Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca
MaNUEL DA FoNSECA
ÍNDICE
- “Manuel da Fonseca” – verbete do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses
- Manuel da Fonseca e o neorrealismo
- Prefácio à Obra Poética de Manuel da Fonseca, por Mário Dionísio (1969)
- A lírica social de Manuel da Fonseca
- As estratégias crítico-sociais na obra poética de Manuel da Fonseca
- Os elementos simbólicos na poesia de Manuel da Fonseca
- Última entrevista a Manuel da Fonseca (1993)
- Ligações externas
- Leitura orientada de textos de Manuel da Fonseca:
Data
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Género
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Publicação
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Título da composição
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Incipit
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1940
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Poesia
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Rosa dos Ventos
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O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do
mundo,
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1940
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Poesia
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Rosa dos
Ventos
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Vida:
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1940
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Poesia
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Rosa dos Ventos
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Entontecido
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1940
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Poesia
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Rosa dos
Ventos
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Quando
chega domingo,
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1940
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Poesia
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Rosa dos Ventos
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Olhai o vagabundo que nada tem
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1940
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Poesia
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Rosa dos
Ventos
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Das casas que ninguém construiu
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1941
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Poesia
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Planície
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Em Cerromaior nasci.
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1972-73
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Poesia
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Poemas para
Adriano
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Tejo que levas as águas
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1972-73
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Poesia
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Poemas para Adriano
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Tu que vens agora de Montemaior
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1973
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Conto
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Tempo de Solidão
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A surpresa, de mistura com um
indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspetiva de
observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do
passeio.
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MANUEL DA FONSECA
(Santiago do Cacém, 1911 – Lisboa, 1993)
Fez a
instrução primária em Santiago, no meio de uma família oriunda de Castro Verde
e do Cercal do Alentejo. Em Lisboa, frequentou o Colégio Vasco da Gama, o Liceu
Camões, a Escola Lusitânia e, ainda, a Escola de Belas-Artes. Nas férias,
regressava a Santiago (Cerromaior, nas suas obras), a casa dos avós, ou,
posteriormente, de uma tia.
Exerceu
actividades muito díspares, quer na área do comércio, quer na da indústria,
tendo ainda trabalhado em jornais e revistas e numa agência de publicidade. «Em
Cerromaior nasci. / Depois, quando as forças deram / para andar, desci ao
largo. / Depois, tomei os caminhos / que havia e mais outros que / depois
desses eu sabia.»
Se
estivermos atentos aos seus livros, saberemos muito mais do A., pois a sua obra
é fortemente autobiográfica, já que as personagens que recriou (delineadas por
forças internas) e a realidade, nela descrita, estão intimamente ligadas a
experiências vividas e a uma unidade psicológica extremamente coesa. «Uma vez
lançado, a realidade e a invenção, mascaradas, jogam às escondidas comigo –
nunca sei ao certo, em cada momento, qual delas preside ao que escrevo», disse
em entrevista.
Respirando e
vivendo as memórias do Alentejo, este é, na verdade, parte de um todo, e
Santiago é o espaço do conhecimento e tempo da revelação, memórias indeléveis
do seu primeiro mundo. A infância, a adolescência e o mítico Largo serão
condicionantes da sua criatividade, observáveis em qualquer dos seus livros; e
a ideia de se assumir cumulativamente como vagabundo é tão normal que a repete,
tanto na sua poesia ou ficção como em prefácios ou entrevistas, deixando-nos
assim uma imagem repassada por uma grande dor inicial: a de uma casa que
verdadeiramente nunca teve. «Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é
apenas um cruzamento de estradas... Era através do Largo que o povo comunicava
com o mundo... O Largo é o lugar da igualdade (mas, depois)... a vida mudou-se
para o outro lado da vila.»
Antigamente:
a infância, a alegria, a paixão, o equilíbrio e a comunhão vivida no Alentejo,
tudo foi substituído pela visão do adulto, pela dor, cinzas e solidão
encontradas na cidade. Os pontos de vista do escritor, que evoca o antes, donde
o Largo e o Alentejo representarem as raízes embebidas no mítico e na
idealização, e a presentificação dorida do agora, onde se observa a
omnipresença dos olhos-ouvidos, «ouvidos para ouvir / e olhos para ver»,
indicar-nos-ão as duas perspectivas adoptadas pelo poeta e ficcionista, numa
visão sempre terna e generosa, mas que reflectem bem a sua personalidade.
É pois
natural que um tom confessional e coloquial, vivo, ressalte da sua escrita; que
o narrador seja também personagem; e que as primeiras figuras, líricas e
heróicas, caracterizadas por um excesso de vida e de paixão, se tenham
transformado em figuras nostálgicas, exiladas, solitárias e inadaptadas à
realidade em que vivem: «André Juliano, meu amigo de infância, como nós
mudámos!» Um «ano de grande fome» foi o momento em que perdeu o paraíso e lhe
definiu a passagem para outros espaços. É o «forno» que se desmorona, em Seara
de Vento, é a mudança operada em Adriano, em Cerromaior.
A
sensualidade, a expressão espontânea (porque mais interior e verdadeira), a
organização plástica, a ductilidade semântica e a sua originalidade esbatem-se,
nas últimas obras, apesar de nelas guardar o essencial, integrando e
coordenando as multissignificações simbólicas em que o A. sempre foi mestre,
porque a criação poética é isso mesmo, intimamente ligada a um falar interior,
aos objectos que navegam no nosso corpo secreto. Por isso, «tudo o que há no
novelista preexistiu, em embrião, no poeta», e será difícil estudar a sua
ficção ou a sua poesia como produções autónomas.
«A
observação do homem e dos seus problemas – esclarece em entrevista – tem de ser
contada de um modo pessoalíssimo». Ora é este pressuposto que o impede de cair
em «clichés» e em empolgamentos ideológicos. A perspectiva neorrealista, na sua
obra, emerge cândida e com naturalidade pelo facto de descrever camponeses e
patrões naqueles espaços alentejanos, associada à grande capacidade de ternura
e compreensão dos seus semelhantes. Donde, ao escrever «Aquela raça de
lavradores antigos acabou-se» não o faça contra o próprio lavrador, mas contra
as adversidades e alterações que acabaram por deteriorar o ancestral equilíbrio
vivido, no Largo, pelo homem alentejano, apaixonado e violento, porém
compassivo e companheiro.
São essas
transformações que o escritor acabou por retratar através dos olhos e da sensibilidade
do menino ou rapaz que se defronta e abre aos problemas da sua região natal,
repostas pelo adulto que as observa como factos que o ultrapassam mas que não
explicará através da perspetiva da luta de classes. «Sou barco de vela e remo /
sou vagabundo do mar... não tenho rota marcada.» Desta forma, foram os seus
dramas e lutas interiores que lhe realizaram a obra, espelhando o conflito
entre o mundo mítico, primeiro, e a realidade social posterior, injusta, sim,
mas para a qual não propôs qualquer solução, já que foi cético quanto ao
advento de um mundo melhor. Trata-se, na verdade, de uma ideologia muito pessoal,
que olha o passado afetivamente, como se o preferisse, o que não impede que a
sua obra se inscreva no espírito e movimento neorrealista, ainda que de forma
mais universal, ao colocar o indivíduo num centro e num plano diferentes
daqueles para que aponta a realização coletiva.
in Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997
MANUEL DA FONSECA E O NEORREALISMO
Assentada
esta sólida pedra inicial do Neorrealismo,
não tardariam muitos meses que aparecesse o primeiro grande livro de poemas do
movimento. Trata-se de Rosa dos Ventos, de Manuel da Fonseca, em edição do autor,
e datada do verão de 1940. Não vamos espraiar sobre esta obra poética de
excecional nível, a provar imediatamente que a batalha pelo conteúdo era já a
batalha pela forma. A Presença não
apresenta, apesar das suas preocupações estetizantes, qualquer obra que se lhe
superiorize. Em Rosa dos Ventos encontram-se
mesmo alguns dos poemas formalmente mais belos deste século. (José Gomes
Ferreira dá-nos o seguinte depoimento: «[ ... ] Dos livros de versos iniciais
do Movimento [...] o mais belo foi, sem dúvida, Rosa dos Ventos, de Manuel da Fonseca, publicado em 1940 por
cotização dos amigos que assim quiseram prestar homenagem à sua personalidade
inconfundível [...]», in Memória das
Palavras, Portugália Editora, 1.ª ed., 1965, p. 211). Que se tratava,
porém, de uma reviravolta temática na poesia portuguesa, a continuar com
inspiração bastante superior às primeiras produções que haviam aparecido no Sol Nascente, assinadas por Mário
Dionísio, e, em definitivo, muito acima da boa vontade versificatória de
António Ramos de Almeida, não pode haver quaisquer dúvidas. É o primeiro livro,
além do mais, da realidade trágica do Alentejo. Dele dirá Mário Dionísio, dois
anos depois (Mário Dionísio, «Ficha-6», Seara
Nova, ano XXI, n.º 766, 18 de Abril de 1942, pp. 151-153):
[...] Quando falo em Manuel da Fonseca
revelar o Alentejo, penso em qualquer coisa de muito semelhante ao Alentejo se
revelar a si próprio. Qualquer coisa como se aquelas figuras que aparecem, a
espaços, especadas, imóveis e sombrias no meio da grande planície, começassem
subitamente […] a falar-nos delas, da terra e dos senhores que as esmagam.
Mário
Dionísio, no prefácio que em 1963 escreveu para os Poemas Completos de Manuel da Fonseca, explica-nos ainda a forma
como este se integrou no grupo dos neorrealistas, facultando-nos um depoimento
precioso sobre o espírito e a atmosfera criada por essa juventude que se reunia
nos cafés da Baixa de Lisboa, pela qual o futuro autor de Cerromaior tanto se deixaria atrair (Prefácio a Poemas Completos de Manuel da Fonseca,
Coleção «Poetas de Hoje», Portugália Editora, 1963, pp. XIV-XV):
[...] um coração pulsando por todos os
humilhados e ofendidos (líamos muito Dostoievski, apesar do que terá parecido),
uma obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de
dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na
convicção de que, na luta imensa pela libertação do homem, ela teria um papel
inestimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a
conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre
[...] o Neorrealismo, que tanta gente assegura ter nascido por decreto de não
sei que forças tenebrosas, insensíveis aos valores estéticos e cegas para tudo
o que irremediavelmente distingue um artista do homem comum de que ele emerge,
foi assim que surgiu. Assim, apenas assim, espontaneamente, exaltante,
fraternal ingenuidade ‑ desses tantos jovens que foram ao encontro uns dos
outros pelo seu pé, irresistivelmente movidos por um mesmo espírito de recusa,
uma mesma esperança no homem (que eles sabiam só poder querer dizer: os
homens), uma mesma necessidade interior de dizer tudo isso em versos, em
romances, em contos capazes de acordarem um país inteiro para a sua própria
realidade nacional.
Manuel
da Fonseca tinha a coragem de proclamar em 1940, no poema «Domingo» de Rosa dos Ventos:
[...]
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Tal
passagem polémica, bem dentro do espírito do período tão bem evocado por
Dionísio, pode dar a impressão, fora do contexto, de que a série de trinta e
uma poesias que constitui Rosa dos Ventos
nada é mais do que um estendaI de diatribes políticas. Nada de mais falso. E,
todavia, essa explosão isolada encontra-se em sintonia profunda com o
maravilhoso espírito do poeta, que não se limita já à compaixão ou à denúncia
dos males da sociedade, por imperativo abstrato de justiça social, como parece
ser ainda o caso de Sinal de Alarme,
de Ramos de Almeida.
Alexandre Pinheiro
Torres, “Neo-Realismo (1935-1950)” in História
da Literatura Portuguesa. Volume 7: As Correntes Contemporâneas (dir. Óscar
Lopes e Mª de Fátima Marinho, Lisboa, Publicações Alfa, 2002, pp. 219-220).
OBRA POÉTICA DE MANUEL DA FONSECA
PREFÁCIO DE MÁRIO DIONÍSIO
Mil novecentos e
trinta e sete. Ou trinta e oito. Lisboa era então bem diferente deste
formigueiro de automóveis, snack-bars
e bichas de autocarros, discotecas, televisão e barbitúricos ao deitar com que
andamos todos a fazer de grande cidade cosmopolita. Vivíamos ainda nas ruas de
Cesário. Havia árvores. E becos, com certeza. E boqueirões. E «focos de infeção»,
tal como hoje. Mas a fúria de demolição dos pequenos prédios e dos bairros
tranquilos ainda não começara nem rigorosamente se poderia prever que o futebol
estava destinado a transformar-se, dentro em pouco, no grande problema
nacional. A cidade era maior: nem toda a gente se conhecia, as crianças iam a
pé para a escola., conversava-se. Conversava-se! E, acima de tudo ‑ eis talvez,
com efeito ‑ a diferença maior ‑, Lisboa tinha um centro. Um centro natural
aonde toda a gente acorria, na amarela mansidão dos elétricos, para fazer
compras, tomar café, ver gente. Para saber, hora a hora, como iam as coisas em
Espanha. Para ter notícia, enfim, do «que é que há», já que tudo se passava (se
diria passar-se) nesse palmo de ruas e casas que vai do Rossio à Praça de
Camões. E, nesse centro, outros centros havia, dois ou três, de frequência
obrigatória, que faziam da Baixa o centro, não da cidade, que vagamente para lá
dela existia, mas do mundo. (Exatamente como, naquela terra adormecida de que
nos fala um dos mais belos livros de contos que conheço. O Fogo e as Cinzas, antes de ser «apenas um cruzamento de estradas», «antigamente o Largo era o centro do mundo»…) Dois ou
três centros de frequência obrigatória, onde se descobria, destruía, refazia o
sentido dos dias: a Brasileira do Chiado, de reputação firmada desde as batalhas
do modernismo, e a outra, a do Rossio, de tradições diferentes, onde íamos
ouvir o que diriam disto e daquilo o Rodrigues Miguéis (com a Páscoa Feliz premiada pela Casa da
Imprensa havia pouco), o Manuel Mendes e o Armindo Rodrigues, o José Gomes
Ferreira mais a sua camisola norueguesa, e que não parecia ainda exatamente o
Zé Gomes de hoje, mas afinal o era, escrevendo, sem dizer nada a ninguém, o seu
«quase diário» desses anos só na aparência tranquilos, a que chamou «Heroicas» (Terra: // endurece mais! // Recusa a
abrir-te em cova / para esconder o Poeta / no silêncio das raízes: // Deixa-o
apodrecer no chão // como uma bandeira de carne de remorsos). As
«Heroicas», que vieram a registar a sua conhecida resolução: «Junto a minha voz ao coro dos poetas
mais novos. Recuso-me a ter mais de vinte anos.» E esses poetas
mais novos éramos nós, alguns de nós ou todos nós, que constituíamos sem plano
deliberado um terceiro centro, sem residência fixa ‑ ora o Portugal, ora o
Madrid, ora o Palladium ‑, onde os que acabavam de chegar para essas e outras
refregas se encontravam a todas as horas, com dúzias de poemas, de projetos de
artigos e capítulos de romance, para reformar, como todas as «gerações»
literárias, o homem e o mundo. Se essa «geração» (sempre entre aspas) se
distinguiu sensivelmente das que a precederam e das que se lhe seguiram pela
visão do mundo e pela maneira de vivê-la e se algo de realmente novo ela trouxe
à literatura portuguesa (como já não parece muito irritante admitir), não é
esta a ocasião ideal para analisá-lo. Até porque, se a Lisboa de então, esses
cafés e essas discussões intermináveis, esses anos de efusiva alegria de descoberta
e de possibilidade apenas, neste momento me ocorrem, e neste tom
inesperadamente saudosista que a mim mesmo surpreende, é só porque foi aí,
nesse clima exaltante de encontro e de largada, que conheci o Manuel da
Fonseca. E porque não sei compreender um poeta e a sua obra desligando-o e
desligando-a da realidade em que nasceu, de que nasceu, que ele veio, a seu
modo, enriquecer e, enriquecendo, transformar.
Quem o trouxe ao
nosso grupo? Não me lembro, não sei. Mas sei o que o levou até lá. Sei que foi
exatamente o mesmo que levava a juntarem-se nesses cafés de Lisboa, como nos de
Coimbra e do Porto, de Vila Franca ou de Santiago do Cacém, por essa mesma
data, muitos jovens, universitários ou não (e muitos não): um coração pulsando por todos os "humilhados e ofendidos " (líamos
muito Dostoievski, apesar do que terá parecido), uma obstinada recusa a ser
feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande
sonho de criar um literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa
pela libertação do homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar contra o
egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime,
a glorificação dum mundo podre. E na convicção, também, assaz ingénua, que só a
vulgar injustiça da fogosidade juvenil naturalmente ditava, de que toda a arte
não fosse essa, precisamente essa com que se sonhava, mais não fazia, no fundo,
do que ajudar a prolongar o mundo detestável. Porque o neorrealismo, que tanta
gente assegura ter nascido por decreto de não sei que forças tenebrosas,
insensíveis aos valores estéticos e cegas para tudo o que irremediavelmente
distingue um artista do homem comum de que ele emerge, foi assim que surgiu.
Assim, apenas assim, espontaneamente, da inquietação, da generosidade e da
ingenuidade – da fecunda, exaltante, fraternal ingenuidade ‑ desses tantos jovens
que foram ao encontro uns dos outros pelo seu pé, irresistivelmente movidos por
um mesmo espírito de recusa, uma mesma esperança no homem (que eles sabiam só
poder querer dizer: os homens), uma mesma necessidade interior de dizer tudo
isso em versos, em romances, em contos capazes de acordarem um país inteiro
para a sua própria realidade nacional. Que não era só a dos cafés das cidades, a
das academias e das revistas literárias antiacadémicas, como em breve se
começou a ver, sobretudo no romance, quando os gaibéus, as campaniças, os
gandareses apareceram em livros que, embora pouco bem recebidos pela gente do
oficio, depressa conquistaram um público vasto e novo, para o qual até então a
literatura não existia. E foi aí, nessa residência instável, creio que numa
tarde de grandes projetos, no desaparecido Café Madrid ‑ sonhava eu então, com
mais alguém, com um I Certame de Arte Moderna
(pinturas e poemas pelas paredes, conferências, recitais, concertos) que nunca
se realizou por falta de local apropriado ‑ , foi aí, nesse arsenal de
esperanças ou ousadias que ousadamente identificávamos com as esperanças do
século, que Manuel da Fonseca nos apareceu , tão irritado com as «torres de
marfim» (vocabulário obrigatório na época) e tão disposto a tudo reformar como
qualquer de nós. Nos apareceu, não se sabia de onde, com a sua gabardina quase
branca, um monóculo insólito, o seu sorriso malicioso de quem sabe sempre que
há ainda outra coisa e esse mundo de transformação que por força irrompia de cada
cena que contava, crescia, pouco a pouco nos envolvia numa realidade irreal mas
mais verdadeira do que a imediata (por isso a para isso éramos nós realistas),
cuja fecundidade literária, dentro de poucos anos, os contos de Aldeia Nova revelaram.
Eu pasmava, ao
ouvi-lo contar à roda dos amigos qualquer acontecimento trivial a que ambos
tínhamos assistido. Com a minha lamentável, incorrigível tendência para tentar
reduzir as coisas ao que elas efetivamente são, esforçava-me por trazê-lo à
sensatez: «Mas não foi nada disso!». Ele, porém, não interrompia a sua história
senão para dizer, com o mais delicado dos sorrisos, os olhos quase fechados:
«Foi tal, foi tal. É que não reparaste bem.» E continuava. E continuávamos
rodos a ouvir a sua história, que não era nunca a história, mas se animava de pormenores,
de iluminações burlescas, de situações irresistíveis. Foi assim que primeiro
conheci essas terras e gentes que haviam de encher os seus poemas e os seus
contos, sob nomes inventados ‑ Aldeia
Nova, Cerromaior, Valmorado, Albarrã... ‑ e de que Fonseca falava como dum
mundo fabuloso que atravessara há muitos anos, de antemão sabedor que teria o
dever de contá-lo um dia a toda a gente. E foi decerto ainda esse poder de
continuamente tudo recriar, essa atitude permanente de narrador-criador nato, essa
força espontânea de tornar fascinante a realidade mais comezinha («Olhai
o vagabundo que nada tem / e leva o sol na algibeira») que tão
depressa transformou o desconhecido dum dia , que nos aparecia com os bolsos
cheios de poemas (o sol na algibeira) , em fugas furtivas a um quotidiano intolerável
(abandonada a Escola de Belas-Artes, trabalhava numa drogaria; era este o seu
drama imediato), no amigo definitivo. No amigo com quem passei algumas das melhores
horas de então, pelo dia fora e pela noite dentro, falando, falando, falando,
lendo e ouvindo, ouvindo e lendo, projetando, reconstruindo o mundo todo, a
vida toda: «Domingo que vem / eu vou fazer as coisas mais belas //que um homem
pode fazer na vida.» No amigo que recebeu um dia, nesses tempos difíceis para
quem começava (um tempo sem editores, sem prémios de revelação ou de
confirmação, sem entrevistas nos jornais logo após o primeiro livro ou o
primeiro projeto de livro), a prova máxima de admiração: ver outros amigos ‑
que eram outros tantos autores de livros na gaveta ‑ quotizarem-se para que
fosse atirada para o mundo uma obra em que punham todas as esperanças e se
chamava Rosa dos Ventos: «Ó mar Atlântico / à beira donde sofremos, / quando
virá a maré-cheia da partida? / Ó ar de vendavais, / quando, quando?»
Atirada para o
mundo é bem o termo. Pois que esse e outros livros, que viriam, quase não
chegavam às livrarias (que não gostavam muito de mostrá-los), esgotavam-se de chofre,
havia quem os copiasse à mão, os soubesse de cor, os recitasse em pequenas coletividades,
perto e longe de Lisboa, onde a poesia nunca tinha tido entrada. E, na verdade,
se outros poetas houve e haveria mais sábios, mais originais na criação de
ritmos e imagens, mais justamente arrumáveis em caixa alta (porque não?) na
história da poesia, dificilmente alguns outros terão experimentado essa
indizível felicidade de saber que o seu canto ia ao encontro duma verdadeira
fome de poesia ardentemente sentida por milhares de pessoas. O que não era tão
extraliterário (é bom lembrar) como costuma dizer-se para arrumar o assunto sem
sobressaltos de consciência. E se passava (lembremo-lo também) alguns anos
antes de todos os Les yeux d 'Elsa e J'écris ton nom terem começado a dar a
volta ao mundo e a transformar, por moda literária e outras enganosas
circunstâncias, todo o mundo e ninguém em poeta resistente (que , afinal, já se
sabe, toda a gente sempre fora, mas que afinal, como também se sabe, o seria
por muito pouco tempo...)
Sim, já se falara
do Alentejo ou da Beira, de Trás-os-Montes ou do Algarve, de inquietações e
aspirações porventura bastante mais próximas das nossas do que então nos
parecia. O que só não víamos (quem o não via) porque o entusiasmo da descoberta
e a pressa apaixonada de gritá-la inevitavelmente tapavam o que só o tempo e a experiência
permitem descobrir. Mas basta, creio eu, comparar a poesia de uma Florbela
Espanca ou dum Francisco Bugalho com a de Manuel da Fonseca ou a prosa dum Fialho
(nos fatalmente citados «Ceifeiros») com a do autor de Aldeia Nova para se ver a mudança de perspetiva, que se operava. E,
com a mudança de perspetiva, o que profundamente se alterou na expressão
estética do Alentejo.
Do Alentejo?
Caminho perigoso…
Que me parece
perigoso desde que, em entrevista relativamente recente, Manuel da Fonseca
sentiu a necessidade de declarar: «Já houve um crítico que afirmou que eu nasci
para falar do Alentejo. Eu nunca falei do Alentejo como se fosse de lá ‑ como
se fosse um camponês a falar de camponeses, como se fosse um burguês da vila.
Faço-o sempre, ou tento fazê-lo, como homem da cidade que sou. Cidade, aqui, no
que o termo significa de interesse e de sentimento dos problemas do meu tempo.
Daí sentir-me de igual modo à-vontade para falar de Lisboa e mais de quem cá
vive.» («Diálogo com Manuel da Fonseca», em Gazeta Musical e de Todas as Artes n.º
109-110. Lisboa, abril-maio de 1960) Com estas palavras, suponho eu ter Manuel da Fonseca
desejado mostrar o seu desagrado pelo que eu próprio escrevi, há vinte e um
anos, a propósito da sua poesia e dos contos de Aldeia Nova, que acabava de aparecer. Terá Fonseca razão. Entre
todas as singularidades deste mundo, até pode acontecer que um poeta tenha razão
sobre a sua poesia. Mas quero antes crer que, ou o poeta não leu tudo o que
nessa altura sobre ele escrevi, ou alguma coisa esqueceu (vinte e um anos é
tempo!) desse distante artigo, aliás tão repassado de admiração, daquela autêntica
simpatia e vontade de entendê-lo, de que Fonseca, felizmente, sempre se viu
rodeado. Se, nesse artigo, eu efetivamente dizia: «Manuel da Fonseca não é um
poeta de múltiplos problemas. Manuel da Fonseca nasceu para revelar o Alentejo»
era para logo acrescentar esta homenagem máxima: «Mas não se julgue, por favor,
que se trata de escrever contos ou poemas sobre o Alentejo. Quando falo em
Manuel de Fonseca revelar o Alentejo, penso em qualquer coisa de muito
semelhante a o Alentejo se revelar a si próprio. Qualquer coisa como se aquelas
figuras que aparecem, a espaços, especadas, imóveis e sombrias no meio da grande
planície, começassem subitamente […] a falar-nos delas. da terra e dos senhores
que as esmagam.» (Mário
Dionísio, «Ficha 6», em Seara Nova,
ano XXI, n.º 700. Lisboa, 18 de abril de 1942, p. 151.)
Dizia-o então,
repito-o hoje, E repito-o, como é óbvio, não para limitar o belo poeta de
«Mataram a Tuna!», de «Poente» ou de «Manhã de Maio», o grande narrador de
«Nortada» ou de «Noite de Natal», de tantas páginas de Cerromaior, de algumas de Seara
de Vento, a qualquer populismo, a um regionalismo que nunca o tocou e com
que o realismo se viu e vê frequentemente confundido por quem o ignora, mas,
bem pelo contrário, para precisar de que imediato e circunstancial se nutre o
que há de mais universal e permanente na sua obra, de que verdade particular e
de que tom caracterizadamente local ela parte para atingir esse interesse e
esse sentimento dos problemas do seu tempo, a que Fonseca se refere. E a que eu
me referia.
Manuel da Fonseca
não é um ilusionista, um desses magos da palavra (e há-os de invejável perícia
e sedução) que baralham as cartas, cortam o baralho em quatro, separam os
naipes e os misturam para de novo os separem e tirarem o trunfo da manga do
casaco. Tudo nele é voz dum homem inteiro que fala sem rodeios. Que ignora os
rodeios. Que os detesta. Que não pode separar-se, nem aos géneros, nem aos
tons, nem aos temas. As palavras, cujo segredo possui na própria naturalidade e
na máscula candura da sua origem popular, são para ele meio de expressão
apenas. Não as trabalha, trabalha com elas. Ele mesmo disse na citada
entrevista: «Ser espontâneo dá-me muito trabalho.» Mas este trabalho refere-se,
sem dúvida, a um domínio muito diferente do da reinvenção de carácter
linguístico, da criação vocabular ou da desarticulação sintática. Não se trata
nunca, para ele, de jogar com possibilidades adormecidas que as palavras
ocultam e de encontrar uma realidade própria e nova nesse mesmo jogo, que
expressão ainda é. Quando Manuel da Fonseca diz: «É preciso que a realidade
seja já em mim pura invenção para que eu a reconstrua, para que eu a cante» («Diálogo com Manuel da Fonseca», em Gazeta Musical e de Todas as Artes, número
citado), parece-me
evidente estar ele a referir-se a um campo preferentemente psíquico, aos
mecanismos da recordação, à transfiguração pela distância, à tal «memória das
coisas mais distantes», de que falou. A referir-se, e apenas, a uma busca de
unidade interior, psicológica e temática, sentimental e ideológica, que o dia-a-dia
põe em perigo e só a surda reelaboração de anos, o velhíssimo mergulho no
«tempo perdido», permite reencontrar: «Só com o tempo», diz Fonseca, «a
experiência adquirida ganha em humanidade aquilo que poderá perder em
realidade.»
Unidade de homem
e unidade de obra (eis-nos bem longe do famoso labirinto em que o artista
moderno gostosamente se divide), ambas tão sólidas, com efeito, que se torna
impossível encontrar uma separação essencial entre a sua poesia e a sua prosa
de ficção (elas interpenetram-se), como entre o seu conto e o seu romance, as
personagens das suas narrativas e as da sua poesia (poesia com personagens, é
verdade), entre estas personagens todas e o próprio poeta . O «bêbado do Zé
Limão» tanto aparece na poesia, «Nocturno», como num conto, «Névoa». O mesmo
sucede com Zé Cardo. Quase o mesmo com o sapateiro Estroina. Com quase todos e
quase tudo. A aldeia de Planície («Tudo
isto tão parado / e o céu tão baixo») não deve ser longe, de qualquer modo não
está literariamente muito longe do descampado onde «Viagem» começa: «E, em
volta, sobreiros e trilhos de carros. Tudo deserto e silencioso.» O Rui de «O
primeiro camarada que ficou no caminho» não é o menino de «Sete-estrelo», o
mesmo de «Viagem» e o mesmo de «Nortada»? E ainda o mesmo que, com o nome de Adriano,
nasceu em Cerromaior e se ausentou seis anos por Lisboa, nos estudos? O mesmo
ainda que fala pela boca do poeta nos «Poemas da Infância» ou pela boca do qual
o poeta fala? Por sua vez, o homem cercado, tanto é o Tóino Revel de Cerromaior como o «Maltês» de Planície ou o Palma de Seara de Vento. Ou o poeta. Sempre e só
o poeta, mesmo quando se reinventa na pele dos outros. O poeta cercado pela
vida: «Mas tudo isso, que era tudo para nós, / não era nada da vida!... / Da
vida é isto que a vida faz. [...] / isto de tu seres a esposa séria e triste / de
um terceiro-oficial de finanças da Câmara Municipal!...» O poeta cercado e
desafiando o cerco: «Que o meu canto seja / no meio do temporal / uma chicotada
de vento / que estremeça as estrelas / desfaça mitos / e rasgue nevoeiros / ‑
escancarando sóis!» E tudo isto ‑ aí teremos de chegar ‑ tudo isto, que não
deve confundir-se com mera repetição de figuras e assuntos, pobreza de
imaginação, tudo isto obsessivamente se processa em função do alentejano e do
Alentejo, com cor e sabor de Alentejo, com solidão e desespero e humanidade e
violência e sobranceira independência de alentejano e de Alentejo: é Alentejo.
São Alentejo as suas figuras principais e as que ele misteriosamente ergue
antes nós, com uma nitidez surpreendente, em dois traços e logo faz
desaparecer. É Alentejo toda essa poesia de doce espanto, doce e rude, como
outra não temos, da «terra bravia de fomes / com piteiras aceradas / como
pontas de navalhas / em esperas de encruzilhadas», dessas aldeias perdidas («Nove
casas. / duas ruas, / ao meio das ruas / um largo, / ao meio do largo / um poço
de água fria»), desse «Horizonte / todo de roda / caiado de sol», desses
«campos, campos, campos / abertos num sonho quieto», a poesia desta imensidão
que se diria deserta («Quem vem lá na distância, / que nem a seara mexe / nem o
pó se levanta / dos caminhos sem vento?») e é afinal habitada por uma
humanidade que ninguém ainda descobrira, porque é preciso tê-Ia visto de perto
e de dentro para se saber que existe. Que existe. Que não é só «rebanho que se
levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe, vergado pelo cansaço e
pela noite». Que respira, que ama, que sonha, ri e chora como qualquer de nós:
a Maria Campaniça («Debaixo do lenço azul com sua barra amarela, os lindos
olhos que tem!»), o Jacinto Baleizão («que foi a África»), a Rosa Charneca, de
barraca de feira em barraca de feira, os Antónios Valmorim, por quem tremem «os
seios de Nena / sob corpete justinho», a densa, imensa multidão anónima dos
porcariços, dos vagabundos, dos malteses, que afinal têm nome. E é desse
Alentejo redescoberta que esta poesia nasce e cresce. Esta poesia que sobe duma
noite igual à de «Viagem»: «… um grupo de homens, do meio do largo, abre a voz
cantando. É uma toada lenta e desgarrada, feita de vozes rudes». Que sai da
terra como a canção de Cerromaior: «...
não era mais que um lamento esvaído entre o céu baixo, de nuvens pardacentas e
a planície vermelho-escura, empapada de água. Semelhava um apelo dorido aos
animais e à terra». Como esse canto que se confunde com o vento, que é o mesmo
vento que atravessa ‑ instabilidade e augúrio ‑ toda a obra do autor: «Adriano sentia
os bandos afastarem-se. Por fim, não sabia já se ainda era a canção ao longe,
ou o gemer do vento pelas ruazinhas escuras.» E nós sabemo-lo? Lida (ou ouvida)
a poesia de Manuel da Fonseca, poderemos já separá-la dessa mesma terra e
desses mesmos homens, carne e sangue da planície sem fim, onde nascem, penam e
morrem? E poderemos voltar a pronunciar a palavra Alentejo sem forçosamente a
evocar?
Não há só
camponeses nesta voz. Já se sabe que não. Manuel da Fonseca vê também ‑ e com
que prazeres de minúcia... ‑ o mundo da vila e da cidade. E vê-o, muitas vezes,
com os olhos duma pequena burguesia que tem ainda um pé no campo e outro na
urbezinha provinciana, já irremediavelmente enleada nas rodagens do papel
selado, mas onde a revolução industrial leva tempo a penetrar. A chegada da
diligência, com gente coberta «do pó das longas distâncias» é um acontecimento,
tanto para os homens do Largo como para os empregados da Câmara, «fechados na
penumbra das paredes, / curvados pràs secretárias / fazendo letra bonita».
«[...] / carimbando, pondo selos, / bocejando, bocejando, / bocejando» ou para
os «empregados no comércio / desenrolando fazenda medindo chita / […] sentados
nas secretárias do comércio / cabeças pendidas jovens-velhinhos / escrevendo no
Deve e Haver somando somando». As visões e alusões desta obra enchem-se de acontecimentos
e sentimentos triviais da vida corrente duma pequena burguesia medíocre e
suficiente, que, aliás, Manuel da Fonseca sempre vê e narra e canta e ironiza
com a ternura de quem pensa que, no fundo, os homens são, em grande parte.
apenas aquilo que as circunstâncias lhes permitem que sejam.
Obra que
documenta. Bem o vi, não há muito, durante os debates dum congresso científico,
realizado em Lisboa. Eu ouvia, da boca de especialistas, a situação dos doentes
mentais no nosso campo, especialmente no Alentejo. Via esses «campos, campos,
campos» sem um psiquiatra, esses doentes conduzidos pela estrada entre os
cavalos da Guarda Republicana, atados a rodas de carro, metidos na prisão, à falta
de hospital e de médico. Seguia essa viva descrição de casos concretos de
rezas, benzeduras, bruxarias. Ouvia condenar «a existência de preconceito de
segregação sistemática dos portadores de doenças e anomalias mentais, preconceito
que importa combater, embora seja tolerado e, de certa forma, apoiado pela própria
legislação vigente» (Actas do I Congresso Nacional de Saúde
Mental. promovido pela Liga Portuguesa de Higiene Mental. Lisboa, novembro de
1961, p. 266). E, enquanto o
ouvia, não me saíam da cabeça as dramáticas cenas do louco Daninhas na cadeia
de Cerromaior, com que abre o romance
de Manuel da Fonseca, escrito dezassete anos antes. Na sua linguagem técnica,
os especialistas falavam de muitos homens como aquele, «completamente nu, com
as mãos escuras enclavinhadas nos varões das grades», gritando. Falavam daquele
«corpo mirrado, saliente de ossos», que Fonseca descrevera dezassete anos antes:
«Só as pernas avolumavam ponteadas de buracos negros. E, na cabeça calva, faces
lívidas, queixo recuado, os olhos guardavam um terror de demência, dilatados de
espanto pelo próprio grito que lhe escancarava a boca.»
A obra de Manuel
da Fonseca documenta, como toda a arte. E documenta, muitas vezes, de maneira
direta: os «bandos de camponeses, homens e mulheres envoltos em mantas» que,
ainda nesse Natal, haviam percorrido as ruas da vila, cantando loas ao
Deus-Menino, «eram gente sem trabalho»; a telefonia que surge, de súbito, na
venda duma aldeia desgarrada transforma os homens e as suas relações, a sua
visão do mundo. Mas tal documento é quase involuntário e nunca um rol de
provas. Obra de poeta, e de poeta medularmente avesso à objetividade, ela é
sempre intencional e parcial sem a intenção de sê-lo. Enquanto o que se passa
no campo (se conta, se comenta, se imagina) é nela, geralmente, apaixonado e
violento, desgraçado e heroico, profundamente humano, grave, limpo, o que na
vila se passa (se conta, se interpela, se imagina) é, quase sempre, ou ridículo
(o Senhor Administrador a quem a pedrada duma criança leva o chapéu e logo
pensa num caso de política; a Menina Tonta que «tem a cabeça cheia de farelos»;
o pobre do Sr. António ‑ «tão novinho e já era o Sr. António» ‑ que disse «Vou
morrer. / E morreu! morreu de congestão!»), ou repugnante (a Mariazinha Santos
«que um dia se quis entregar / que era o que a família desejava / para que o
seu futuro ficasse resolvido»; «o homem bem-amado entre todos / com uma nota de
cem na mão estendida»), ou apenas mesquinho. Mesquinho de incompreensão («que
era indecente aquela marcha / parecia até coisa de doidos»), de ambição
medíocre, de preconceitos míseros, que desvirtuam e lentamente asfixiam uma
imagem ideal de vida que, na poesia de Manuel da Fonseca, quase sempre se identifica
com tudo o que a infância e a adolescência têm de ingénuo e generoso e transparente
e que a vida embacia, adultera e destrói.
Imagem e
destruição que decerto explica o conceito de liberdade do poeta, que, desde os
primeiros versos, parece obedecer a um impulso irreprimível, entre tecido de
ansiedade e desencanto, muito mais voltado contra a sociedade ‑ a sociedade que
impõe normas, deveres, limitações ao puro prazer individual de viver ‑ do que
contra esta ou aquela sociedade. Dum lado, a Vida – invocada, a princípio,
deslumbradamente, com maiúscula, a vida «olímpica / firme // gloriosa», o
secreto encantamento perante os «seios nascendo debaixo das blusas», o Tóino
que uma vez chegou ao largo «com um vidro extraordinário», as manhãs de maio,
com o seu céu azul, «assim azul, sem mais nada do que a cor azul […] feito para
este não pensar: / as mãos nos bolsos e o passo lento…» (tudo logo, contudo,
amargamente cortado por um remorso impertinente: «E é isto o que não devia ser
em mim: / ‑ que importa que não sirvas para mais nada, / manhã de maio, / se para
isto serves!»). Do outro lado, a vida (já sem maiúscula) organizada em formas sociais
que contrariam e esmagam o que há de mais instintivo e intuitivo no poeta. No
poeta que «tem olhos de água para refletirem todas as cores do mundo» e
«escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no
mundo». Que defende, contra tudo e todos, a sua ingenuidade original, a sua
imaginação que é livre e livre se quer, o seu secreto conhecimento «de grutas,
de barrancos, / e de passagens desconhecidas». Que os defende contra as prisões
que vê na escola, no escritório, na repartição, na rede pegajosa de obrigações,
deveres, convenções, preconceitos que tornam irrespirável (sobretudo) a vila e
a cidade.
Nos «Poemas da
Infância», toda a saudade vai para «as tardes assim / sem livros nem ardósia».
Em «Tragédia», a tragédia do pobre Sr. António é pela escola que começa: «Foi
para a escola e aprendeu a ler / e as quatro operações de cor e salteado. / Era
um menino triste: / nunca brincou no largo.» Na «Manhã de Maio», essa odiosa
recordação domina-o: «A escola... Isso foi um inferno: / tinha que fazer contas
/ e perdia os dias inteiros sentado na carteira, / enquanto, lá fora, um moço
que nem tinha nome, / e era exposto da Câmara, / corria pelas ruas / e ia armar
aos pássaros, nos bebedoiros!» Em O Fogo
e as Cinzas, o narrador lembra com visível orgulho: «Na escola éramos
temidos. Passávamos as tardes de castigo e, um dia, armámos uma desordem
medonha. […] Fomos expulsos.» E, no «Retrato», o herói conta a imensa satisfação
com que, após o exame, verificou ter esquecido de repente tudo o que aprendera
na escola: «Senti-me límpido e feliz, de novo criança. A vida era bela, e
diante de mim abriam-se caminhos radiosos: ia voltar a ser um pequeno rei na
minha vila!» O que anda bem próximo ‑ teremos de sublinhá-lo ‑ do conceito de
liberdade expresso por Fernando Pessoa no célebre poema que começa: «Ai que
prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer! / Ler é
maçada, / Estudar é nada.» e que termina, como todos sabemos, com o argumento
definitivo: «O mais do que isto / É Jesus Cristo, / Que não sabia nada de
finanças / Nem consta que tivesse biblioteca…» E o que está na raiz e na seiva
dum grito tão espontâneo e tão belo como «Mataram a Tuna!» ‑ pequenina
obra-prima, onde todos os elementos estéticos da poesia de Manuel da Fonseca se
juntaram num sortilégio que nos seduz e arrasta, com os seus «domingos amarelos
verdes azuis encarnados / vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos»,
sem nos deixar tempo nem vontade para atentarmos um pouco naquele «qualquer
coisa de louco e heroico», que é, todavia, a chave do seu pensamento poético.
Não será evidente
a relação entre aquela imagem ideal de vida, este conceito de liberdade e o
partido que o poeta espontaneamente sempre toma pelas figuras que, vítimas da sociedade
(ou da sua incompreensão ou da sua perseguição organizada), de algum modo vivem
à margem dela ou em conflito com ela e contra ela se erguem, sozinhas, armadas apenas
com a força do seu amor ou da sua raiva, dispostas a tudo, exceto a capitular?
O vagabundo, «sem escala marcada / nem hora para chegar» mais o seu «desejo de
ir embora pelo mundo», com «o céu por teto e o vento como lençóis», mas «o sol
na algibeira»; o maltês, que não rouba («guarde a espingarda, senhor, / sou um
homem sem trabalho») e, muito menos, pede («Não aceitei como esmola: / antes
roubar que pedir»); o homem só que faz frente a quantos vierem («Cercaram-me
num montado; / puseram joelho em terra; / gritaram que me rendesse / à lei dos
caminhos feitos. / Mas eu olhei-os de longe, [...] / O rosto apenas virado, / que
só vi em meu redor / dez pobres ajoelhados / perante mim, seu senhor»), o homem
só que faz frente a quem vier e ao que vier, sem permitir que o lamentem («Dá-me
raiva ouvir seja quem for lamentar-se. Eu nunca me lamento», diz o Zorro de «A
Testemunha»; e o Palma da Seara de Vento:
«Eu não quero que me chorem»), o homem só, destemido, bravo, de poucas falas e
gesto rude e pronto, que pode estar do outro lado mas tem jus à admiração desde
que bravo (o tio de Adrianito ou Rui Parral, o «Maltês» ou António Vargas, o
Palma ou Adriano Serpa), eis a figura mais querida de Manuel da Fonseca, mais acabada,
mais cuidada, o seu símbolo maior, o seu herói, eis o poeta.
Ei-lo inteiro,
pelo menos até às últimas páginas de Seara
de Vento, onde o grito final da velha Amanda Carrusco («Digam à minha neta!
Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não pode nada») parece anunciar como
que uma canalização de todo esse desespero de desafio, dessa violência primitiva
que em muitos casos mais parece um desvairado amor que se volta do avesso por
não poder compreender-se nem cumprir-se, desse ambiente de navalhas, de vento, de
luar, e de tudo o que tão irresistivelmente o aproxima de Lorca e tão
decisivamente dele o afasta. Como acontece nesse poema de espanto e encanto
que, daqui a muitos anos, alguém talvez suponha um genuíno romance popular: «Não
era noite nem dia. / Eram campos, campos, campos.» Espanto e encanto onde
prossegue, já com um sabor e num halo de lenda, o prestígio do herói que tudo
dobra à sua vontade, o amor supremo e fatal, a vida toda que se joga num
minuto, e, ao fundo, Alentejo.
E, nesse fundo de
Alentejo, o homem todo. Cercado. Cercado e violentamente trabalhado por uma
angústia que nunca é, para Manuel da Fonseca, de natureza metafisica e se
explica, ao contrário, por questões bastante físicas, como sejam o pão e o
trabalho. Confronte-se o À espera de Godot
com o poema dramático A Casa no Vento.
Nos dois casos, dois homens que se apoiam nos extremos da desolação. Mas ,
enquanto na peça de Beckett os homens perderam há muito toda a noção do que são
e do que esperam, no poema de Fonseca a angústia que os domina sabe, muito chãmente,
a fome. Eis o avesso de Beckett:
«Segundo Homem ‑
[...] Um pedaço de pão ou uma febra assada... Hem, que dirias tu a uma febra
assada?
«Primeiro (angustiado) ‑ Cala-te.
«Segundo ‑ E uma
golada de vinho?...
«Primeiro ‑
Cala-te! (numa brusca ansiedade)
Talvez que nessa terra a gente consiga, talvez!...»
É a fome que faz
dos outros dois homens ‑ dois homens exatamente como eles, açoitados pela mesma
ventania ‑ os ladrões que assaltam o casebre. «Ao que a gente chegou», diz o
Segundo Ladrão. «Assaltar quem tem tanto como nós…» E é ainda a fome que vai
mergulhando na loucura o Primeiro Homem, uma loucura atravessada por um fio de
lucidez, de onde brota a frase final, tão obstinada e precisa na sua
imprecisão: «Tu não ouves? Não ouves que nos chamam, lá das nossas casas? É de
lá, é de lá que gritam!...»
Toda a temática
de Manuel da Fonseca se reduz a dois motivos, intimamente solidários, que, em
vários tons e andamentos, sem cessar se repetem: uma ansiedade de viver em conflito
com uma realidade social que torna essa vida impossível de ser plenamente
vivida e uma decisão de intervir nos destinos do mundo o, que, optando por um
ato de desespero, acaba por esbarrar com a sua própria ineficácia que,
entretanto, se não reconhece como tal e torna, assim, possível o constante
recomeço. Do primeiro ao último dos poemas de Fonseca, incluindo tudo o que na
sua prosa é ainda poesia, esses dois motivos maiores, desdobrados, ou reduzidos
a pequenas sínteses, se entrecruzam e repetem. A incompatibilidade com a vida e
a ansiedade de vida («Que ansiedade de mar largo, / ai que desejo de vida!»); a
necessidade de agir («… horas abertas, / rasgadas por minhas mãos ansiosas / de
lúcidos temporais! [...] // Penso: / se as não rasgar por minhas mãos / a Vida
não as dará jamais»); a convicção de que agir é partir («Eu vou-me embora para além
do Tejo / não posso mais ficar!»; «e parto / para os longes mais longes das
distâncias mais longas / sei lá de que destinos ignorados»). Mas, ao contrário
do que faria esperar tanta insatisfação e ansiedade, o poeta não parte, ninguém
parte: «Só nos peitos rugem marés-cheias de largada, / só os olhos são barcos a
navegar»; «E fico desgraçado de ficar.» E ilude a necessidade de partir pelo
grito, pelo ato de desespero, de desvairado desafio, que em toda a obra se
repete: o camponês de «Nortada» pega fogo à casa do lavrador; o Tóino Revel, de
Cerromaior, incendeia a eira da Casa
Vã; António Palma entrincheira-se no casebre e resiste alucinadamente até ao
último cartucho. Um grito de raiva contra o mundo inteiro, que logo se revela eco
apenas dessa mesma raiva, mais fraqueza que força, e que, impotente, se esbate
e muda em desalento total: «Em que dia nos vamos suicidar?» Mas, mal s e
extingue, regressa: «Abre os olhos e olha / abre os braços e luta / Amigo / antes
da morte vir / nasce de vez para a vida.» Uma «vida» a que só falta a ingenuidade
da maiúscula para ter a comovedora transparência das «Sete Canções da Vida» ou
das «Canções da Beira-Mar», onde tudo começou, onde tudo recomeça. Sempre a
partir de zero.
E é por aí,
decerto, que a obra de Manuel da Fonseca atinge um valor de símbolo que excede
o mundo pessoal do poeta, exprime um clima e nos faz compreender a aceitação invulgar
e imediata que sempre a acolheu. Porque nos retrata. Porque ela sonha e grita,
e, sonhando e gritando, sobretudo explica. Nos explica.
Dizem que a arte
diretamente ligada à realidade imediata corre o perigo de desatualizar-se
depressa. Que envelhece. Que passa. Sobretudo numa época em que tudo à nossa
volta se altera com rapidez surpreendente. É bem possível que muitos
terceiros-oficiais de finanças já não se reconheçam no «Romance do
Terceiro-Oficial de Finanças» nem no «Coro dos Empregados da Câmara». Com
efeito, talvez já não se aborreçam do mesmo modo. Devem já ter o seu automóvel
(comprado a prestações), com que andam para trás e para diante nas ruas da vila
e nas estradas que vão dar a outras vilas. A filha da Senhora-vizinha de crepes
de viúva e a do Dr. Valente irão agora, sem dúvida, até ao café fumar o seu
cigarro e falar do caso da Marilyn com os empregados do comércio local, que
ligam o transístor para o mesmo posto que se está a ouvir na venda de António Barrasquinho.
Certamente os rapazes do Largo se desinteressaram da Lua. Têm a televisão. O
Largo deixou de ser o centro do mundo. É apenas um cruzamento de estradas.
Mas, apesar disso,
através disso, contra isso – talvez por isso ‑, a poesia de Manuel da Fonseca
continua a existir com a sua frescura inicial e a sua energia, a sua capacidade
de comover e seduzir, o seu reservatório de sonho, o seu mistério. Porque, se
algum mistério na poesia há, só pode ser este interminavelmente descobrir e nos
fazer descobrir que em cada coisa que o homem produz e em si produz ‑ uma palavra,
um ato de renúncia ou de revolta, um silêncio de espanto ou uma marcha
Almadanim – em cada coisa, que sem ela morreria, sempre vive e arde uma riqueza
interior que não se esgota, a lava da tal razão que a razão desconhece, uma
força de prodígio, um apelo irresistível que vai de homem a homem, que muda,
mudará os homens e as coisas; o apelo que ilumina e aquece toda a obra de
Manuel da Fonseca, todo o seu encantamento e toda a sua violência, toda a sua
rudeza e toda a sua ternura: «Tu não ouves? Não ouves que nos chamam lá das nossas
casas? É de lá, é de lá que gritam!...»
Mário Dionísio, 1969
Prefácio à Obra Poética de Manuel da Fonseca,
Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor, pp. 19-39
A LÍRICA SOCIAL DE MANUEL DA FONSECA
Mesmo com a clara adesão do poeta às
causas sociais que se revela na sua poesia, através da sua escrita, ele soube
demonstrar que ética e estética não são valores antagônicos na produção de uma
obra literária, mas podem estar presentes de forma coerente e equilibrada. Para
tornar sua poesia um espaço privilegiado de crítica social, o poeta empregou
algumas estratégias discursivas, tornando-a repleta de particularidades. No que
se refere à linguagem, Manuel da Fonseca conseguiu, apesar do objetivo do
movimento neorrealista em utilizar apenas uma linguagem clara, objetiva, sem
sentidos ocultos, ir além e através de uma escrita que privilegia a oralidade,
a espontaneidade, comungar com a realidade sofrida do homem alentejano e
expressá-la de modo prosaico e comovente, tornando sua poesia imbuída de um
lirismo encantador. Além do mais, ao utilizar-se de termos simbólicos na sua
linguagem foi capaz de retratar de forma mais nítida e poética a atmosfera de
opressão que pairava sobre as vidas dos homens da planície alentejana e sobre
Portugal.
Com o seu desejo, a sua ânsia de viver
que surge como a tônica da temática da sua poesia revelou versos que podem ser
considerados hinos à vida e também demonstram como a vida pode ser destruída,
desvalorizada, oprimida, injustiçada, aprisionada de várias maneiras. Situações
essas que tornam o ser humano frustrado, desesperado, desesperançado, sem expectativas
de um futuro melhor. Entretanto, o único modo encontrado pelo poeta para combater
as agressões, as privações à que o homem oprimido é submetido foi através da revolta
que se expressa através do grito. Ou seja, da denúncia aos conflitos que
afligem a espécie humana em um ambiente social que se mostra adverso a um
projeto de vida digna e em liberdade, isto é, a uma vida plena de direitos e
livre de opressões e convenções. Ao dar preferência a temas relacionados às
formas de privações e de misérias de que os homens das classes menos
favorecidas são vítimas, consequentemente o poeta se elege também como porta-voz
dessas classes e por isso procura apontar e denunciar as injustiças sociais.
Injustiças que o poeta encontra na
região do Alentejo um campo fértil para tentar combater através do seu canto. É
esse espaço geográfico, humano e social retratado nos poemas de Manuel da
Fonseca que aparece como símbolo maior das formas de opressão perseguidas pelo
poeta para lutar. Mesmo que o Alentejo presente nos seus versos seja uma recriação
da sua habilidade imaginativa, ele tem a sua gênese no espaço real, onde o
poeta viveu e observou a realidade desse povo. Por isso, o Alentejo de Manuel
da Fonseca revela, além dos aspetos geográficos desse espaço, os aspetos
humanos e sociais. Ou seja, a realidade de um povo que leva uma vida sofrida em
razão das relações sociais, econômicas e políticas que se estabelecem nesse
espaço. Relações que se referem à exploração do trabalho dos camponeses pelos
grandes agrários e que tornam esse espaço um campo onde a luta de classes é bem
evidente e searas de ódio, de violência e de miséria são semeadas.
Searas que se apresentam bem manifestas
na configuração das personagens presentes nos poemas de Manuel da Fonseca. Suas
personagens demonstram todo um universo de frustração, de revolta por levarem
uma vida cujas condições sociais são desesperadoras. Por representarem classes
sociais exploradas por um sistema econômico e político opressor essas personagens
tornam-se sínteses desse período histórico sombrio que envolve a região e Portugal.
E também por isso, dessas personagens, especialmente da figura do maltês,
brotam uma força e uma coragem que faz delas o símbolo de uma resistência às
injustiças que o homem desse período sofreu.
Lírica e sociedade: um olhar sobre a obra poética de Manuel da Fonseca,
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, Universidade Estadual
de Maringá, 2012.
AS ESTRATÉGIAS CRÍTICO-SOCIAIS NA OBRA POÉTICA DE MANUEL DA FONSECA
As estratégias discursivas utilizadas pelo poeta produzem
uma poética de cunho social, neorrealista.
Analise a obra poética de Manuel da Fonseca, seguindo as
seguintes linhas de leitura propostas por Rosilda Bergamasco:
- a linguagem utilizada pelo poeta, em especial, o uso de símbolos como forma de revelar aspetos da realidade social e política de Portugal;
- as temáticas presentes na poesia e que comprovam o comprometimento do poeta com a vida e a sua luta contra todas as formas de cercear e privar o ser humano de uma vida digna e em liberdade;
- o espaço alentejano retratado pelo poeta e que revela tanto a beleza dessa região quanto as relações sociais, económicas e políticas que se estabelecem e tornam o Alentejo povoado por uma gente sofrida e injustiçada;
- e, a presença de personagens nos poemas de Manuel da Fonseca e que evidenciam as peculiaridades do homem alentejano e as injustiças sociais sofridas por homens que habitualmente não tem direito a voz.
Bergamasco: 2012
OS ELEMENTOS SIMBÓLICOS NA POESIA DE MANUEL DA FONSECA
A NOITE – Os
momentos difíceis enfrentados por Portugal são simbolizados por um elemento
recorrente nos versos de Manuel da Fonseca: a noite. […]
Assim, a noite nos poemas de Manuel da Fonseca é um elemento
quase sempre com conotação negativa, um momento que carrega consigo a dor, a
morte e a solidão e por essa razão custa a passar.
O VENTO ‑ Símbolo
universal da pura cólera, dos elementos em fúria, em vários poemas de Manuel da
Fonseca, o vento é representado dessa forma e age transformando negativamente o
espaço retratado. Porém, o poeta pretende chamar a atenção do povo para a
necessidade de lutar contra esse “vento” e mostrar que é possível combatê-lo.
O SOL ‑ Símbolo de força, de vigor, de
entusiasmo, de vida. Características essas que estão faltando ao povo
português, que se encontra envolto nas brumas de uma noite infinita. O sol
funciona também como denotação de um estigma, nomeadamente quando o poeta
mostra a vida sofrida dos trabalhadores do campo.
A ÁGUA – em Manuel da Fonseca a água é uma promissão, uma
necessidade, um valor do que é natural e espontâneo.
Nota-se, assim, que os elementos da
natureza na poesia de Manuel da Fonseca são utilizados para compor e simbolizar
o cenário de atrocidades e desgraças que se abatem sobre Portugal, como é o
caso da noite e do vento, bem como simbolizam a forma do poeta revoltar-se e
tentar levar o leitor a lutar para que esse cenário se transforme em um espaço
puro e transparente como a água, alegre e lúcido como um dia de sol, sem espaço
para crimes e atitudes obscuras.
ÚLTIMA ENTREVISTA A MANUEL DA FONSECA
(1993)
Morreu um neorrealista, um escritor que recusava esse
rótulo de estilo - e, com ele, a memória duma época de miséria e ousadias, de
tertúlias e repressão. Ficaram livros, depoimentos, as crónicas nos jornais, e
a entrevista que hoje publicamos, a última que deu, no poiso duma das suas
últimas tertúlias
Nuno Lopes
MANUEL DA FONSECA
"Escrevo porque sou do contra"
Ao
princípio da madrugada do passado dia 11 de Março falecia Manuel da Fonseca.
Contava 81 anos de idade e mais de meio século de atividade literária. Esta é
provavelmente a sua última entrevista, dada no seu paradeiro habitual, o Café Expresso, ao largo da Misericórdia, em Lisboa -
primeira de uma série, integrava-se num projeto que procuraria traçar o perfil
não só do escritor como do cidadão.
Manuel da Fonseca nasceu em Santiago do Cacém e começou por escrever no jornal local: «Há sempre aquela ‘gavetazinha’ que um rapaz tem na escrivaninha e que sem o saber vai lá uma pessoa de família, uma tia... e foi assim que começaram a aparecer os meus primeiros escritos em alguns jornais. Eu escrevo, não desde 38, mas logo no início de 30, as pessoas é que não sabem e não me cabe informá-las.»
Manuel da Fonseca nasceu em Santiago do Cacém e começou por escrever no jornal local: «Há sempre aquela ‘gavetazinha’ que um rapaz tem na escrivaninha e que sem o saber vai lá uma pessoa de família, uma tia... e foi assim que começaram a aparecer os meus primeiros escritos em alguns jornais. Eu escrevo, não desde 38, mas logo no início de 30, as pessoas é que não sabem e não me cabe informá-las.»
EXPRESSO - O Manuel da Fonseca é considerado um precursor do neorrealismo em
Portugal. Há um tempo atrás afirmou que não era tanto assim, neorrealismo era
uma palavra que nem lhe passava pela ideia...
MANUEL DA FONSECA - E assim é! Sinto-me mal em relação a isso. Eu nem sequer disse que era
neorrealista. Foram os críticos que acharam que eu era neorrealista, eu não
disse nada. No fundo, era um indivíduo que lá tinha a minha ideia sobre o que
seria - isso era antes uma palavra para defesa da vida e à defesa da Censura.
Foi uma palavra que o Joaquim Namorado arranjou para fugir à Censura.
EXP. - Se tivesse de lhe dar um nome, qual seria?
M.F. - Talvez dissesse antes uma literatura de realismo dialético, mas não sei.
HERBERTO HELDER - (intervindo da mesa ao lado, que o Café Expresso é tertúlia dos clientes
de sempre) Um realismo lírico...
M.F. - Lírica é toda a nossa literatura, até a mais dramática. A gente começa a
escrever porque são aquelas coisas que acontecem perante o ambiente em que nós
nascemos. Quando nascemos somos contra, é próprio de quem nasce estar contra os
que cá estão. Toda a arte está contra. Escrevo porque estou contra!
Comecei a escrever porque de tudo o que já experimentara era o que melhor fazia. Escrevi em vários jornais - ganhava bem, cerca de 400$00 por crónica, e escrevia duas por semana. E certo que no República ganhava menos, mas eles também tinham dificuldades e não era só isso que contava. Acho que o escritor deve ser um profissional e como tal viver da economia própria do produto que faz, e isso, é claro, também obriga a determinadas coisas...
Comecei a escrever porque de tudo o que já experimentara era o que melhor fazia. Escrevi em vários jornais - ganhava bem, cerca de 400$00 por crónica, e escrevia duas por semana. E certo que no República ganhava menos, mas eles também tinham dificuldades e não era só isso que contava. Acho que o escritor deve ser um profissional e como tal viver da economia própria do produto que faz, e isso, é claro, também obriga a determinadas coisas...
EXP. - Como por exemplo?
M.F. - A publicidade, as entrevistas, os comentários...
EXP. - Isso não será fazer parte de uma engrenagem em que tempos atrás se
recusava a participar?
M.F. - E não participo. Eu não sei de nada. Isso é com o editor, ele é que
sabe. Os meus livros por exemplo, continuam a vender. Não se diz nada, não se
faz publicidade, mas eles vendem!
EXP. - E quanto a uns livros que estão prometidos?
M.F. - Se começo a escrever, nunca mais paro. E dia e noite e não tenho
sossego. Por isso estou parado. Também não preciso. Arrumei uns papéis e logo
se verá. De facto, tenho um que começaria com o fim da 1 Guerra Mundial e
depois viria até ao 25 de Abril. Seriam três volumes, mas não sei... E
depois, é como lhe digo, não ando tão necessitado como isso. Talvez noutro
tempo.
EXP.- Trata-se de um romance Histórico?
M.F.- O romance histórico é um romance menor; é uma pequena história, e esta é
própria do indivíduo e não do todo. Não é criação.
EXP. - E o sucesso do Memorial do Convento?
M.F. - Tem uma coisa rara que era muito comum no século XIX e que o Saramago
faz muito bem, a ironia. Mas não deixa de ser uma pequena história.
EXP. - Então a literatura deve apenas refletir o presente?
M.F. - Claro está! Não há futurismos na literatura. O único homem que falou de
futuro, e no sentido técnico, é o Júlio Verne. De resto, não há futuro, o
presente já é futuro.
EXP. - Veio para Lisboa muito cedo. Como vê a evolução da cidade?
M.F. - Lisboa é muito bonita e eu gosto muito: é uma aldeia. Veja por exemplo a
Estefânia. Aquele bairrozinho para onde vim morar quando vim do Alentejo está
agora irreconhecível; e ainda bem. Lisboa está diferente e para melhor, mas
ainda continua a ser aquela Lisboa que me levou a gostar ainda mais do
Alentejo, do meu Alentejo. Tudo é ao contrário desse Alentejo, e por isso eu
aprendi a gostar ainda mais dele. As pessoas zaragateiam, fazem-nos má cara,
mas são encantadoras. Lá fora, há tanta gente nas ruas, e não acontece nada. Aqui
basta darmos dois passos para encontrarmos uma discussão, uma exaltação, mas
isso é vida, é cor.
EXP. - É fado...?
M.F. - Gosto de tudo que vem do povo. Pode ter nascido nas vielas ou até ter
raízes africanas, não se sabe, mas é do povo e eu gosto. Temos aquela Amália
que é um caso sério, uma grande senhora. E tínhamos o Alfredo Marceneiro.
Cheguei a ser amigo do Marceneiro, fomos presos juntos e estive muitas vezes na
sua casa.
EXP-...
M.F. - Havia ali na Rua Morais Soares um café de camareiras, a Rosa Branca:
umas pequenas que faziam uns brindes e depois nós comprávamos. Conversava-se e
ouvia-se o fado. As duas por três, houve lá qualquer coisita entre dois
pretendentes e uma camareira e, zás pás trás, pancadaria geral - eu fiquei na
mesma cela que o Alfredo. Passei a ir com ele aos fados. Certa vez fomos ouvir
a Amália ali para o Bairro Alto, ia também connosco o Carlos de Oliveira, e o
Alfredo puxou de debaixo da mesa um álbum onde guardava crónicas minhas...
Outra vez, também nos fados, vimos um homem já velhote, baixinho, assim como
que apagado, não se fazendo anunciar, e de repente o povo apercebe-se da sua
presença, levanta-se e aplaude-o. Era o Teixeira de Pascoaes!
EXP. - O fado foi também uma
forma de aproximar o povo dos considerados grandes poetas...
M.F. - Então não foi? Teve um papel muito importante. A Amália, e depois
outros. Veja por exemplo esse grande rapaz, o Ary, o Ary dos Santos, as coisas
bonitas que fez. E o Carlos do Carmo? E um rapaz que também fez isso, aquelas
voltas, é magnífico!
EXP. - A memória é uma constante no que diz.
M.F. - No viver, sim. Está ali o Herberto Helder que é um dos grandes poetas, e
meu amigo. Aqui estamos todos reunidos, bebemos qualquer coisa, e conversamos
como iguais, não há cá essas coisas de «eu sou mais importante que tu portanto
cala-te».
EXP. - Definiria assim o seu estilo de viver...
M.F. - Não tenho a noção do tempo. Quero é estar à volta de uma mesa com uns
amigos. Uma vida simples e pura. Ando muito a pé, tenho amigos estranhos,
converso aqui e ali, oiço muito, e lá nos encontramos nas tabernas.
EXP. - E como se movimenta nos meios literários?
M.F.- Muito mal. É uma jogada fina. Dizes bem de mim que eu digo bem de ti, nós
é que somos bons. E um mundo com muita hipocrisia. Eu não frequento os meios literários,
sou muito malcriado porque digo logo o que sinto. Aliás nisso sou como o Lobo
Antunes. Hoje há uma intelectualidade balofa, uma vaidade de calça de ganga:
grandes parangonas nos jornais deste e daquele escritor, mas tudo é efémero,
nada vai ficar - como a rosa daquele poeta francês. Veja por exemplo o Fernando
Pessoa. Eu conheci o Manuel Martins da Nóbrega, que foi patrão do Fernando
Pessoa. Costumava dizer às vezes, quando ia ao escritório e via a máquina de
escrever em determinado lugar: «O meu Fernando esteve cá a trabalhar.» Veja
esta singeleza de ter convivido com um génio e a forma simples e grande ao
mesmo tempo ao dizer «o meu Fernando», é muito bonito, quase comovedor até...
EXP. - E em relação aos críticos?
M.F. - São uns senhores muito altos que não sabem do que falam, põem um adjetivo
seguido de outro com um ponto de exclamação a meio, e nós não percebemos nada.
O melhor é ler o livro!
EXP. - E com a política?
M.F. - A política é trágica e já não me interessa no sentido que me interessou.
Mas continuo a ir ao Alentejo e a falar com os camponeses. E continuo no PCP,
embora em relação ao atual momento não disponha de dados para estar aqui a
falar. As circunstâncias do mundo mudaram-se e a política mudou-se. Mas devo-lhe
dizer que também não é como os jornais dizem. Mas enfim, eu sou do contra na
política.
EXPRESSO, 20-03-1993
Ligações externas
- Espaços de sentido: a construção do lugar na ficção de Manuel da Fonseca, Maria da Glória Alhinho dos Santos, Lisboa, Instituto Superior de Psicologia Aplicada, 2002
- Lírica e sociedade: um olhar sobre a obra poética de Manuel da Fonseca, Rosilda de Moraes Bergamasco, Universidade Estadual de Maringá, 2012.
- Entre memórias e palavras: o Neo-realismo de Manuel da Fonseca, Marcos Vinicius Fiuza Coutinho, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012:
CARREIRO, José. Manuel da Fonseca - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca. Portugal, Folha de Poesia, 04-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 27-08-2013. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/manuel_da_fonseca.htm)