quarta-feira, 17 de junho de 2015

A música do ser (Sophia Andresen)





BACH SEGÓVIA GUITARRA

A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada

Sophia de Mello Breyner Andresen




QUESTIONÁRIO:

Refira dois dos traços que contribuem para a humanização da música nas cinco primeiras estrofes do poema, apresentando transcrições que comprovem a sua resposta.

A humanização da música decorre de vários aspetos, nomeadamente do facto de esta:
– estar associada a vivências subjetivas do ser humano − «Povoa este deserto» (v. 2);
– ser indissociável da identidade do ser humano − «A música do ser / Interior ao silêncio / Cria seu próprio tempo / Que me dá morada» (vv. 8-11);
– possuir uma voz que é companheira do «eu» poético − «Palavras silabadas / Vêm uma a uma / Na voz da guitarra» (vv. 5-7); «Por companheira tenho / A voz da guitarra» (vv. 15-16).


Explicite a importância da música na construção da identidade do «eu», de acordo com o conteúdo das duas últimas estrofes.

A música é fundamental na construção da identidade do «eu», na medida em que:
– tem o poder de conferir unidade ao «eu» poético – «O canto me reúne» (v. 18); «E agora de mim / Não me separa nada» (vv. 21-22);
– potencia o reencontro com um tempo primordial e puro – «De muito longe venho / Pelo canto chamada» (vv. 19-20); «Num silêncio de areia / Que não foi pisada» (vv. 26-27).


Exame Nacional de Português, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho).
 IAVE, 2015, 1ª fase. Prova 639 e critériosde classificação.






SOPHIA E O FIO DE SÍLABAS

A poesia de Sophia sabe que as coisas do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras ‑ porque a palavra isolada não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o caos sempre ameaça emergir.
Em contrapartida, as sílabas ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por isso, produz discurso não palavras, mas versos: "O meu viver escuta / A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita" (Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética III, p. 89). Como é dito no poema "Bach Segóvia Guitarra", "Palavras silabadas / Vêm uma a uma", e só a silabação traduz "A música do ser" (Idem, p. 33). Digamos, então, que as sílabas são a matéria que permite encontrar "(...) a ordem intacta do mundo / A palavra não ouvida" (Idem, p. 67), e que esta é sempre relacional e rítmica.
Em absoluta concordância com esta perspetiva, o poeta é "um escutador", e "fazer versos é estar atento", "[d]eixar que o poema se diga por si" (Idem, "Arte Poética IV", Dual, Obra Poética III, pp. 166-7), ou seja, ouvir as frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e humanamente "feita", a ordem do poema é também, e sem contradição, "escutada" como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.





*



A VOZ - SINAL DO SER

«Esta voz nenhuma disciplina a domina... ela é a voz do mundo: CANTO. Ela é o poema do Ser no sentido em que ela está para além de nós mesmos, no sentido em que o homem é este poema que o Ser começou...» (Daniel Charles, Les Temps de la Voix. Paris, Ed. Universitaires J. P. Delarge 1978).
Assim quando Daniel Charles diz: «Todos os homens têm uma voz, isto é, escutam o Ser», é legítimo considerar que não se trata aqui da escuta feita através do órgão auditivo mas sim da escuta que se realiza através do instrumento CORPO, que ele é simultaneamente aquilo que escuta e que é escutado e que a VOZ é a materialização dessa mesma escuta.
Teremos assim como hipótese possível que a voz é uma representação daquilo que tem de mais essencial o produto da vibração do corpo total, sico e psíquico posto em condições de disponibilidade e ativação que lhe permitem captar a vibração exterior com a qual o seu íntimo se encontra em sintonia, o que não exclui o processo inverso. Daí que, ao falar-se de voz se refira uma emissão sonora produzida por um ser global, recetor e transmissor, estando implicadas neste fenómeno vibratório todas as capacidades do ser que pensa, age, goza e ainda não perdeu o sentido de humor que o impele a comunicar com os outros.
A complexidade deste fenómeno natural é, simultaneamente, a realidade que nos obriga a avaliar quanto de animal - porque de corporal e intuitivo - quanto de psíquico e mental ele implica o que por si só chega para estabelecer as normas do relacionamento entre aquele que procura encontrar a sua autêntica voz e aquele que crê poder lançar algumas pistas nessa procura. […]
«… a verdadeira música do Ser não existe ainda porque nós estamos em vias de a compor» (Daniel Charles).

A voz – sinal do ser”, ensaio de Maria João Serrão com citações de Daniel Charles. In: Conservatório Nacional-150 Anos de Ensino de Teatro, edição do Centro de Documentação e Investigação Teatral da Escola Superior de Teatro e 
Cinema de Lisboa, 1987, pp.103-108; in: Revista da A.P.E.M. - Associação Portuguesa de Educação Musical , Boletim nº. 53, Abril/Junho 1987, pp.10-12.









OPINIÃO

As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores
Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas.


O poema de Sophia de Mello Breyner Andresen que era objecto de duas perguntas que formavam um item da Prova Escrita de Português do 12.º Ano chama-se “Bach Segóvia Guitarra” e começa assim: “A música do ser/ Povoa este deserto/ Com sua guitarra/ Ou com harpas de areia// Palavras silabadas/ Vêm uma a uma/ Na voz da guitarra// A música do ser/ Interior ao silêncio/ Cria seu próprio tempo/ Que me dá morada”.
Como trabalho de interpretação solicitava-se aos alunos que referissem “dois traços que contribuem para a humanização da música” (alínea 4) e que explicitassem “a importância da música na construção da identidade do ‘eu’” (alínea 5).
Até um leitor sem treino na leitura da poesia de Sophia tem boas razões para se interrogar onde foram os autores da prova encontrar sentidos explícitos ou implícitos que autorizem a interpretação formulada como “humanização da música”. Sabendo nós que as coisas da literatura servem, não apenas na escola, para ministrar lições de humanismo, intuímos que os examinadores leram no “ser de “a música do ser” nada mais nada menos do que o ser humano. Confirmamos que a nossa intuição estava correcta quando lemos o “cenário de resposta” que é apresentado nos “critérios de classificação”: “A humanização da música decorre (…) do facto de esta estar associada a vivências subjectivas do ser humano” e, além disso, de “ser indissociável da identidade do ser humano”. Assim, onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.
A “música do ser” evoca um tópico fundamental na poesia de Sophia. Trata-se de uma ideia de poesia como escuta das coisas essenciais, primordiais. A “música do ser” advém da procura da “ordem intacta do mundo”, da perfeição, da totalidade, da pureza e da harmonia. E esse mundo é mais povoado por deuses do que por homens. Daí o fascínio de Sophia pela Grécia clássica; O “ser”, aqui, nada tem a ver com o “ser humano”, é a veemência e a verdade das coisas, de onde Sophia sempre quis extrair um “poema imanente”. Podemos ler no final de um poema chamado “Sua Beleza” (de O Nome das Coisas): “Prometo um mundo mais inteiro e mais real/ Como pátria do ser”. E lemos também na sua “Arte Poética II”: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser (...) A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”. Trazer para aqui qualquer questão relacionada com a “humanização” e “vivências subjectivas do ser humano” é deturpar o poema de maneira grosseira e reduzi-lo a lugares-comuns que não dizem nada sobre ele, mas dizem muito sobre a ideia que os examinadores têm da poesia. Ler o poema a partir de chaves como a das “vivências subjectivas” e de identidades leva o poema de Sophia para territórios de onde a autora se afastou radicalmente. A sua poesia é a busca de uma palavra impessoal e implica a despersonalização. Ela é completamente estranha a essa forma de subjectividade, de expressão e de identidade que os examinadores pressupõem. Por isso é que o mito da Musa é tão importante na sua obra. A poesia como invenção das Musas significa que o poeta é fiel a uma inspiração musical, a uma palavra que tem uma relação com o ser enquanto verdade. “A música do ser” é algo consubstancial à própria poesia porque o poema é canto, e a música é a arte das Musas. Fazer de tudo isto matéria de “vivências subjectivas” e querer que os alunos identifiquem aqui a construção de uma identidade é como falar em bugalhos quando o poeta fala em alhos. Que inanidades terão os alunos que papaguear para estarem conformes ao “cenário de resposta” e coincidirem com os critérios de classificação? E quem não responder de maneira acertada é porque não está à altura das exigências interpretativas dos examinadores ou porque foi confrontado com uma missão impossível?
E, sobre isto, o que diz a “Associação de Professores de Português”? Que “as duas questões apresentadas, também coerentemente elaboradas, obrigavam a que o examinando assimilasse toda a linguagem metafórica aí existente, exigindo, de novo, grande concentração”. Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas. Ainda bem que os examinadores têm à sua disposição um bom dicionário de metáforas que facultaram amigavelmente à Associação de Professores de Português.
António Guerreiro (crítico literário), 19/06/2015 - 05:38
http://www.publico.pt/portugal/noticia/as-aventuras-de-sophia-na-patria-dos-examinadores-1699440?page=-1




OPINIÃO

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema


Para quem tenha lido o que António Guerreiro escreveu no PÚBLICO, “As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores”, na edição de 19 de Junho, sexta-feira, espanta que a lucidez desse artigo colida com a inanidade das declarações de Edviges Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português, segundo a qual o poema de Sophia exigia “grande concentração”. Que significará, na semântica de Edviges, “grande concentração”?
De facto, quer para quem faz os exames, quer para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
O problema reside, a meu ver, numa questão de didáctica e de pedagogia do texto literário. É impossível facultar aos alunos, com leitura metódica efectiva, todos os poemas seja de que poeta for. As razões são de ordem prática: ao elaborar-se um programa escolar selecionam-se textos segundo um critério de qualidade e, assim sendo, que outro poema de Sophia mereceria ser analisado em Exame? Por acaso “Arte Poética II” não deveria ser texto obrigatório a constar nos manuais de Português do 10.º ano? Poema sobre a poesia, aí se explica por que razão a poesia é uma “arte do ser” e, como bem viu Guerreiro, o ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave: segundo os critérios, os alunos terão de dar uma resposta errada para terem certo este item do exame. Se os examinadores lessem o artigo de António Guerreiro chegariam a uma conclusão simples: qualquer que seja a resposta dada pelos alunos terá de ter cotação máxima no conteúdo, uma vez que a própria proposta de cenário é um erro crasso por parte dos que conceberam as questões e os respectivos cenários. E a questão, que lateralmente Guerreiro convoca, é mesmo a de dar, para o Exame Nacional desta disciplina, noções de poética dos autores que constam do programa. Noções de poética, isto é, as coordenadas gerais de determinada obra de dado autor, em função do contexto de produção e da comunidade interliterária a que esse autor pertence. A esta luz pode o professor escolher textos que não estão nos manuais – pode e deve fazer das aulas exercícios de leitura contrastiva/comparativa, facultando aos alunos alguma crítica literária, sem cuja leitura os alunos não conseguem apropriar-se do registo científico que, à saída do Ensino Secundário, deveriam dominar.
Em função de uma “pedagogia da admiração” (assim defende Helena Buescu) essas coordenadas de leitura conduziriam, seja em face de que poema for, a um comentário centrado na linguagem do texto em presença, e não em lugares-comuns e leituras superficiais, que é justamente o que os cenários de resposta são. A leitura do texto poético exige, de facto, “grande concentração”, como sabiamente diz Edviges, mas essa concentração deriva de um saber literário que, na relação pedagógica, se transfere do professor para o aluno, consolidando – através da escrita – a capacidade da leitura inferencial. Isso exige questionários que não corrompam os textos literários, algo que, no limite, implicaria que os fazedores dos exames soubessem que a ideia de ser em Sophia não autoriza as perguntas propostas.
Já em 2012, António Guerreiro afirmava o seguinte: “Trata-se sempre de perguntas que não convidam o aluno a ler e a interpretar, mas a repetir leituras e interpretações que lhe foram fornecidas. [...] Algum examinando que se desloque ligeiramente em relação ao "cenário de resposta" pode provocar cataclismos em cadeia: em primeiro lugar, afasta-se dos "critérios específicos de classificação [...]" o que significa fugir do horizonte dos "descritores do nível de desempenho no domínio específico da língua”“. Assim se desautorizam os professores quanto à sua liberdade para corrigir, em função da análise que os estudantes fazem, a expressão escrita e a capacidade inferencial de quem vai a Exame. E assim o acto de ensinar se tem vindo a transformar em corrupção do que, idealmente, o ensino deveria ser – nomeadamente o ensino do Português –, a saber: acto crítico, de verdadeiro rigor, não porque se queira fazer um exame infalível numa disciplina que, porque lida com a linguagem, não pode ser idêntica às matemáticas ou químicas, mas de rigor porque não se pode propor como cenário de resposta correcto o que o poema, neste caso de Sophia, jamais diz. Isso é falta de rigor, Senhores Examinadores. Por muito que mascarem com níveis de desempenho o absurdo dos cenários de resposta que propõem, esses cenários é que são propostas de correcção verdadeiramente subjectivas, feitas, afinal de contas, por quem nunca se deu ao trabalho de ler, para saber o “como diz” da poesia, Ser e Tempo, de Heidegger… E aqui, pergunte-se, como podem os professores de Português aceitar semelhantes dislates e idiotices por parte do IAVE?

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema”, António Carlos Cortez (Professor e crítico literário), Público, 15/07/2015.




Poderá também gostar de ler:

. “Professores denunciam falhas graves na correcção do exame de Português”, Clara Viana e Graça Barbosa Ribeiro. Público, 15/07/2015.

Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


terça-feira, 16 de junho de 2015

A experiência estética

Pormenor de Ofélia, 1851–1852, John Everett Millais


A seguinte estrofe do poema Gozo e Dor, de Almeida Garrett, é um exemplo de que a arte transmite sentimentos.

Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.


Será que toda a arte transmite sentimentos?
Na sua resposta:
– identifique, referindo o seu nome, a teoria da arte segundo a qual toda a arte transmite sentimentos;
– apresente inequivocamente a sua posição;
– argumente a favor da sua posição.



Cenário de resposta

A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Identificação da teoria da arte segundo a qual toda a arte transmite sentimentos:
teoria expressivista da arte OU teoria da arte como expressão.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à teoria expressivista da arte.
Justificação da posição defendida:
 No caso de o examinando concordar com a teoria expressivista da arte:
a arte é uma expressão intencional de emoções sentidas pelo artista, as quais são clarificadas e transmitidas a um público por meio de linhas, cores, ações, palavras ou sons;
para algo ser uma obra de arte, é necessário que o artista sinta, clarifique e transmita um estado emocional a um público;
qualquer obra de arte tem de ser capaz de nos emocionar, e o artista é alguém que lida essencialmente com emoções;
as pessoas subscrevem implicitamente esta teoria quando criticam uma obra de arte por não as comover ou por as deixar indiferentes, sublinhando a íntima relação entre arte e emoção.
No caso de o examinando não concordar com a teoria expressivista da arte:
muitos artistas afirmam não ter tido a intenção de comunicar emoções nas suas obras;
há obras complexas, como algumas obras de ficção, em que diferentes personagens geram diferentes tipos de emoções nas pessoas, sendo implausível que o autor tenha experimentado todas essas emoções;
os artistas e o seu público não têm de partilhar um estado emocional; por exemplo, muitos atores estão mais preocupados em gerar uma certa emoção no público do que em sentir genuinamente essa emoção;
despertar emoções pode ser uma questão de usar as formas adequadas, sem que o artista precise de sentir essas emoções; por exemplo, um escritor de livros de terror pode não ter sentido terror, mas saber como causá-lo nos leitores por meio das formas literárias adequadas a esse fim;
a definição de arte como expressão é demasiado restritiva, excluindo da arte um vasto conjunto de obras geralmente aceites como tal, como é o caso, por exemplo, de obras de arte conceptual.



segunda-feira, 15 de junho de 2015

A experiência religiosa




Se a cada coisa que há um deus compete,
Porque não haverá de mim um deus?
Porque o não serei eu?
É em mim que o Deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.

12-1931
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 138.







A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER

No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra

José Tolentino Mendonça, 1990.
Escutar o poema aqui.








DESFECHO

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
( a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Miguel Torga, Câmara Ardente, 1962.







ESCUTO

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967







Análise e compreensão da experiência religiosa

Muitas pessoas – filósofos, teólogos e cientistas – afirmam que temos bons argumentos a favor da existência de Deus: uns defendem que a própria ideia de Deus implica a sua existência; outros sustentam que tem de haver uma causa para o Universo e que essa causa só pode ser Deus; outros, ainda, alegam que a ordem que encontramos na natureza não pode ser fruto do acaso e que Deus é a melhor explicação para essa ordem; e há quem considere outros argumentos.

Será que a existência de Deus pode ser provada?
Na sua resposta, considere o argumento (ou prova) que estudou a favor da existência de Deus e:
– identifique, referindo o seu nome, esse argumento (ou prova) a favor da existência de Deus;
– apresente inequivocamente a sua posição;
– argumente a favor da sua posição.



Cenário de resposta

A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Identificação do argumento:
− argumento ontológico OU argumento cosmológico OU argumento do desígnio.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à possibilidade de provar a existência de Deus.
Justificação da posição defendida:
No caso de o examinando, apoiando-se no argumento ontológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
podemos conceber o maior ser possível (o ser mais perfeito);
o maior ser possível (o ser mais perfeito) não seria o maior (o mais perfeito) se existisse apenas no pensamento, pois qualquer ser que existisse no pensamento e também na realidade teria algo de que o maior ser (o mais perfeito) careceria, o que seria contraditório;
logo, o maior ser possível (o ser mais perfeito) – que é Deus – tem de existir na realidade e não apenas no pensamento.

No caso de o examinando, apoiando-se no argumento cosmológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
qualquer acontecimento no mundo é causado por algo e nada é causa de si mesmo;
se a ordem causal regredisse infinitamente, então não existiria uma causa primeira;
mas, se não existisse uma causa primeira, também não existiriam as causas subsequentes; porém, essas causas existem;
logo, tem de existir uma causa primeira que não faz parte do mundo (que é transcendente) e que é a fonte de todas as causas – essa causa não causada (e transcendente) só pode ser Deus.

− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento do desígnio, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
os relógios têm características complexas – consistem em partes (cada uma com uma função) que funcionam em conjunto, com um propósito específico;
nada do que conhecemos e que exibe estas características é fruto do acaso, tendo sido sempre intencionalmente concebido por algum autor inteligente;
a natureza é, como os relógios, constituída por partes que funcionam em conjunto, mas de uma forma ainda mais complexa;
logo, a natureza não é fruto do acaso e teve também de ser intencionalmente concebida por um autor; esse autor superiormente inteligente é Deus.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento ontológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
tal como da ideia de uma ilha perfeita não se segue que essa ilha tenha de existir, também da ideia de Deus como um ser perfeito não se segue que ele tenha de existir;
é ilegítimo pretender provar questões de facto por meio de argumentos a priori, pois o que concebemos como existente pode também ser concebido como não existente, sem que isso implique contradição;
o argumento é circular, porque a definição de Deus contém implicitamente, desde o início, o pressuposto de que ele existe necessariamente.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento cosmológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
tal como pode haver uma longa cadeia finita de causas que, para subsistir, precisaria de uma primeira causa, também pode haver uma cadeia infinita de causas que, para subsistir, não requer uma primeira causa;
o Universo, e não Deus, poderia ser a exceção ao princípio de que tudo tem uma causa, existindo simplesmente e, portanto, não exigindo uma explicação adicional para a sua existência;
(o argumento incorre na falácia da composição, na medida em que) não é porque cada acontecimento tem uma causa que toda a cadeia de acontecimentos tem igualmente uma causa, ou seja, da premissa de que todos os acontecimentos têm uma causa não se segue que há uma causa para toda a cadeia de acontecimentos.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento do desígnio, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
a analogia entre os relógios e o Universo é fraca, pois aprendemos aquilo que sabemos sobre a origem dos relógios observando muitos relógios e também a sua produção pelos relojoeiros; em contrapartida, nunca observamos diferentes universos, visto haver apenas um, nem observamos a sua produção;
a ordem do Universo pode ter surgido por um longo processo de adaptação e de seleção natural;
o argumento não prova a existência de um ser perfeito, mas, no melhor dos casos, de um ser imensamente poderoso, imensamente inteligente, livre e racional.




Poderá também gostar de ler:

Nem sei porque ainda falo em Deus.
Se de mim me afasto e obedeço ao mundo
– traz ele consigo um sonho para levedar
na perspicácia absorta de um farol de angústia –
e não concedo esperança ao que anda em mim
podendo ser volúpia da memória livre;
se Deus partiu para o limite da vida
quando olhámos ambos a realidade das coisas;
se não existe uma barca onde o rumo se invente,
embora as pontes sejam dessas barcas;
se onde estiver um homem não estará outro homem.
Não sei, de facto, porque falo de Deus.


Jorge de Sena


Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa / sel. e pref. José Tolentino Mendonça, Pedro Mexia. 1a ed., reimp. Porto: Assírio & Alvim, 2014.  ISBN 978-972-37-1775-4.



Deus ainda é uma questão e merece uma antologia e um festival de poesia


A antologia de poesia portuguesa organizada por Pedro Mexia e Tolentino Mendonça lança a conversa na primeira edição de Carmina, encontros de poesia, esta sexta-feira e sábado, em Famalicão.
Pedro Mexia e Tolentino Mendonça começam por dizer que isto tem tudo para correr mal. Mas não podem estar realmente a falar a sério: ninguém organizaria uma antologia e a primeira edição de um encontro de dois dias dedicados à poesia, se não estivesse minimamente confiante. Começa esta sexta-feira a primeira edição de Carmina, o encontro de poesia da Fundação Cupertino de Miranda em parceria com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, coordenado por estes dois poetas. Os dois lançam agora Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa, uma antologia de poesia que dá o mote ao evento.
No ano em que a Fundação Cupertino de Miranda comemora 50 anos, a instituição estreia o festival de poesia que quer repetir de dois em dois anos. “Queremos olhar para trás, fazer o balanço de todos estes anos, mas sobretudo olhar para a frente. A fundação sempre esteve ligada à poesia e esta é uma forma de continuar a estar”, disse Pedro Álvares Ribeiro, presidente da fundação na apresentação do evento aos jornalistas.
Para a fundação, a poesia é uma “área diferenciadora de produção”, nas palavras do seu presidente, e têm tentado mostrá-lo nos Encontros Cesariny, que completaram no ano passado sete edições – a fundação detém parte do espólio do surrealista –, ou nas iniciativas com poesia dita em locais públicos que se iniciaram há cinco anos, conta António Gonçalves da Costa, director artístico da fundação.
Com Carmina, a palavra latina que define a poesia como alguma coisa entre o pagão e o religioso, a ideia é “ir além do que são habitualmente os festivais de poesia, em que apenas se ouve dizer poesia”, explica o director artístico da fundação.
Sexta-feira, o festival abre com às 10h com uma conversa entre Pedro Mexia e Tolentino Mendonça sobre “Deus como interrogação na poesia portuguesa", tema desta edição, e a programação continua com questões como "A poesia cabe dentro das antologias? Não. Então porque se fazem?" ou "À poesia o que é da poesia, a Deus o que é de Deus" em que participam autores como Rui Laje, Fernando J.B. Martinho ou Maria João Reynaud. Pelo meio, há a conferência do brasileiro Alex Villas Boas que explica "A interrogação de Deus na poesia brasileira" e sábado estão presentes os poetas Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão e Fernando Echevarría para uma mesa-redonda com os antologistas Pedro Mexia e Tolentino Mendonça. Não se esquecem as habituais iniciativas de poesia dita na rua, que acontecem nestes dois dias no jardim da fundação e no parque da cidade.
O ponto de partida para esta programação é a antologia com o mesmo tema e chancela da Assírio & Alvim – a editora criou uma edição em que a capa é o cartaz de Carmina e outra para ser vendida nas livrarias. O objectivo é que em cada uma das futuras edições se organize uma publicação antes do evento para que ela dê origem às conversas. “Uma coisa que devia ser habitual no nosso quotidiano: fazer e depois discutir”, diz Tolentino Mendonça.
Mas afinal tem tudo para correr mal? “Uma antologia deste tipo tem tudo para desagradar aos dois lados da barricada”, explica Pedro Mexia, “quem chega à antologia porque se questiona sobre Deus só encontra poesia e quem chega por causa da poesia pode não estar interessado em Deus.” Na Explicação que abre o livro há espaço para explicar melhor: os dois antologistas reconhecem a resistência tradicional destes dois mundos um face ao outro. Se, por um lado, citam o poeta Gottfried Benn, que diz que “Deus é um mau princípio estilístico” e são tentados a concluir que “as convicções religiosas são incompatíveis com a boa poesia”, por outro, lembram “o divórcio que na prática se veio a instalar entre religião e artes”, porque “a arte é um princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé”, ou melhor, “à poesia opõe-se o único factor decisivo: a verdade”.
Ultrapassando esta aparente oposição entre arte e religião – que no prefácio é resolvida com uma frase de Bento XVI sobre a importância do belo –, esta antologia era uma “lacuna no mercado português”, diz Pedro Mexia. Não existia uma recolha de poesia religiosa, sendo “a relação com Deus essencial na poesia portuguesa do século XX”, diz. Vêm à cabeça os exemplos evidentes, acrescenta o antologista, de Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner ou Eugénio de Andrade, e surge a pergunta: o que foi escrito para além das suas obras e do seu tempo? Nesta antologia, apenas Carlos Poças Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria nasceram na segunda metade do século XX. Com movimentos como o surrealista, a Poesia 61 ou a poesia experimental houve um desinteresse por esta questão.
“O facto de haver poucos poetas a tratar agora esta questão mostra como ela não é do nosso tempo, parece não ser pertinente para nós”, diz Pedro Mexia, para mostrar como este tema pode ser uma não questão para muita gente, sobretudo nos últimos 40 anos. “São caminhos mais silenciosos, mas não menos relevantes”, diz Tolentino Mendonça, padre e poeta. “As antologias de poesia são documentos sociológicos sobre um país. Antologias anuais de poesia são importantes documentos sociológicos”, completa.
Em Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa procuraram essa actualidade e definiram desde o início que queriam começar e acabar com “dois grandes poetas”, diz Mexia: Vitorino Nemésio (1901-1978) abre o livro e para fechar Daniel Faria (1971-1999). Pelo meio, outros 11 poetas estão presentes não apenas porque tocam este tema – “Não incluímos ninguém que não incluíssemos numa antologia de poesia”, conta –, mas porque têm qualidade para integrar qualquer antologia.
No processo de selecção, que partiu de uma long list para um grupo de 20 e finalmente para os 13 autores escolhidos, houve surpresas para os próprios autores, como a de Jorge de Sena, “que nem sequer estava na long list”, confessa Pedro Mexia. Mais do que uma pessoa recomendou que lessem a obra dos seus primeiros anos, entre 1930 e 1940. Descobriram um homem “em luta com Deus”, escrevem no prefácio, “um agnóstico à beira da crença e do ateísmo”.
De fora ficaram aqueles em que Deus aparece como uma referência a um determinado imaginário, “um aspecto quase folclórico”, lê-se no livro, em vez de ser uma interrogação, “um assunto íntimo e grave”. “Pode haver quem estranhe a ausência de Miguel Torga ou de José Régio”, lembra Pedro Mexia. Mas aí, concordam os dois responsáveis pela selecção, o gosto dos antologistas “é sempre um bom critério”.
 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/deus-ainda-e-uma-questao-e-merece-uma-antologia-e-um-festival-de-poesia-1662228





CRÍTICA

Atravessar a lâmina das águas


O trânsito entre Deus e os poetas portugueses — de Vitorino Nemésio a Daniel Faria — numa antologia equilibrada e significativa


Cronologicamente, Vitorino Nemésio é o autor que abre esta antologia — um autor de profundas inquietações religiosas

Verbo — Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa não tem antecedentes próximos. Não se pode dizer que haja entre nós uma linhagem consolidada de antologias com um nível qualitativo firme e ininterrupto, criadoras de uma imagem satisfatória da nossa poesia. Se há títulos que podem fazer supor o contrário, parece legítimo ver neles menos a peça de um processo geral coerente, gerador de nexos aproveitáveis, do que um episódio raro. O sentimento geral é de deslaçamento e incompletude. Decerto por infrequência, e nem sempre por falta de valor de alguns desses esforços. Diferentemente, uma poesia como, por exemplo, a britânica materializou uma tradição contínua e válida por meio de um conjunto de antologias — abrangentes ou restritas, mas, genericamente, de elevado valor documental e poético — que formam hoje um panorama ponderado e lúcido. Mesmo numa área tão específica como a religião: The Faber Book of Religious Verse (1972), editado por Helen Gardner; The New Oxford Book of Christian Verse (1981), por Donald Davie (Lord David Cecil organizara, em 1940, The Oxford Book of Christian Verse); The Penguin Book of English Christian Verse (1984), a cargo de Peter Levi. Meros exemplos, longe de exaustivos, mas que indiciam um contraste nítido face ao caso português. No nosso país, ressalvando iniciativas de carácter confessional, as experiências antológicas dedicadas a esta área cingem-se praticamente à colaboração entre José Régio e Alberto Serpa — Na Mão de Deus: Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa (1958) — e à recolha de Guilherme de Faria, editada postumamente — Antologia de Poesias Religiosas (1947). Note-se, a título exemplificativo, que neste volume as últimas entradas se cifram em composições de António Nobre e do próprio Faria, desaparecido em 1929 (a que se seguem, a fechar, Cantigas Populares).
É claro que, com o que se tentou apresentar, não se pretendia obliterar um quadro geral marcado pela insuficiência na edição de antologias, quer específicas, quer generalistas — mas tais considerações não cabem no âmbito deste texto, que, de resto, já se alargou perigosamente.
Tendo em conta o quadro traçado, falta-nos, perante uma antologia como a que organizaram José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, a jurisprudência que nos permitiria estabelecer comparações e tecer juízos mais robustos. Verbo terá, portanto, de ser analisada por si só. Trata-se de uma antologia temática, de âmbito temporal preciso, que se inscreve numa orientação cultural circunscrita e maioritária, de matriz cristã. É possível debater se tal posição — unívoca, do ponto de vista da orientação religiosa — é ou não defensável. Contudo, colhendo o seu título no primeiro versículo do Evangelho segundo São João — “No princípio era o Verbo” —, esta antologia define claramente os seus limites e as possibilidades do seu conteúdo. Os organizadores não terão querido enjeitar o significado mais profundo daquela noção, enquanto Logos, isto é: Deus-filho, na tradição do Novo Testamento. Como não terão esquecido, igualmente, que logos é, em paralelo a essa acepção, e além do contexto religioso, “palavra”, “discurso”, mas também “razão”. Talvez importe lembrar que de logos derivam formas lexicais com o sentido de “falar”, ou “colher palavras”. A relação com a poesia que esses sentidos possibilitam abre caminhos não limitados a uma aceitação contemplativa. Talvez nesse sentido Mexia e Tolentino Mendonça falem de um “modo interrogativo” (p. 13). Devido aos contornos que apresenta, esta obra fixa limites especialmente precisos, em cujas extremidades se encontram Vitorino Nemésio e Daniel Faria. O que automaticamente exclui a tradição pré-moderna, ao contrário do que acontecia nas antologias antes referidas — e os organizadores não escamoteiam o facto de “a questão de Deus” [ser] inexistente ou ocasional no primeiro modernismo” (p. 10) —, e poetas nascidos após 1971.
Pensando nos autores recolhidos em Verbo, deve referir-se Vitorino Nemésio. Ao escolhê-lo para abrir a sua antologia, os responsáveis optaram por um dos nomes que mais ajudaram a definir a moderna poesia portuguesa, e no âmbito temático aqui em causa, um escritor de profundas inquietações. Lembre-se um título como O Verbo e a Morte (1959), e o poema epónimo, incluído na presente antologia — “Então Deus é o Tu na face,/ O que nos deixa ser em frente,/ Como se assim recuperasse/ Meu eu sem área, eu morto, eu mesmo,/ Que me assumi na face morta” (p. 32). Poderia ainda invocar-seO Verbo, de Carlos Poças Falcão — “Ser o verbo certo, essa volúpia/ como uma roseira, a posição sentada ou uma casa/ de pedra e de madeira. (…) verbos que procuram leveza e exactidão” (p. 176). Um exemplo, este último, que elucida a dimensão dúctil do logos. Enquanto mediador entre sujeito e objecto, instrumento para dizer o mundo, e como ligação ao divino. Eis uma das vias por onde caminha esta poesia.
Mas esse não é um caminho exclusivo. Ruy Cinatti, por exemplo, de quem foi opção avisada privilegiar os livros póstumos, é um exemplo de como o tratamento da matéria religiosa pode ser outra coisa que não reverência ou ortodoxia — “Consummatum est,/ e eu me consumo/ acervo de unhas que me dilaceram/ e eu estacado/ perfil — homem de figura,/ mas assombrado” (p. 50). Poucas vezes a poesia portuguesa terá alcançado dirigir-se a Deus de forma ao mesmo tempo tão pungente e conseguida do ponto de vista expressivo. A propósito de Ruy Belo, Joaquim Manuel Magalhães destacou a “afirmação na dúvida”. A sua poesia, que é um dos lugares mais tensos e conturbados da relação com Deus, mas também dos mais congruentes — Joaquim Manuel Magalhães falou da “poesia de um homem religioso até ao fim” —, afirma-se numa luta, a certa altura num desvio (é conhecida a questão da minúscula da palavra “deus”), mas sempre numa relação proveitosa para os seus versos — “mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus” (p. 141). Na impossibilidade de expor detidamente todos os poetas incluídos, o mais tentador (motejo não intencional) seria referir Adília Lopes. Se num dos seus poemas escreve “Deus é a nossa/ mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos fora/ como a fé/ porque achamos/ que é pirosa” (p. 195), podíamos ser levados a quedar-nos apenas na aparente iconoclastia; mas também seria possível recordar S. Paulo (Romanos, 1:16-17), quando este diz: “Na verdade, eu não me envergonho do evangelho” (curiosamente, a Vulgata diz “non erubesco”, ou seja “não coro” [de vergonha]). Nem o acaso nem o descaso parecem ter passado por aqui.
Dos poetas incluídos em Verbo, alguns são fundamentais — Nemésio, Sena, Sophia, Ruy Belo ou Armando Silva Carvalho —; outros são autores de primeira linha — Ruy Cinatti, Carlos Poças Falcão —, mas, no cômputo geral, o conjunto é equilibrado. Demarcados pelo tema e pela fronteira cronológica estabelecida, os 13 autores convocados para Verbo (incluindo, além dos já referidos, Fernando Echevarría, José Bento, Cristovam Pavia e Pedro Tamen) não se subordinam a qualquer deliberado simbolismo numérico, mas surgem em consequência de critérios que salientam o carácter significativo e questionador do divino nas suas poesias.
 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/atravessar-a-lamina-das-aguas-1667776

terça-feira, 9 de junho de 2015

Se estou só, quero não estar, Fernando Pessoa









5





10


Se estou só, quero não ‘star,
Se não ‘stou, quero ‘star só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.

 

2-7-1931

Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

 


Linhas de leitura do poema “Se estou só, quero não ‘star”, de Fernando Pessoa

  • Tema: busca incessante do “eu”; inconformismo do “eu”; insatisfação do “eu”.

 

  • Na primeira quadra, o sujeito poético está inquieto porque não se sente bem seja só, seja acompanhado: quando está só, deseja ter companhia; quando está com os outros, deseja estar só, o que o leva a concluir (“Enfim”) que quer sempre estar como não está.

 

  • Na segunda quadra, considera que para ser feliz tem de deixar de ser ele próprio (“eu”) para passar a ser outra pessoa (“aquele”); mas, no fundo, o outro não é feliz porque não é ele que sente essa felicidade.

 

  • Na terceira quadra, o sujeito poético parece advertir para a possibilidade de se ficar “perdido na estrada” (perdido na vida), caso se deixe de fazer o que se quer daquilo que não é nada. «Fica perdido na estrada» o que não sabe o que fazer à vida, o que com ela se relaciona mal.

 

Intertextualidade

Ouve a canção «Estou Além», do primeiro disco de António Variações, editado em formato single e maxi-single, em 1982:



Este sentimento de descontentamento constante traduz-se, no ser humano, em angústia e desalento, o que é claramente negativo. Porém, esta insatisfação também poderá, positivamente, ser o motor de mudanças e avanços que fogem ao conformismo e acomodamento relativamente ao já conhecido.

 

Assinala o único elemento que não é comum entre a letra da canção «Estou Além» (de António Variações) e o poema «Se estou só, quero não 'star» (de Fernando Pessoa):

a) Conflito interior

b) Instabilidade emocional

c) Insatisfação

d) Solidão

e) Angústia existencial

 

Resposta: d)

Bibliografia: Entre Palavras - Português 9.º Ano, António Vilas-Boas e Manuel Vieira, Sebenta, 2013; Letras & Companhia - Português 9.º Ano, Carla Marques e Inês Silva, Edições Asa, 2013; (Para)Textos - Português 9.º Ano, Ana Paiva et alii, Porto Editora, 2013.

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 


 


“Se estou só, quero não estar, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/ser-aquele.html