sábado, 21 de novembro de 2015

LLANSOL, Llansolianos & Espaço Llansol

Espaço Llansol
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POEMA PARA EMILY DICKINSON

Há um barco que espera por um barco,
Um recado para este mensageiro
Um tão grande recado,
Que se ignora onde o barco foi lançado ao mar.
Na tempestade que surgiu,
Só o leme do barco destroçado veio dar ao poema.

LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama-poesia?
Lisboa: Relógio d’água, 2000



*











O fulgor de Maria Gabriela Llansol contado pelos seus amantes


Criadores contemporâneos (llansolianos assumidos ou não) falam ao Ípsilon da sua relação de encantamento com Maria Gabriela Llansol, um "animal de escrita" que permanece misterioso. É já no domingo que o Centro Cultural de Belém inaugura a exposição Sobreimpressões"
Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-2008) disse Eduardo Lourenço que será, depois de Fernando Pessoa, "o próximo grande mito literário da literatura portuguesa": "Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita."
Esse fascínio é partilhado pelos escritores, artistas e cineastas com quem o Ípsilon falou sobre Maria Gabriela Llansol - leitura de cabeceira à qual recorrem, encantados pelo fulgor do texto, por um universo único, ou pelo desafio de ler em liberdade desafiando os cânones.
O que é ser llansoliano (ainda que poucos admitam sê-lo)? O llansoliano não é só o académico que estuda a obra ou que pertence ao Grupo de Estudos Llansolianos, criado em Sintra ainda a escritora era viva, e que hoje preserva e divulga o seu espólio. Como explica João Barrento (um dos responsáveis pelo Espaço Llansol), ser llansoliano "é ter aderido a um determinado universo e a um modo de estar no mundo".
E que mito é este em torno da figura de Maria Gabriela Llansol? Diz-se que lia à luz das velas e que escrevia em torrente como um "animal de escrita" (Barrento). Da impossibilidade separar o real e o texto ficou a aura de escritora inacessível, inclassificável, figura silenciosa, rodeada por um pequeno grupo de admiradores a que Eduardo Lourenço chamou "uma espécie de seita".
Hoje Llansol continua a ser uma (quase) ilustre desconhecida em Portugal e no estrangeiro. Mas talvez a exposição que se inaugura no Centro Cultural de Belém (CCB) este domingo (que será "Dia Llansol", com leituras e música) contribua para levantar o véu sobre esta escritora misteriosa. "Sobreimpressões. Maria Gabriela Llansol: Uma visão da Europa" é um roteiro por algumas das principais figuras europeias e pelos lugares da obra (e alguns da vida) de Llansol. Paralelamente, haverá em Abril, na Cinemateca, um ciclo sobre algumas dessas figuras. E Llansol continua, com uma exposição de Ilda David que acompanhará a reedição de "O Livro das Comunidades", e o lançamento de um volume sobre a temática da Europa (Assírio & Alvim) e de outro compilando as principais recensões na imprensa da época (Mariposa Azul).
Na exposição estarão trabalhos de artistas com ligações à obra da Llansol, como a peça de Rui Chafes sobre a figura de Fernando Pessoa, ou a de Pedro Proença sobre a metamorfose de D. Sebastião. E o texto, explica Barrento, "vai estar lá em fragmentos, com muitos papéis avulsos, peças originais dos cadernos, algumas nunca vistas", à mistura com "peças da casa da autora e objectos relacionados com os seus livros".
Culto e afecto
Hélia Correia, escritora: "Llansoliana não sou porque isso implicaria uma prática de trabalho de estudo e de relação mais operacional com aquele texto, que não é a minha. Não sou uma estudiosa da obra da Llansol, mas sou uma amante, isso dá-me muito mais liberdade."
Miguel Gonçalves Mendes, realizador: "Não sou llansoliano, de todo. Para mim, a Llansol é um autor que escrevia livros de que eu gosto. Há um lado de mitificação das coisas que acho até muito doentio e nem sei se ela própria simpatizaria com isso."
André e. Teodósio, encenador: "Sou um llansoliano. Reescrevo, aproprio-me de frases dela. É uma das figuras que convoco sempre. Sou contingente dela. Os llansolianos podem querer tampar-me a boca, mas eu não posso fugir a isso."
Paula Sá Nogueira, actriz: "Não diria que sou llansoliana. Sou leitora. A minha aproximação ao mundo é olhar: a Llansol é uma das coisas para que eu olho."
Aqui: afirmação e negação do que é ser llansoliano. E ainda assim todos se dizem amantes fascinados por essa força fulgurante do texto. Não é uma contradição. Como diz Hélia Correia, o culto, a ser feito, sê-lo-á "sobre o esplendor do seu texto, tão vivo como uma árvore, atravessada por uma seiva, com tanto alimento do espírito que será impossível e até indesejável que haja um controlo a respeito dele. O texto não pede isso. Que o culto seja um culto de luminosidade, de afecto generoso".
Hélia Correia conheceu Maria Gabriela Llansol por via de uma amiga comum. Esse encontro "abriu caminho a uma relação muito especial e muito privada": "Uma relação muito forte e muito preciosa para mim", conta. Também com o texto de Llansol a relação é "de uma grande intimidade": "É um texto a que volto sempre. Já há muito tempo que isso não significa ler um livro completo, é abrir um livro aqui e acolá, ler passagens, como fazíamos quando nos encontrávamos. É um texto que está sempre presente. Não faço isso com mais texto nenhum."
A escritora admite que a existência de culto à volta do texto e da figura de Llansol não lhe "parece ofensiva" ("Compreendo e não sinto como abuso"), mas acrescenta que "essa personagem adorada é já uma outra". A imagem projectada por Llansol, explica, "é tão rica e tão textual, e dada a várias leituras, que há realmente uma imagem dela que se pode projectar como imagem de culto". Hélia Correia, contudo, quer preservar o espaço íntimo da sua relação com Llansol, até fisicamente: "Defendo como um cão de guarda o meu espaço, do qual sou muito ciosa e que não quero ver atravessado por visitantes ou apreciadores da obra dela. Aí está a grande diferença entre a minha felinidade e o espaço dos estudiosos, que fazem um trabalho grandioso a que estou infinitamente grata".
Um texto que espicaça
É esse afecto que une a leitora Hélia à obra "Amar um Cão": "Nem preciso de dizer que é o meu texto. Apropriei-me dele. É com ele que há uma relação de afecto, de memória." Para além de Melissa, uma das gatas de Llansol que Hélia adoptou, tudo o que era do Jade (o cão de Llansol) ficou com ela. "Esse texto sai do conjunto grandioso da alta e perturbadora literatura que é a obra da Maria Gabriela, que eu peguei ao colo e trouxe para a minha salinha, como a Melissa e outras memórias e objectos", diz.
Para o compositor João Madureira, 39 anos, autor da ópera "Metanoite" (encomenda da Gulbenkian em 2007, com libreto de João Barrento e encenação de André Teodósio), "Amar um Cão" também é a obra de eleição, "pela forma como combina simplicidade e um lado mais enigmático e reflexivo da sua escrita, que parece aí encontrar um equilíbrio muito especial." O que mais o atraiu em Llansol "foi a convicção de que a língua portuguesa necessitava absolutamente de uma reinvenção formal para exprimir as suas ideias". Estava perante alguém "que não reinventava a língua em que se exprimia por puro prazer ou capricho académico, mas por uma consciência profunda de que a língua com que nos exprimimos habitualmente condiciona aquilo que queremos dizer". Musicalmente, sublinha, o texto de Llansol é muito estimulante também, "tanto no seu aspecto sintáctico, como no seu aspecto formal: por vezes ele parece articular-se como colecção de fragmentos vários constituintes de um todo, e não de uma forma puramente linear".
Este é o legado do texto de Llansol: mais do que as figuras que invoca ou do que os espaços que habita, é o processo de escrita do texto, literalmente com as costuras à mostra, que faz com que muitos vejam nela uma fonte de inspiração ou de desafio. A realizadora Cláudia Tomaz, 38 anos, por exemplo, tem há vários anos o projecto de documentário "Os Vivos", sobre a obra de Llansol. "Criar um filme completo que trate toda a extensão da obra de Llansol é impossível. À extensão, prefiro a profundidade. Quero fazer uma obra humana seguindo o percurso da escrita de Llansol. Filmar, com o mesmo olhar com que ela escrevia. Vejo uma imagem nómada, silenciosa, de uma estranheza íntima", explica. Não é fazer simples "ilustração nem colagens poéticas": "Para mim a poesia tem que vir de dentro e é nesse caminho que encontro Llansol."
O mesmo se passa com Paula Sá Nogueira, 55 anos, do grupo de teatro Cão Solteiro: "Há uma série de autores que lemos e que formam uma espécie de universo que acaba por ir parar aos espectáculos [da Cão Solteiro]." Demorou imenso tempo a lidar com a espiritualidade da autora: "Não sou católica e faço reacção a tudo o que o seja. Mas comecei a perceber que aquele texto é de uma profunda espiritualidade." É a liberdade do universo de Llansol que a convida a entrar: "Gosto da reacção química que aquele universo provoca com o meu. Não me preocupo em saber se aquilo que estou a ler é o correcto. A escrita dela tem tanta liberdade que me permite fazer isso. Se não tudo aquilo parece um universo fechado, com metáforas difíceis. Essa é a postura de quem pega num livro para lhe explicarem alguma coisa. Isso não acontece com ela. Os livros dela espicaçam-me."
O artista plástico Manuel Santos Maia, 40 anos, acrescenta que o que o fascina em Llansol é a forma "quase catalisadora" como ela "fala nos objectos", que "acelera o processo de criação". "É um diálogo que eu encontro com a escrita, que levanta questões e não dá certezas. Esse é que é o desafio." Uma das peças do artista, sobre a questão do exílio e de Portugal, com objectos da casa de Llansol, estará no CCB.
Ler em liberdade
O texto continua vivo, mesmo após a morte (real) da autora. Era isso que interessava ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, 32 anos, que, com a coreógrafa Vera Mantero, fez o documentário/performance "Curso de Silêncio" para o Festival Temps d'Images (2007), a partir de "Amigo e Amiga". "Creio que o que interessava mais à Vera era a cena fulgor. A mim, era questão da morte dele [Augusto Joaquim], e de como alguém se confronta com o mundo real e com esse luto." O livro de Llansol permitiu a Mendes trabalhar "as contradições da mente humana": "Estamos a falar de alguém com aquele universo particular que a morte do marido põe em causa. É isso que torna esse livro especialmente bonito. Ela não se nega a si própria. Continua na sua procura do belo através do processo de criação. Faz o luto através do livro."
Em Llansol, o realizador admira "a recusa de metáforas". Nesse sentido, Mendes reconhece que a leitura do texto llansoliano foi útil para o seu trabalho: "Naquele filme, senti que estava realmente livre através da exploração da intensidade da imagem, dessa explosão visual. A liberdade é o gozo que a literatura dela dá, consegues ler uma página, um fragmento, e aquilo vive por si. Ler fragmentariamente é ler em liberdade."
Mas Llansol não é só livre: é real. "A escrita dela é fantástica, ensaística, poética, artística: é a pós-modernidade ao máximo. Não é ficcional, é monstruosamente real. Tem a ver com a constatação do mundo, as artimanhas ficcionais do mundo e a sua monstruosidade. Está-nos sempre a tirar o tapete, para nos pôr a pensar, para nos abstrairmos. Não há voto, não há discurso; o prosaico sobre o mundo não está ali, não é metafórico", diz André Teodósio. Os livros de Llansol, continua, não se podem ler "como se lê uma tese, como quem procura a forma canónica da poesia ou uma fórmula matemática". Precisamente porque o texto é livre, não se pode instaurar uma maneira de o ler. "Ela não diz: é assim. Ela constata. Sabe que o mundo está em colapso. Não usa artimanhas intelectuais." Para Teodósio, Llansol é como Adília Lopes, "é o mesmo tipo de raciocínio e de posição no mundo, estar no mundo de uma forma contemporânea mas sem tempo, porque o tempo delas é o de deus".
Esse tempo de deus, um espaço místico espiritual, também seduz o actor Miguel Loureiro, 40 anos. Descobriu Llansol aos 24, com "uma paixão que vivia na altura, com quem trocava livros dela". Comprava-os num alfarrabista, num vão de escada ao pé do Teatro da Trindade. Foi então que descobriu que havia "alguém no romance português que falava de uma série de coisas próximas de deus". Para Loureiro, "Llansol é um lugar muito repousante". Quando a leu, sentiu "um enorme descanso relativo a tudo o que tinha lido antes, mas ao mesmo tempo um sentimento de inquietação. Parecia que estávamos dez anos atrasados em relação ao que andávamos a ler. Aquela escolha de palavras, a linguagem, dava a sensação de que ela estava a sabotar tudo o que escrevia." Llansol ficou-lhe como uma reserva, não como referência: alguns dos seus textos estão lá, "ao pé da cama, para adormecer, para voltar a ler, para voltar a aprender". A sua obra, diz, "é uma oferenda ao leitor": "Cada vez que a leio encontro sempre coisas novas".
No fundo, é só preciso deixar de ter medo. "Quando comecei a ler senti uma certa frustração: o meu entendimento falhava, mas continuava a seguir as linhas. Lembro-me do que ganhei quando deixei de me preocupar em perceber. Vinha formatado pela narrativa. Tinha de aprender a estar no texto", diz.
Maria Gabriela Llansol esperou sempre pelos que estão do outro lado. Tinha um desejo: "Encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler. (...) Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida. Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler."
Ei-los aqui, amantes do fulgor do seu texto.

(actualizado às 
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-fulgor-de-maria-gabriela-llansol-contado-pelos-seus-amantes-280062

domingo, 15 de novembro de 2015

Amo como o amor ama, Fernando Pessoa



Fernando Pessoa conheceu a impossibilidade do amor mas viveu-o no papel, “de todas as formas possíveis e imaginárias”. O romantismo confessado em “cartas de amor ridículas” a Ophélia, o seu “bebé pequenininho”, terá ficado platónico. A imagem de um Pessoa apaixonado, sedutor, dilui-se no retrato oficial do homem quase sempre vestido de escuro, de chapéu ligeiramente amachucado, óculos redondos de lentes grossas, reservado, tímido e solitário.
Magazine Cultural, Filbox produções, 2014.



Fernando Pessoa

MARIA: Amo como o amor ama.

                MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                                               buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
                FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
                MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
  - 99.
1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).





Fernando Pessoa

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...
Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.
Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.
Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...
Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?
Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.
Em que és [...J fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...
[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...
Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!
E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…
Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?
Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...
Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...
Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.
Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?
Talvez sintas como eu
E não saibas sentil-o...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobril-o,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...
Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...
Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...
E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.
2-12-1913
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
  - 11.



Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
1928
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). 
 - 92.


Bernardo Soares

Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral...

L. do D.
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico. O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 267.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.


Bernardo Soares

ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO

L. do D.
ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, séria, seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [o] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe... E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas, estética de Morte do Sol.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 204.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.



Bernardo Soares

Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras...

L. do D.
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras (...)
Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minha(s).
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne não é
espiritual mas é espiritualidade (És a mulher anterior à Queda) […]
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem (...) têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula... Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto (...) corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia de origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol, possuídos em ti!
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite-Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiarae o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja pó? Janela no teu quarto que importa que eu seja espaço? Hora (...) na tua clepsidra que importa que eu passe se por ser teu ficarei, que eu morra se por ser teu não morrer, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, seguidora [?] de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua (...) me adormeça, que o teu mero ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgo-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da guarda dos abandonados, Paisagem humana — irreal [?] de triste e eterna Perfeição.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 256.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

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