A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia
Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra
A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada
Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa
Por companheira tenho
A voz da guitarra
E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada
E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada
Sophia de Mello Breyner Andresen
QUESTIONÁRIO: Refira dois dos traços
que contribuem para a humanização da música nas cinco primeiras estrofes do poema,
apresentando transcrições que comprovem a sua resposta.
A humanização da música decorre de vários aspetos,
nomeadamente do facto de esta:
– estar associada a vivências subjetivas do ser humano
− «Povoa este deserto» (v. 2);
– ser indissociável da identidade do ser humano − «A
música do ser / Interior ao silêncio / Cria seu próprio tempo / Que me dá
morada» (vv. 8-11);
– possuir uma voz que é companheira do «eu» poético −
«Palavras silabadas / Vêm uma a uma / Na voz da guitarra» (vv. 5-7); «Por
companheira tenho / A voz da guitarra» (vv. 15-16).
Explicite a importância
da música na construção da identidade do «eu», de acordo com o conteúdo das duas
últimas estrofes.
A música é fundamental na construção da identidade do
«eu», na medida em que:
– tem o poder de conferir unidade ao «eu» poético – «O
canto me reúne» (v. 18); «E agora de mim / Não me separa nada» (vv. 21-22);
– potencia o reencontro com um tempo primordial e puro
– «De muito longe venho / Pelo canto chamada» (vv. 19-20); «Num silêncio de
areia / Que não foi pisada» (vv. 26-27).
Exame Nacional de Português,
12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). IAVE, 2015,
1ª fase. Prova 639 e critériosde classificação.
SOPHIA
E O FIO DE SÍLABAS
A poesia de Sophia sabe que as coisas
do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras ‑ porque a palavra isolada
não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa
a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o
caos sempre ameaça emergir.
Em contrapartida, as sílabas
ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por
isso, produz discurso não palavras, mas versos: "O meu viver escuta / A
frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua
escrita" (Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética
III, p. 89). Como é dito no poema "Bach Segóvia Guitarra", "Palavras silabadas / Vêm uma a
uma", e só a silabação traduz "A música do ser" (Idem, p. 33). Digamos, então,
que as sílabas são a matéria que permite encontrar "(...) a ordem intacta do
mundo / A palavra não ouvida" (Idem, p. 67), e que esta é sempre relacional e
rítmica.
Em absoluta concordância com esta
perspetiva, o poeta é "um escutador", e "fazer versos é estar
atento", "[d]eixar que o poema se diga por si" (Idem, "Arte
Poética IV", Dual, Obra Poética III, pp. 166-7), ou seja, ouvir as
frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza
a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os
sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem
a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e
humanamente "feita", a ordem do poema é também, e sem contradição, "escutada"
como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.
«Esta voz nenhuma
disciplina a domina... ela é a voz do mundo: CANTO. Ela é o poema do Ser no
sentido em que ela está para além de nós mesmos, no sentido em que o homem é
este poema que o Ser começou...» (Daniel Charles, Les Temps de la Voix. Paris, Ed. Universitaires J. P.
Delarge 1978).
Assim quando Daniel
Charles diz: «Todos os homens têm uma voz, isto é, escutam o Ser», é legítimo
considerar que não se trata aqui da escuta feita através do órgão auditivo mas
sim da escuta que se realiza através do instrumento CORPO, que ele é
simultaneamente aquilo que escuta e que é escutado e que a VOZ é a
materialização dessa mesma escuta.
Teremos assim como
hipótese possível que a voz é uma representação daquilo que tem de mais
essencial o produto da vibração do corpo total, físico e psíquico posto
em condições de disponibilidade e ativação que lhe permitem captar a vibração
exterior com a qual o seu íntimo se encontra em sintonia, o que não exclui o
processo inverso. Daí que, ao falar-se de voz se refira uma emissão sonora produzida
por um ser global, recetor e transmissor, estando implicadas neste fenómeno
vibratório todas as capacidades do ser que pensa, age, goza e ainda não perdeu
o sentido de humor que o impele a comunicar com os outros.
A complexidade deste
fenómeno natural é, simultaneamente, a realidade que nos obriga a avaliar
quanto de animal - porque de corporal e intuitivo - quanto de psíquico e mental
ele implica o que por si só chega para estabelecer as normas do relacionamento
entre aquele que procura encontrar a sua autêntica voz e aquele que crê poder
lançar algumas pistas nessa procura. […]
«… a verdadeira música do
Ser não existe ainda porque nós estamos em vias de a compor» (Daniel Charles).
“A voz – sinal do ser”, ensaio de Maria João Serrão com
citações de Daniel Charles. In:Conservatório Nacional-150 Anos de Ensino
de Teatro, edição do Centro de Documentação e Investigação Teatral da Escola
Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, 1987, pp.103-108; in: Revista da A.P.E.M. -
Associação Portuguesa de Educação Musical, Boletim nº. 53, Abril/Junho 1987,
pp.10-12.
OPINIÃO
As aventuras de Sophia na
pátria dos examinadores Estes poetas dão cabo da cabeça dos
alunos com tantas metáforas.
O poema de Sophia de Mello Breyner
Andresen que era objecto de duas perguntas que formavam um item da Prova
Escrita de Português do 12.º Ano chama-se “Bach Segóvia Guitarra” e começa
assim: “A música do ser/ Povoa este deserto/ Com sua guitarra/ Ou com
harpas de areia// Palavras silabadas/ Vêm uma a uma/ Na voz da guitarra// A
música do ser/ Interior ao silêncio/ Cria seu próprio tempo/ Que me dá morada”.
Como trabalho de interpretação
solicitava-se aos alunos que referissem “dois traços que contribuem para a
humanização da música” (alínea 4) e que explicitassem “a importância da música
na construção da identidade do ‘eu’” (alínea 5).
Até um leitor sem treino na leitura da
poesia de Sophia tem boas razões para se interrogar onde foram os autores da
prova encontrar sentidos explícitos ou implícitos que autorizem a interpretação
formulada como “humanização da música”. Sabendo nós que as coisas da literatura
servem, não apenas na escola, para ministrar lições de humanismo, intuímos que
os examinadores leram no “ser de “a música do ser” nada mais nada menos do que
o ser humano. Confirmamos que a nossa intuição estava correcta quando lemos o
“cenário de resposta” que é apresentado nos “critérios de classificação”: “A
humanização da música decorre (…) do facto de esta estar associada a vivências
subjectivas do ser humano” e, além disso, de “ser indissociável da identidade
do ser humano”. Assim, onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem
imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não
pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a
principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que
desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde
Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não
saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um
poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico,
aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com
base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser
considerado correcto se deturpar completamente o poema.
A “música do ser” evoca um tópico
fundamental na poesia de Sophia. Trata-se de uma ideia de poesia como escuta
das coisas essenciais, primordiais. A “música do ser” advém da procura da
“ordem intacta do mundo”, da perfeição, da totalidade, da pureza e da harmonia.
E esse mundo é mais povoado por deuses do que por homens. Daí o fascínio de
Sophia pela Grécia clássica; O “ser”, aqui, nada tem a ver com o “ser humano”,
é a veemência e a verdade das coisas, de onde Sophia sempre quis extrair um
“poema imanente”. Podemos ler no final de um poema chamado “Sua Beleza” (de O
Nome das Coisas): “Prometo um mundo mais inteiro e mais real/ Como
pátria do ser”. E lemos também na sua “Arte Poética II”: “A poesia
não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser
(...) A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as
coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”.
Trazer para aqui qualquer questão relacionada com a “humanização” e “vivências
subjectivas do ser humano” é deturpar o poema de maneira grosseira e reduzi-lo
a lugares-comuns que não dizem nada sobre ele, mas dizem muito sobre a ideia
que os examinadores têm da poesia. Ler o poema a partir de chaves como a das
“vivências subjectivas” e de identidades leva o poema de Sophia para
territórios de onde a autora se afastou radicalmente. A sua poesia é a busca de
uma palavra impessoal e implica a despersonalização. Ela é completamente
estranha a essa forma de subjectividade, de expressão e de identidade que os
examinadores pressupõem. Por isso é que o mito da Musa é tão importante na sua
obra. A poesia como invenção das Musas significa que o poeta é fiel a uma
inspiração musical, a uma palavra que tem uma relação com o ser enquanto
verdade. “A música do ser” é algo consubstancial à própria poesia porque o
poema é canto, e a música é a arte das Musas. Fazer de tudo isto matéria de
“vivências subjectivas” e querer que os alunos identifiquem aqui a construção
de uma identidade é como falar em bugalhos quando o poeta fala em alhos. Que
inanidades terão os alunos que papaguear para estarem conformes ao “cenário de
resposta” e coincidirem com os critérios de classificação? E quem não responder
de maneira acertada é porque não está à altura das exigências interpretativas
dos examinadores ou porque foi confrontado com uma missão impossível?
E, sobre isto, o que diz a “Associação
de Professores de Português”? Que “as duas questões apresentadas, também
coerentemente elaboradas, obrigavam a que o examinando assimilasse toda a
linguagem metafórica aí existente, exigindo, de novo, grande concentração”.
Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas. Ainda bem que
os examinadores têm à sua disposição um bom dicionário de metáforas que
facultaram amigavelmente à Associação de Professores de Português.
Analisar a poesia em
exame nacional ou como deturpar um poema
O ser da poesia nada tem que ver,
em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a
questão é grave.
Para quem tenha lido o que António Guerreiro
escreveu no PÚBLICO, “As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores”, na
edição de 19 de Junho, sexta-feira, espanta que a lucidez desse artigo colida
com a inanidade das declarações de Edviges Ferreira, presidente da Associação
de Professores de Português, segundo a qual o poema de Sophia exigia “grande
concentração”. Que significará, na semântica de Edviges, “grande concentração”?
De facto, quer para quem faz os exames, quer
para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe
que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser
avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos
examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António
Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores
lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”,
substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e
Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo
que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos
desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não
saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um
poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico,
aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com
base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser
considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos
questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano
lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões
várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
O problema reside, a meu ver, numa questão de
didáctica e de pedagogia do texto literário. É impossível facultar aos alunos,
com leitura metódica efectiva, todos os poemas seja de que poeta for. As razões
são de ordem prática: ao elaborar-se um programa escolar selecionam-se textos
segundo um critério de qualidade e, assim sendo, que outro poema de Sophia
mereceria ser analisado em Exame? Por acaso “Arte Poética II” não deveria ser
texto obrigatório a constar nos manuais de Português do 10.º ano? Poema sobre a
poesia, aí se explica por que razão a poesia é uma “arte do ser” e, como bem
viu Guerreiro, o ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os
cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave:
segundo os critérios, os alunos terão de dar uma resposta errada para terem
certo este item do exame. Se os examinadores lessem o artigo de António
Guerreiro chegariam a uma conclusão simples: qualquer que seja a resposta dada
pelos alunos terá de ter cotação máxima no conteúdo, uma vez que a própria
proposta de cenário é um erro crasso por parte dos que conceberam as questões e
os respectivos cenários. E a questão, que lateralmente Guerreiro convoca, é
mesmo a de dar, para o Exame Nacional desta disciplina, noções de poética dos
autores que constam do programa. Noções de poética, isto é, as coordenadas
gerais de determinada obra de dado autor, em função do contexto de produção e
da comunidade interliterária a que esse autor pertence. A esta luz pode o
professor escolher textos que não estão nos manuais – pode e deve fazer das
aulas exercícios de leitura contrastiva/comparativa, facultando aos alunos
alguma crítica literária, sem cuja leitura os alunos não conseguem apropriar-se
do registo científico que, à saída do Ensino Secundário, deveriam dominar.
Em função de uma “pedagogia da admiração”
(assim defende Helena Buescu) essas coordenadas de leitura conduziriam, seja em
face de que poema for, a um comentário centrado na linguagem do texto em
presença, e não em lugares-comuns e leituras superficiais, que é justamente o
que os cenários de resposta são. A leitura do texto poético exige, de facto,
“grande concentração”, como sabiamente diz Edviges, mas essa concentração
deriva de um saber literário que, na relação pedagógica, se transfere do
professor para o aluno, consolidando – através da escrita – a capacidade da
leitura inferencial. Isso exige questionários que não corrompam os textos
literários, algo que, no limite, implicaria que os fazedores dos exames
soubessem que a ideia de ser em Sophia não autoriza as perguntas propostas.
Já em 2012, António Guerreiro afirmava o
seguinte: “Trata-se sempre de perguntas que não convidam o aluno a ler e a
interpretar, mas a repetir leituras e interpretações que lhe foram fornecidas.
[...] Algum examinando que se desloque ligeiramente em relação ao "cenário
de resposta" pode provocar cataclismos em cadeia: em primeiro lugar,
afasta-se dos "critérios específicos de classificação [...]" o que
significa fugir do horizonte dos "descritores do nível de desempenho no
domínio específico da língua”“. Assim se desautorizam os professores quanto à
sua liberdade para corrigir, em função da análise que os estudantes fazem, a
expressão escrita e a capacidade inferencial de quem vai a Exame. E assim o
acto de ensinar se tem vindo a transformar em corrupção do que, idealmente, o
ensino deveria ser – nomeadamente o ensino do Português –, a saber: acto
crítico, de verdadeiro rigor, não porque se queira fazer um exame infalível
numa disciplina que, porque lida com a linguagem, não pode ser idêntica às
matemáticas ou químicas, mas de rigor porque não se pode propor como cenário de
resposta correcto o que o poema, neste caso de Sophia, jamais diz. Isso é falta
de rigor, Senhores Examinadores. Por muito que mascarem com níveis de
desempenho o absurdo dos cenários de resposta que propõem, esses cenários é que
são propostas de correcção verdadeiramente subjectivas, feitas, afinal de
contas, por quem nunca se deu ao trabalho de ler, para saber o “como diz” da
poesia, Ser e Tempo, de Heidegger… E aqui, pergunte-se, como podem
os professores de Português aceitar semelhantes dislates e idiotices por parte
do IAVE?
Pormenor de Ofélia, 1851–1852, John Everett Millais
A seguinte
estrofe do poema Gozo e Dor, de Almeida Garrett, é um exemplo de
que a arte transmite sentimentos.
Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
Será que toda a arte transmite sentimentos?
Na sua
resposta:
–
identifique, referindo o seu nome, a teoria da arte segundo a qual toda a arte
transmite sentimentos;
– apresente
inequivocamente a sua posição;
– argumente
a favor da sua posição.
Cenário de resposta
A resposta
integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Identificação
da teoria da arte segundo a qual toda a arte transmite sentimentos:
− teoria
expressivista da arte OU teoria da arte como expressão.
Apresentação
inequívoca de uma posição de concordância, total ou parcial, ou de
discordância, total ou parcial, relativamente à teoria expressivista da arte.
Justificação
da posição defendida:
− No caso de
o examinando concordar com a teoria expressivista da arte:
• a arte é uma expressão intencional de
emoções sentidas pelo artista, as quais são clarificadas e transmitidas a um
público por meio de linhas, cores, ações, palavras ou sons;
• para algo ser uma obra de arte, é
necessário que o artista sinta, clarifique e transmita um estado emocional a um
público;
• qualquer obra de arte tem de ser
capaz de nos emocionar, e o artista é alguém que lida essencialmente com
emoções;
• as pessoas subscrevem implicitamente
esta teoria quando criticam uma obra de arte por não as comover ou por as deixar
indiferentes, sublinhando a íntima relação entre arte e emoção.
− No caso de o
examinando não concordar com a teoria expressivista da arte:
• muitos artistas afirmam não ter tido
a intenção de comunicar emoções nas suas obras;
• há obras complexas, como algumas
obras de ficção, em que diferentes personagens geram diferentes tipos de
emoções nas pessoas, sendo implausível que o autor tenha experimentado todas
essas emoções;
• os artistas e o seu público não têm
de partilhar um estado emocional; por exemplo, muitos atores estão mais
preocupados em gerar uma certa emoção no público do que em sentir genuinamente
essa emoção;
• despertar emoções pode ser uma
questão de usar as formas adequadas, sem que o artista precise de sentir essas
emoções; por exemplo, um escritor de livros de terror pode não ter sentido
terror, mas saber como causá-lo nos leitores por meio das formas literárias
adequadas a esse fim;
• a definição de arte como expressão é
demasiado restritiva, excluindo da arte um vasto conjunto de obras geralmente
aceites como tal, como é o caso, por exemplo, de obras de arte conceptual.
Se a cada coisa que há
um deus compete, Porque não haverá de mim um deus?
Porque o não serei eu?
É em mim que o Deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.
12-1931
Odes de
Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João
Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 138.
A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER No princípio era a ilha embora se diga o Espírito de Deus abraçava as águas
Nesse tempo estendia-me na terra para olhar as estrelas e não pensava que esses corpos de fogo pudessem ser perigosos
Nesse tempo marcava a latitude das estrelas ordenando berlindes sobre a erva
Não sabia que todo o poema é um tumulto que pode abalar a ordem do universo agora acredito
Eu era quase um anjo e escrevia relatórios precisos acerca do silêncio
Nesse tempo ainda era possível encontrar Deus pelos baldios
DESFECHO
Não tenho maispalavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu
pude combater
O terror de te
ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão
da caminhada,
Era certa a meu
lado
A divinapresençaimpertinente
Do teuvulto
calado
E paciente...
E lutei, comolutaum solitário
Quando alguémlhe
perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, armaquetunão usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na suamó
O joioamargo
do quete
dizia...
Agora somos doisobstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenasvão
a par na teimosia.
Miguel Torga, CâmaraArdente, 1962.
ESCUTO
Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967
Análise e compreensão da
experiência religiosa
Muitas pessoas – filósofos, teólogos e cientistas – afirmam
que temos bons argumentos a favor da existência de Deus: uns defendem que a
própria ideia de Deus implica a sua existência; outros sustentam que tem de haver
uma causa para o Universo e que essa causa só pode ser Deus; outros, ainda,
alegam que a ordem que encontramos na natureza não pode ser fruto do acaso e
que Deus é a melhor explicação para essa ordem; e há quem considere outros
argumentos.
Será que a existência de Deus pode ser provada?
Na sua resposta, considere o argumento (ou prova) que estudou
a favor da existência de Deus e:
– identifique, referindo o seu nome,
esse argumento (ou prova) a favor da existência de Deus;
– apresente inequivocamente a sua
posição;
– argumente a favor da sua posição.
Cenário de resposta
A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente
relevantes.
Identificação do argumento:
− argumento ontológico OU argumento cosmológico OU argumento
do desígnio.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total
ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à possibilidade
de provar a existência de Deus.
Justificação da posição defendida:
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento
ontológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• podemos conceber o maior ser possível
(o ser mais perfeito);
• o maior ser possível (o ser mais
perfeito) não seria o maior (o mais perfeito) se existisse apenas no pensamento,
pois qualquer ser que existisse no pensamento e também na realidade teria algo
de que o maior ser (o mais perfeito) careceria, o que seria contraditório;
• logo, o maior ser possível (o ser
mais perfeito) – que é Deus – tem de existir na realidade e não apenas no
pensamento.
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento
cosmológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• qualquer acontecimento no mundo é
causado por algo e nada é causa de si mesmo;
• se a ordem causal regredisse
infinitamente, então não existiria uma causa primeira;
• mas, se não existisse uma causa
primeira, também não existiriam as causas subsequentes; porém, essas causas existem;
• logo, tem de existir uma causa
primeira que não faz parte do mundo (que é transcendente) e que é a fonte de
todas as causas – essa causa não causada (e transcendente) só pode ser Deus.
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento do desígnio,
concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• os relógios têm características
complexas – consistem em partes (cada uma com uma função) que funcionam em
conjunto, com um propósito específico;
• nada do que conhecemos e que exibe
estas características é fruto do acaso, tendo sido sempre intencionalmente
concebido por algum autor inteligente;
• a natureza é, como os relógios,
constituída por partes que funcionam em conjunto, mas de uma forma ainda mais
complexa;
• logo, a natureza não é fruto do acaso
e teve também de ser intencionalmente concebida por um autor; esse autor
superiormente inteligente é Deus.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento ontológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• tal como da ideia de uma ilha
perfeita não se segue que essa ilha tenha de existir, também da ideia de Deus
como um ser perfeito não se segue que ele tenha de existir;
• é ilegítimo pretender provar questões
de facto por meio de argumentos a priori, pois o que concebemos como
existente pode também ser concebido como não existente, sem que isso implique
contradição;
• o argumento é circular, porque a
definição de Deus contém implicitamente, desde o início, o pressuposto de que
ele existe necessariamente.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento cosmológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• tal como pode haver uma longa cadeia
finita de causas que, para subsistir, precisaria de uma primeira causa, também
pode haver uma cadeia infinita de causas que, para subsistir, não requer uma
primeira causa;
• o Universo, e não Deus, poderia ser a
exceção ao princípio de que tudo tem uma causa, existindo simplesmente e,
portanto, não exigindo uma explicação adicional para a sua existência;
• (o argumento incorre na falácia da
composição, na medida em que) não é porque cada acontecimento tem uma causa que
toda a cadeia de acontecimentos tem igualmente uma causa, ou seja, da premissa de
que todos os acontecimentos têm uma causa não se segue que há uma causa para
toda a cadeia de acontecimentos.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento do desígnio, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• a analogia entre os relógios e o
Universo é fraca, pois aprendemos aquilo que sabemos sobre a origem dos
relógios observando muitos relógios e também a sua produção pelos relojoeiros;
em contrapartida, nunca observamos diferentes universos, visto haver apenas um,
nem observamos a sua produção;
• a ordem do Universo pode ter surgido
por um longo processo de adaptação e de seleção natural;
• o argumento não prova a existência de
um ser perfeito, mas, no melhor dos casos, de um ser imensamente poderoso,
imensamente inteligente, livre e racional.
Nem sei porque ainda
falo em Deus. Se de mim me afasto e
obedeço ao mundo
– traz ele consigo um sonho para levedar
na perspicácia absorta de um farol de angústia –
e não concedo esperança ao que anda em mim
podendo ser volúpia da memória livre;
se Deus partiu para o limite da vida
quando olhámos ambos a realidade das coisas;
se não existe uma barca onde o rumo se invente,
embora as pontes sejam dessas barcas;
se onde estiver um homem não estará outro homem.
Não sei, de facto, porque falo de Deus.
Jorge de Sena
Verbo: Deus como
interrogação na poesia portuguesa / sel. e pref. José Tolentino Mendonça, Pedro
Mexia. 1a ed., reimp. Porto: Assírio & Alvim, 2014.
ISBN 978-972-37-1775-4.
Deus ainda é uma questão e merece uma antologia e um festival de poesia
CATARINA MOURA
A antologia de poesia portuguesa organizada por Pedro Mexia e Tolentino Mendonça lança a conversa na primeira edição de Carmina, encontros de poesia, esta sexta-feira e sábado, em Famalicão.
Pedro Mexia e Tolentino Mendonça
começam por dizer que isto tem tudo para correr mal. Mas não podem estar
realmente a falar a sério: ninguém organizaria uma antologia e a primeira
edição de um encontro de dois dias dedicados à poesia, se não estivesse minimamente
confiante. Começa esta sexta-feira a primeira edição de Carmina, o encontro de
poesia da Fundação Cupertino de Miranda em parceria com a Câmara Municipal de
Vila Nova de Famalicão, coordenado por estes dois poetas. Os dois lançam agoraVerbo:
Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa, uma antologia de poesia que dá
o mote ao evento.
No ano em que a Fundação Cupertino de
Miranda comemora 50 anos, a instituição estreia o festival de poesia que quer
repetir de dois em dois anos. “Queremos olhar para trás, fazer o balanço de
todos estes anos, mas sobretudo olhar para a frente. A fundação sempre esteve
ligada à poesia e esta é uma forma de continuar a estar”, disse Pedro Álvares
Ribeiro, presidente da fundação na apresentação do evento aos jornalistas.
Para a fundação, a poesia é uma “área
diferenciadora de produção”, nas palavras do seu presidente, e têm
tentado mostrá-lo nos Encontros Cesariny, que completaram no ano passado sete
edições – a fundação detém parte do espólio do surrealista –, ou nas iniciativas
com poesia dita em locais públicos que se iniciaram há cinco anos, conta
António Gonçalves da Costa, director artístico da fundação.
Com Carmina, a palavra latina
que define a poesia como alguma coisa entre o pagão e o religioso, a ideia é
“ir além do que são habitualmente os festivais de poesia, em que apenas se ouve
dizer poesia”, explica o director artístico da fundação.
Sexta-feira, o festival abre com às
10h com uma conversa entre Pedro Mexia e Tolentino Mendonça sobre “Deus
como interrogação na poesia portuguesa", tema desta edição, e a
programação continua com questões como "A poesia cabe dentro das
antologias? Não. Então porque se fazem?" ou "À poesia o que é da
poesia, a Deus o que é de Deus" em que participam autores como Rui Laje,
Fernando J.B. Martinho ou Maria João Reynaud. Pelo meio, há a conferência do
brasileiro Alex Villas Boas que explica "A interrogação de Deus na poesia
brasileira" e sábado estão presentes os poetas Armando Silva
Carvalho, Carlos Poças Falcão e Fernando Echevarría para uma mesa-redonda com
os antologistas Pedro Mexia e Tolentino Mendonça. Não se esquecem as habituais
iniciativas de poesia dita na rua, que acontecem nestes dois dias no jardim da
fundação e no parque da cidade.
O ponto de partida para esta
programação é a antologia com o mesmo tema e chancela da Assírio & Alvim –
a editora criou uma edição em que a capa é o cartaz de Carmina e outra para ser
vendida nas livrarias. O objectivo é que em cada uma das futuras edições se
organize uma publicação antes do evento para que ela dê origem às conversas.
“Uma coisa que devia ser habitual no nosso quotidiano: fazer e depois
discutir”, diz Tolentino Mendonça.
Mas afinal tem tudo para correr mal?
“Uma antologia deste tipo tem tudo para desagradar aos dois lados da barricada”,
explica Pedro Mexia, “quem chega à antologia porque se questiona sobre Deus só
encontra poesia e quem chega por causa da poesia pode não estar interessado em
Deus.” Na Explicação que abre o livro há espaço para explicar melhor: os
dois antologistas reconhecem a resistência tradicional destes dois mundos um
face ao outro. Se, por um lado, citam o poeta Gottfried Benn, que diz que “Deus
é um mau princípio estilístico” e são tentados a concluir que “as convicções
religiosas são incompatíveis com a boa poesia”, por outro, lembram “o divórcio
que na prática se veio a instalar entre religião e artes”, porque “a arte é um
princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé”, ou melhor, “à poesia opõe-se o
único factor decisivo: a verdade”.
Ultrapassando esta aparente oposição
entre arte e religião – que no prefácio é resolvida com uma frase de Bento XVI
sobre a importância do belo –, esta antologia era uma “lacuna no mercado
português”, diz Pedro Mexia. Não existia uma recolha de poesia religiosa, sendo
“a relação com Deus essencial na poesia portuguesa do século XX”, diz. Vêm à
cabeça os exemplos evidentes, acrescenta o antologista, de Ruy Belo, Sophia de
Mello Breyner ou Eugénio de Andrade, e surge a pergunta: o que foi escrito para
além das suas obras e do seu tempo? Nesta antologia, apenas Carlos Poças
Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria nasceram na segunda metade do século XX.
Com movimentos como o surrealista, a Poesia 61 ou a poesia experimental houve
um desinteresse por esta questão.
“O facto de haver poucos poetas a
tratar agora esta questão mostra como ela não é do nosso tempo, parece não ser
pertinente para nós”, diz Pedro Mexia, para mostrar como este tema pode
ser uma não questão para muita gente, sobretudo nos últimos 40 anos. “São
caminhos mais silenciosos, mas não menos relevantes”, diz Tolentino Mendonça,
padre e poeta. “As antologias de poesia são documentos sociológicos sobre um
país. Antologias anuais de poesia são importantes documentos sociológicos”,
completa.
EmVerbo: Deus
como Interrogação na Poesia Portuguesaprocuraram
essa actualidade e definiram desde o início que queriam começar e acabar
com “dois grandes poetas”, diz Mexia: Vitorino Nemésio (1901-1978) abre o livro
e para fechar Daniel Faria (1971-1999). Pelo meio, outros 11 poetas estão
presentes não apenas porque tocam este tema – “Não incluímos ninguém que não
incluíssemos numa antologia de poesia”, conta –, mas porque têm qualidade para
integrar qualquer antologia.
No processo de selecção, que partiu
de umalong listpara
um grupo de 20 e finalmente para os 13 autores escolhidos, houve surpresas para
os próprios autores, como a de Jorge de Sena, “que nem sequer estava nalong list”, confessa
Pedro Mexia. Mais do que uma pessoa recomendou que lessem a obra dos seus
primeiros anos, entre 1930 e 1940. Descobriram um homem “em luta com Deus”,
escrevem no prefácio, “um agnóstico à beira da crença e do ateísmo”.
De fora ficaram aqueles em que Deus
aparece como uma referência a um determinado imaginário, “um aspecto quase
folclórico”, lê-se no livro, em vez de ser uma interrogação, “um assunto íntimo
e grave”. “Pode haver quem estranhe a ausência de Miguel Torga ou de José
Régio”, lembra Pedro Mexia. Mas aí, concordam os dois responsáveis pela
selecção, o gosto dos antologistas “é sempre um bom critério”.
O trânsito entre Deus e os poetas portugueses — de Vitorino Nemésio a Daniel Faria — numa antologia equilibrada e significativa
Cronologicamente, Vitorino Nemésio é o autor que abre esta antologia — um autor de profundas inquietações religiosas
Verbo — Deus
como Interrogação na Poesia Portuguesa não tem antecedentes próximos.
Não se pode dizer que haja entre nós uma linhagem consolidada de antologias com
um nível qualitativo firme e ininterrupto, criadoras de uma imagem satisfatória
da nossa poesia. Se há títulos que podem fazer supor o contrário, parece
legítimo ver neles menos a peça de um processo geral coerente, gerador de nexos
aproveitáveis, do que um episódio raro. O sentimento geral é de deslaçamento e
incompletude. Decerto por infrequência, e nem sempre por falta de valor de
alguns desses esforços. Diferentemente, uma poesia como, por exemplo, a
britânica materializou uma tradição contínua e válida por meio de um conjunto
de antologias — abrangentes ou restritas, mas, genericamente, de elevado valor
documental e poético — que formam hoje um panorama ponderado e lúcido. Mesmo numa área tão específica como a religião: The
Faber Book of Religious Verse (1972), editado por Helen Gardner; The
New Oxford Book of Christian Verse (1981), por Donald Davie (Lord
David Cecil organizara, em 1940, The Oxford Book of Christian Verse); The
Penguin Book of English Christian Verse (1984), a cargo de Peter Levi.
Meros exemplos, longe de exaustivos, mas que indiciam um contraste nítido
face ao caso português. No nosso país, ressalvando iniciativas de carácter
confessional, as experiências antológicas dedicadas a esta área cingem-se
praticamente à colaboração entre José Régio e Alberto Serpa — Na Mão de
Deus: Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa (1958) — e à recolha de
Guilherme de Faria, editada postumamente — Antologia de Poesias
Religiosas (1947). Note-se, a título exemplificativo, que neste volume
as últimas entradas se cifram em composições de António Nobre e do próprio
Faria, desaparecido em 1929 (a que se seguem, a fechar, Cantigas
Populares).
É claro que,
com o que se tentou apresentar, não se pretendia obliterar um quadro geral
marcado pela insuficiência na edição de antologias, quer específicas, quer
generalistas — mas tais considerações não cabem no âmbito deste texto, que, de
resto, já se alargou perigosamente.
Tendo em
conta o quadro traçado, falta-nos, perante uma antologia como a que organizaram
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, a jurisprudência que nos permitiria
estabelecer comparações e tecer juízos mais robustos. Verbo terá,
portanto, de ser analisada por si só. Trata-se de uma antologia temática, de
âmbito temporal preciso, que se inscreve numa orientação cultural circunscrita
e maioritária, de matriz cristã. É possível debater se tal posição — unívoca,
do ponto de vista da orientação religiosa — é ou não defensável. Contudo,
colhendo o seu título no primeiro versículo do Evangelho segundo São João — “No
princípio era o Verbo” —, esta antologia define claramente os seus limites e as
possibilidades do seu conteúdo. Os organizadores não terão querido enjeitar o
significado mais profundo daquela noção, enquanto Logos, isto é:
Deus-filho, na tradição do Novo Testamento. Como não terão esquecido,
igualmente, que logos é, em paralelo a essa acepção, e além do
contexto religioso, “palavra”, “discurso”, mas também “razão”. Talvez importe
lembrar que de logos derivam formas lexicais com o sentido de
“falar”, ou “colher palavras”. A relação com a poesia que esses sentidos
possibilitam abre caminhos não limitados a uma aceitação contemplativa. Talvez
nesse sentido Mexia e Tolentino Mendonça falem de um “modo interrogativo” (p.
13). Devido aos contornos que apresenta, esta obra fixa limites especialmente
precisos, em cujas extremidades se encontram Vitorino Nemésio e Daniel Faria. O
que automaticamente exclui a tradição pré-moderna, ao contrário do que
acontecia nas antologias antes referidas — e os organizadores não escamoteiam o
facto de “a questão de Deus” [ser] inexistente ou ocasional no primeiro
modernismo” (p. 10) —, e poetas nascidos após 1971.
Pensando nos
autores recolhidos em Verbo, deve referir-se Vitorino Nemésio. Ao
escolhê-lo para abrir a sua antologia, os responsáveis optaram por um dos nomes
que mais ajudaram a definir a moderna poesia portuguesa, e no âmbito temático
aqui em causa, um escritor de profundas inquietações. Lembre-se um título como O
Verbo e a Morte (1959), e o poema epónimo, incluído na presente
antologia — “Então Deus é o Tu na face,/ O que nos deixa ser em frente,/ Como
se assim recuperasse/ Meu eu sem área, eu morto, eu mesmo,/ Que me assumi na
face morta” (p. 32). Poderia ainda invocar-seO Verbo, de Carlos Poças
Falcão — “Ser o verbo certo, essa volúpia/ como uma roseira, a posição sentada
ou uma casa/ de pedra e de madeira. (…) verbos que procuram leveza e exactidão”
(p. 176). Um exemplo, este último, que elucida a dimensão dúctil do logos.
Enquanto mediador entre sujeito e objecto, instrumento para dizer o mundo, e
como ligação ao divino. Eis uma das vias por onde caminha esta poesia.
Mas esse não
é um caminho exclusivo. Ruy Cinatti, por exemplo, de quem foi opção avisada
privilegiar os livros póstumos, é um exemplo de como o tratamento da matéria
religiosa pode ser outra coisa que não reverência ou ortodoxia — “Consummatum
est,/ e eu me consumo/ acervo de unhas que me dilaceram/ e eu estacado/ perfil
— homem de figura,/ mas assombrado” (p. 50). Poucas vezes a poesia portuguesa
terá alcançado dirigir-se a Deus de forma ao mesmo tempo tão pungente e
conseguida do ponto de vista expressivo. A propósito de Ruy Belo, Joaquim
Manuel Magalhães destacou a “afirmação na dúvida”. A sua poesia, que é um dos
lugares mais tensos e conturbados da relação com Deus, mas também dos mais
congruentes — Joaquim Manuel Magalhães falou da “poesia de um homem religioso
até ao fim” —, afirma-se numa luta, a certa altura num desvio (é conhecida a
questão da minúscula da palavra “deus”), mas sempre numa relação proveitosa
para os seus versos — “mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus” (p. 141).
Na impossibilidade de expor detidamente todos os poetas incluídos, o mais
tentador (motejo não intencional) seria referir Adília Lopes. Se num dos seus
poemas escreve “Deus é a nossa/ mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos
fora/ como a fé/ porque achamos/ que é pirosa” (p. 195), podíamos ser levados a
quedar-nos apenas na aparente iconoclastia; mas também seria possível recordar
S. Paulo (Romanos, 1:16-17), quando este diz: “Na verdade, eu não me envergonho
do evangelho” (curiosamente, a Vulgata diz “non erubesco”, ou seja “não
coro” [de vergonha]). Nem o acaso nem o descaso parecem ter passado por aqui.
Dos poetas
incluídos em Verbo, alguns são fundamentais — Nemésio, Sena,
Sophia, Ruy Belo ou Armando Silva Carvalho —; outros são autores de primeira
linha — Ruy Cinatti, Carlos Poças Falcão —, mas, no cômputo geral, o conjunto é
equilibrado. Demarcados pelo tema e pela fronteira cronológica estabelecida, os
13 autores convocados para Verbo (incluindo, além dos já
referidos, Fernando Echevarría, José Bento, Cristovam Pavia e Pedro Tamen) não
se subordinam a qualquer deliberado simbolismo numérico, mas surgem em
consequência de critérios que salientam o carácter significativo e questionador
do divino nas suas poesias.
Se estou só, quero não ‘star,
Se não ‘stou, quero ‘star só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.
2-7-1931
Fernando
Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana
Maria Freitas, Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
Linhas de leitura do poema “Se estou só, quero não ‘star”, de Fernando
Pessoa
Tema: busca incessante do “eu”; inconformismo do “eu”;
insatisfação do “eu”.
Na primeira quadra, o sujeito poético está inquieto porque não
se sente bem seja só, seja acompanhado: quando está só, deseja ter companhia;
quando está com os outros, deseja estar só, o que o leva a concluir (“Enfim”) que
quer sempre estar como não está.
Na segunda quadra, considera que para ser feliz tem de deixar
de ser ele próprio (“eu”) para passar a ser outra pessoa (“aquele”); mas, no
fundo, o outro não é feliz porque não é ele que sente essa felicidade.
Na terceira quadra, o sujeito poético parece advertir para a possibilidade
de se ficar “perdido na estrada” (perdido na vida), caso se deixe de fazer o que
se quer daquilo que não é nada. «Fica perdido na estrada» o que não sabe o que
fazer à vida, o que com ela se relaciona mal.
Intertextualidade
Ouve a canção «Estou Além», do primeiro disco de
António Variações, editado em formato single e maxi-single, em 1982:
Este
sentimento de descontentamento constante traduz-se, no ser humano, em angústia
e desalento, o que é claramente negativo. Porém, esta insatisfação também
poderá, positivamente, ser o motor de mudanças e avanços que fogem ao
conformismo e acomodamento relativamente ao já conhecido.
Assinala o único elemento que não é comum entre a letra da canção
«Estou Além» (de António Variações) e o poema «Se estou só, quero não 'star»
(de Fernando Pessoa):
a) Conflito interior
b) Instabilidade emocional
c) Insatisfação
d) Solidão
e) Angústia existencial
Resposta: d)
Bibliografia: Entre Palavras - Português 9.º Ano, António Vilas-Boas e Manuel Vieira, Sebenta, 2013; Letras
& Companhia - Português 9.º Ano, Carla Marques e Inês Silva, Edições
Asa, 2013; (Para)Textos - Português 9.º Ano, Ana Paiva et alii, Porto
Editora, 2013.
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“Se estou só, quero não
estar, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 09-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/ser-aquele.html