando...» A pergunta que inicia o último terceto restabelece o clima da segunda quadra, retoma a mesma obsessão. Mas é de novo a contemplação nostálgica, o sentimento de impotência, que transparece na parte final do poema: «Onde ides a correr, melancolias? /‑ E refractadas, longamente ondeando, / As suas mãos translúcidas e frias…»
[…]
No segundo soneto de “Paisagens de inverno” reencontramos a alusão simbólica às estações do ano. E a alternância entre a realidade exterior (referida porque faz parte da experiência individual) e a realidade interior ‑ alternância das referências ao mundo enquanto tal e das referências à realidade individual ‑ continua a ser o processo de composição utilizado. O poema inicia-se neste caso com uma alusão ao outono que «passou já»: «Passou o outono já, já torna o frio...». Até aqui nada de pessoal foi ainda dito, a situação evocada é comum a todos os homens que vivem no mesmo lugar. Mas em seguida o poeta evoca o «Outono de seu riso magoado», transformando a evocação de ordem geral do primeiro verso em evocação pessoal ‑ e a posteriori o primeiro verso acaba por só encontrar a sua razão de ser nesta evocação subjetiva que lhe restringe o sentido e que já tinha condicionado, certamente, a alusão ao outono no primeiro verso. A passagem da realidade exterior e de ordem geral à realidade interior e de ordem subjetiva é também, paralelamente, a passagem do simples realismo ao simbolismo, pois o outono volta a ser aqui, mais do que uma estação do ano, um tempo que assinala o declínio, a morte ou a perda da amada. A alusão ao inverno, também simbólica, aparece como o prolongamento natural da alusão ao outono; e o sol, «oblíquo» e «gelado», bem como as águas do rio (elas também álgidas», e «geladas», supomos, e não apenas «límpidas» continuam a ser símbolos em que se representa, através da alusão à realidade exterior, uma situação particular e os sentimentos do sujeito do poema. A ideia de «frio» domina toda a quadra e acentua-se com a passagem do outono ao inverno ‑ mas este frio, se é exterior, é essencialmente um «frio» interior, símbolo da solidão e infelicidade atuais.
Que as «águas do rio» permitam em seguida ao sujeito do poema falar do seu «olhar cansado», dos seus «vãos cuidados», do seu «coração vazio», continua a demonstrar que a realidade exterior é sempre um ponto de partida e pretexto para a evocação da realidade interior. É possível que o sujeito do poema se encontrerealmente diante do rio, embebido em recordações da amada; mas para além do realismo possível da evocação, o que conta é sobretudo o seu carácter simbólico evidente. A realidade exterior evocada é sobretudo aquilo que permite ao sujeito do poema, por comparação ou por sugestão, evocar os seus sentimentos, a sua situação pessoal, e pôr-se o problema da existência. O exterior só interessa [a ] Camilo Pessanha quando posto em relação implícita ou explícita com a experiência subjetiva, com a interioridade. Por outras palavras, e adotando uma outra perspetiva, poderia afirmar-se que a evocação da realidade exterior na poesia de Camilo Pessanha se faz sempre em função da realidade interior; o mundo exterior é caracterizado de maneira a sugerir, a completar e a sublinhar o estado de espírito, os sentimentos, a situação ou a visão do mundo e da existência expressos pelos poemas. Os dois tercetos exprimem ainda mais claramente a fusão e a confusão da realidade interior com a realidade exterior, da situação privada com um cenário de ordem geral: nas águas do rio o sujeito do poema quer continuar a ver flutuar os cabelos da amada, e sob a água os seus olhos «abertos e cismando», as suas «mãos translúcidas e frias», «refractadas, longamente ondeando». A água permite a transição do realismo ao simbolismo não só porque incluindo em si a noção de movimento pode assimilar-se à passagem do tempo que leva tudo consigo, mas também porque favorece a criação de imagens vagas, «refractadas», que se assemelham às imagens deformadas e não menos vagas ou difíceis de «construir» da imaginação e da memória. Mas esta fusão do interior e do exterior é a fusão da imaginação e da realidade, da morte e da vida, do passado e do presente, não anulando por todas estas razões a distância crítica a que Camilo Pessanha se situa em geral em relação à vida e ao mundo. Deve assinalar-se ainda que a única alusão à mulher amada nas duas primeiras quadras se encontra na expressão «seu riso magoado»; nos restantes versos destas cruas quadras o sujeito do poema refere-se à realidade exterior ou a si mesmo. É a referência clara nos dois tercetos à imagem da amada que faz dela o centro de interesse do poema. O estado de espírito que está na origem e no centro das duas quadras só encontra a sua explicação profunda, a sua razão de ser, na realidade evocada posteriormente nos tercetos.
Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa, 1984, pp. 297-298, 300-302
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ELLIE VICTORIA GALE, Leaks of Light |
PAISAGENS DO DESEJO E DA MELANCOLIA
[…] É nessa voz reflexiva — que identifica e interpela cada manifestação do desejo e cada anseio mínimo de transcendência, apontando logo a desistência e a resignação como o único caminho possível — que encontramos, muito frequentemente, o tom específico da poesia de Pessanha. E é ela também, a partir da experiência da deceção, que vai propondo as várias imagens da quietação, da ausência de desejo e, portanto, da morte, que constituem o tecido simbólico mais característico da Clepsydra.
Nessas paisagens hibernais, entretanto, a quietação não existe de facto, senão enquanto objetivo proposto para os olhos que se rebelam. É verdade que, no segundo soneto, já os olhos perderam a febre. Mas não há aqui repouso, não há sossego: tudo é movimento, tudo se afasta do sujeito que apenas descobre, ou deseja descobrir, fragmentos na água que flui à sua frente.
Lido na sequência, o segundo soneto neutraliza o primeiro, no que diz respeito à simbologia do inverno. Lá, a estação das neves podia ser entendida muito coerentemente como a velhice, como aproximação do final da vida. Mas já no primeiro verso do segundo soneto, a afirmação do caráter cíclico das estações impede que mantenhamos aquela leitura. Não podemos mais pensar as estações como uma representação das fases sucessivas da vida humana. As estações não representam momentos de um desenvolvimento linear, mas estados que se sucedem e repetem ciclicamente. “Passou o outono já, já torna o frio” — nesse primeiro verso, vemos que a condição hibernal é recorrente. Ou seja: o inverno não pode ser lido apenas como a velhice, mas como uma disposição de espírito, que se renova periodicamente. […]
Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p.92.
A MELANCOLIA COMO SINTOMA DO AMBIENTE NEGATIVO
O segundo soneto sofre certa digressão em que há um aceleramento
cíclico pautado por lembranças exclusivamente melancólicas.
É preciso anotar que a melancolia está muito mais ligada a um
traço relativo do espírito do que a um tipo de doença clínica. A manifestação da melancolia acontece num plano psíquico em que
a visão nauseante da vida tende puramente ao metafísico,
pondo em voga o sentimento do ser frente à obscuridade da compreensão
universal. Para afiançar nosso pensamento, Robert Burton, em A anatomia da
melancolia (2011), escreve: “É de uma doença da alma que estou a tratar,
tão delegável a um teólogo quanto a um médico [...]” (BURTON, 2011, I, p. 82).
Segundo os apontamentos de Burton, verifica-se que a melancolia se
avizinha da psique humana. A constatação do mundo melancólico não se dá a
partir de uma transformação dele, mas sim através de uma cosmovisão oriunda da
própria consciência. Nessa perspectiva, Franchetti anota que “sob o olhar
melancólico, tudo se torna melancolia, fragmentação, fluidez” (FRANCHETTI,
2009, p. 28).
É apropriado observar que estas imagens pendentes se constroem
doravante à compreensão inerme e apática do mundo. Indo além, Stanley Jackson,
na obra Melancholy and depression (1986), constata que “a condição [da
vítima da melancolia] era caracterizada pela exaustão, apatia, aversão à
célula, à vida ascética e pela ânsia de retorno à família e à vida passada”
(JACKSON Apud LIMA, 2017, p. 66). Apoiados nessa condição, a melancolia
presente em Clepsidra pode ser brilhantemente esclarecida através das
anotações de Giorgio Agamben. Segundo o teórico, “Por sua própria ambiguidade,
o valor negativo da acédia [apatia] assim se torna o fermento dialético capaz
de converter a privação em posse [...]” (AGAMBEN, Apud Lima 2017, p.
28).
Ora, uma vez que a melancolia de Pessanha está atrelada, se
tomarmos como verdadeiras as observações de Massaud Moises já descritas
anteriormente, ao Pan-sofrimento e ao pessimismo de Schopenhauer, então é
válido afirmar que a dor viril sofrida pelo poeta invoca, justamente, a
incapacidade de converter a privação em posse. Se Agamben acredita em um valor
negativo da acédia que impulsiona o “fermento dialético”, Pessanha nega a
negação da acédia.
Por essa linha de raciocínio, o primeiro verso do segundo soneto
não apenas retoma a negação, como também une a ela o traço sombrio da
melancolia. Além da manutenção da apatia e exaustão, o poeta adota um tom
melancólico que reverbera a “ânsia de retorno à família e à vida passada” muito
bem expresso pela sobrevivência sôfrega a cada retorno do inverno.
Novamente
é oportuno observar que a lembrança do poeta se restringe a momentos de apenas
“não sofrimento”. Nota-se que o verão e a primavera não pertencem ao universo
de Clepsidra e as paisagens, em sua maioria, são tomadas pelo outono e
inverno. Ainda que saiam, esporadicamente, da esfera do crepúsculo (outono) e
da morte (inverno), algumas imagens tendem a ambiências tão funestamente
macabras quanto as de “Paisagens de inverno” (tomamos por exemplo o deserto
imenso de “Branco e vermelho” e o lençol aquático de “Depois da luta e
depois da conquista”).
Isso
posto, a ideia de não sofrimento persiste, uma vez
que a voz lírica resgata apenas a lembrança de ter passado o outono. A memória
do poeta parece se restringir apenas a lembranças melancólicas, uma vez que que
o outono se associa, analogamente, à decadência e
ao desejo de morte. Ainda nesse sentido, a repetição do vocábulo “já” (Passou o
outono já, já torna o frio) fortifica a consciência de um ciclo acelerado em
demasia no qual as outras estações (primavera e verão) não deixam nenhum
registro ou lembrança, timbrando sempre o presente melancólico do inverno em
vista das últimas esperanças minguadas pelo outono (FRANCHETTI, 2009).
É acrescentada à paisagem gélida da natureza uma metáfora em que o
sol oblíquo ilustra o desespero do poeta diante do rigor invernal. Num sentido
mais conotativo, o sol parece estar brilhando de modo tortuoso, perdendo sua
característica primária de produção de calor. Sob esse ponto de vista, a
afirmação de um sol gelado faz eco ao casebre transido do primeiro soneto e
completa o quadro melancólico “como um gênero de delírio, sem febre, que
apresenta como companheiros constantes medo e tristeza sem motivo aparente”
(AGAMBEN apud Lima, 2017, p. 64).
Não obstante a constatação de um sol gélido, o poeta ainda nota
o atributo do gelo também nas águas do rio. É cabível notar uma pitada de
inutilidade na própria natureza que rodeia o poeta. O sol gelado diverge do
senso comum em que estrela e calor estão ligados sinonimicamente; da mesma
forma o rio, com águas límpidas, não oferece ao poeta nenhum traço de vigor ou
esperança, uma vez que, embora límpidas, suas águas são gélidas como o sol da
paisagem algente.
Nesse cenário, a negação do calor do sol está paralelamente
ligada à pouca importância da clareza das águas límpidas. O sentido dual
implicado pela frieza de um sol inatingível e pelas águas de um rio que pode
estar ao alcance do poeta reafirma uma possível desistência, tanto no tocante à
vida eterna quanto à existência no mundo material.
O desejo do poeta, por mais obscuro ou frágil que possa parecer,
está apoiado em concepções inalcançáveis, tanto pelo corpo físico (as águas do
rio) quanto pela consciência (o sol gélido como representação da distância, do
inalcançável). Resultante desse processo de assimilação negativa, Agamben
destaca que “permanecendo seu desejo [do indivíduo] fixado sobre o que está
fora de seu alcance, a acédia não é somente uma fuga de... mas ainda uma fuga
para..., que se comunica com seu objeto pelo modo da negação e da
carência (AGAMBEN apud LIMA, 1981, p. 28)”.
A dualidade em “fuga de” e “fuga para” concebe uma ideia
intersticial na qual o poeta observa estar seu objeto de desejo. Assim, a
evocação do eu lírico pelas extintas primaveras no primeiro soneto revela ser
elas seu objeto de desejo, mesmo que as tendências de primavera e verão não impliquem,
necessariamente, vida e gozo (e aqui posso, uma vez mais, citar como exemplo o
calor em demasia de “Branco e vermelho” e o verde do lençol aquático em
“Depois da luta e depois da conquista”). Dessa maneira, a carência do
poeta pelas extintas primaveras corrobora a negação de um presente sôfrego.
Esse paralelismo entre negação e carência pode ser muito bem
observado através da disposição dos versos do primeiro e do segundo soneto no
tocante ao ardor metafórico dos olhos. Para afiançar esse pensamento,
Franchetti anota:
Os olhos não ardem aqui [em Paisagens de inverno II] com
a febre do desejo de retorno. Ardem, sim, com o furor melancólico, reflexivo.
Duas vozes se contradizem no interior desses sonetos: de um lado, a do desejo
que incendeia os olhos; do outro um contracanto que afirma a impotência e
aponta para a morte, a quietação como o único alívio do desejo doloroso
(FRANCHETTI, 2009, p. 29).
Desse excerto de Franchetti, é relevante atentar para duas coisas
que respaldam este estudo. A primeira é o modo de ver do teórico no que se
refere à afirmação da impotência que aponta para morte; e a segunda, o furor
melancólico reflexivo que parece ser o axioma representativo de “negação e
carência”.
Sobre a primeira observação, o que Franchetti verifica ser a
afirmação da impotência, também pode ser constatada, numa perspectiva inversa,
como negação da potência. Na perspectiva de Kurrik, em Literature and
negation, a negação da potência aponta para morte; a carência, por sua vez,
que explicita o desejo doloroso de Franchetti, é negada pela ânsia de morte,
pela negação da vida.
Nesse enfoque, tudo tende à negação. Os vocábulos escolhidos pelo
poeta trazem à tona a melancolia e a negação unidas tanto pela concepção do
desejo quanto pela tendência negativa que emanam dos mesmos vocábulos. É
conveniente notar, a título explicativo, a ordem disposta pelo poeta no tocante
à rima e ao grau degenerativo da vida que aumenta a cada verso.
Primeiramente, apenas é constatada a chegada do inverno: “Passou o
outono já, já torna o frio”. Segundamente, o eu lírico menciona o estado físico
das coisas em face da rigorosidade do frio: “Álgido inverno! Oblíquo o sol,
gelado.../_ O sol, e as águas límpidas do rio”.
Interessante observar, também, que a repetição de conceitos afirma
certa mudança na perspectiva do poeta de ver o mundo: “_ O sol, e as águas límpidas do rio. /Águas claras do rio! Águas do rio,
/Águas claras do rio! Águas do rio, [...]”. Dessarte, parece válido ressaltar
que as águas do rio parecem estar ligadas metaforicamente ao constante
movimento de mudança, como que trazendo à baila o pensamento de Heráclito sobre
a alteração constante dos entes e do ser humano (SANTOS, 2007, p. 33).
Dessa maneira, as águas do rio adquirem um cunho positivo (claras
e límpidas), cuja função é contrapor a clareza e a beleza, bem como reiterar o
viés melancólico uma vez que as água claras e límpidas estão sob poder rigoroso
do álgido inverno. Em razão disso, a paisagem negativa se completa a partir da
estupenda manifestação da natureza que coíbe qualquer relação do ser humano
pela condição glacial imposta pelo frio.
Como reflexo desta condição climática, a ambiência disposta em
“Paisagens de inverno II” expõe a consciência do poeta associando tal natureza
gélida a um comportamento regido pela melancolia. Gumbrecht respalda essa ideia
ao anotar que “as atmosferas e os estados de espírito, tal como os mais breves
e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno material, afetam também as
nossas mentes” (GUMBRECHT, 2014, p. 13).
Como arremate da paisagem melancólica, o poeta ainda indaga:
“onde ides a correr melancolias?” É mister observar que a indagação do poeta
parece estar ligada ao mesmo modo interrogativo do primeiro verso do primeiro
soneto: “Ó meu coração, torna
para trás. /Onde vais a correr desatinado?”. Assim sendo, a forma de
questionamento do eu lírico às melancolias demonstra que este sentimento está
inerente no poeta, pondo em evidência que, da mesma maneira com que a
consciência chama o coração à razão, assim também o faz, numa tentativa de
reter o desejo vão, com a melancolia.
A título de conclusão, as paisagens que constroem o cenário dos
poemas dispostos em Clepsidra emitem juízos que corroboram a fala de
Pessoa (1967, p. 101) quando o poeta observa que “uma tristeza é um lago morto
dentro de nós”. Nessa perspectiva, os olmos que vergam sob o peso da neve, o
casebre transido, o sol e as água geladas do rio convergem para a estruturação
de imagens que refletem, ecoam e ilustram a subjetividade de cada indivíduo.
Por meio dessa ilustração, a conciliação da paisagem externa com a interna se
revela de maneira que, nas palavras de Fernando Pessoa, bem se retrata a
realidade através da representação simultânea da paisagem interior e da
paisagem exterior.
Ezequias da Silva Santos. Aspectos
de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato
Branco, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2019
ANÁLISE MUSICAL E LITERÁRIA
No seu conjunto, a poesia de Camilo Pessanha traduz o pensamento metafísico de uma alma errante, em que ocorrem de forma obsessiva imagens de confrontação com a morte e de manifestação da dor e da mágoa99, porém, despojadas de intensidade romântica. Reflexo de uma “desagregação pessoal”, a sua poesia esvazia-se “em ténues e inúteis agonias [...]. O desejo e o amor suspendem-se, e desistem, e fruem a música agridoce da desistência, seguros de que a sua consumação seria o tédio”100. A versificação, fluida e leve, é dotada de uma qualidade musical própria, resultante do trabalho de combinação rítmica e de uma ponderação cuidada da palavra, que põe em relevo as suas características fonossimbólicas.
A música [de Filipe de Sousa] para os dois sonetos de Pessanha corresponde a esta ideia de fluidez rítmica do verso. Não só a melodia vocal deambula, vaga e evanescente, mero veículo das imagens poéticas, como o acompanhamento pianístico, delicadamente arpejado, trai esta noção passageira e fugaz do tempo.
O presente estudo lança uma perspetiva abrangente sobre a obra para voz e piano de Filipe de Sousa (Maputo, 15/02/1927 — Lisboa, 22/11/2006).
A parte central da dissertação foi dedicada a um estudo individual de cada canção, focando aspetos da linguagem musical empregue, numa relação estreita com os respetivos textos poéticos, tendo sido alvo da nossa atenção a quase totalidade da sua atividade criativa nesta área.
Passou o outono já, já torna o frio…
(Paisagens de Inverno II, 1895 ,1ª versão; in Clepsidra, 1ª ed., 1920)
Poema musicado por Filipe de Sousa em 26 de fevereiro de 1950 (para voz e piano).
Este é um poema em que a metáfora do tempo que passa, materializada nas águas correntes, é confrontada com a ideia da morte. Em primeiro lugar, morte do Outro, na visão ofélica, decadentista, de uma figura feminina de cabelos ondulantes sob as águas límpidas e claras, que se interpõem como um écran, afastando o sujeito poético daquela a quem ele aspira reunir-se. Numa segunda instância, as águas, agora fugidias, são reflexo narcísico do olhar cansado do poeta, instigando-o a uma viagem sem retorno102.
No plano harmónico, a canção assenta numa noção de ambiguidade decorrente da adoção da escala menor melódica de Si bemol, que induz no compositor o jogo constante de leves dissonâncias, produzido pelas alterações do 6º e 7º graus. Este conceito prolonga-se na alusão permanente às harmonias sobre o grau da tónica, que não chega nunca a afirmar-se definitivamente no texto musical. O arpejo inicial, transitório, repousa na 1ª inversão do acorde, e a ocorrência da fundamental do acorde no terceiro compasso é também passageira, conduzindo à pedal sobre a dominante nos compassos seguintes. A permanente polarização tonal no grau da dominante, Fá M, constitui-se, em nossa opinião, indicador semântico da atmosfera poética de realidade suspensa. O único ponto em que a perceção da harmonia principal é mais manifesta, acontece já no final da canção (cc. 26-27), no movimento cadencial do V para o I grau. Contudo, mesmo aqui, o seu efeito é ilusório, desfeito que é o intervalo de 3ª menor, e breve, pois que, de imediato reincide na dominante, suspensiva, diluindo-se o final pela adição de uma 6ª ao acorde.
Facto saliente na secção central, é o movimento ondulatório traduzido pela figuração de arpejos, para o qual contribuem a aceleração do andamento e a alteração na acentuação rítmica, e que, enquanto imagem isomórfica da cabeleira feminina vogando nas águas correntes, contrasta com a aparente imobilidade temporal das secções extremas103.
Universidade de Aveiro, 2007.
___________
(99) In: PESSANHA, Camilo, Clepsidra, Isabel Pascoal (Introd.), Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, Braga, Ulisseia, 1996, p.25.
(100) António José Saraiva e Óscar Lopes in História da literatura portuguesa, 12ª ed., Porto, Porto Editora, 1982, pp. 1032-1033
(102) GIlbert Durand, citado por Christine Pâris-Montech, afirma: “L’eau qui s’écoule est amère invitation au voyage sans retour. [...] L’eau qui coule est la figure de l’irrévocable”. op. cit., p.109
(103) Filipe de Sousa referiu-se a estas melodias na longa entrevista que concedeu em 1997 à Revista Macau (op.cit., p.56) por altura de um recital realizado com a soprano Elsa Saque. Caracterizou-as como “pecadilhos de juventude”, expressão que utilizava amiúde quando mencionava as suas obras dos tempos de estudante, apontando-lhes, então, um “certo academicismo”. Pelo que nos foi dado a conhecer do convívio com o Maestro nos últimos anos da sua vida, é nossa convicção que estas observações revelam mais da sua personalidade, do que qualificam as suas obras ou o seu processo criativo. Apesar de um indisfarçável sentido de orgulho, Filipe de Sousa frequentemente desvalorizava a importância das suas obras, mostrando-se reconhecido pelo interesse que outros poderiam demonstrar por elas.
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Ofélia (detalhe), John Everett Millais, Ophelia, 1851-52 (Tate Britain, Londres) |
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/10/paisagens.de.inverno2.aspx]