segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A posteridade de Jorge de Sena está nas mãos de cada um de nós. (Jorge Fazenda Lourenço)


ENTREVISTA A JORGE FAZENDA LOURENÇO
POR TERESA CARVALHO, 04/06/2018

Foi a 4 de Junho de 1978 que desapareceu Jorge de Sena, já aquele que haveria de ser o mais empenhado estudioso da sua obra o admirava. Ao i, Jorge Fazenda Lourenço, poeta, professor de literatura e, até 2016, coordenador-editor das Obras Completas de Sena, revelou que quanto mais lê, fala ou escreve sobre o autor de “Metamorfoses” mais cresce o seu desconhecimento dele, como se o poeta lhe escapasse nas palavras que sobre ele de si se desprendem.

À distância de quase quatro décadas do desfecho de uma vida de andanças e mágoas, que tantas vezes emergem nos seus poemas, ora com ironia, ora com um lirismo dilacerado, ora ainda com uma rudeza sarcástica, inconformada, furiosa, já Jorge de Sena escrevia o seu primeiro “Epitáfio”: “Eu sou daquela espécie/ de quem se diz depois da morte:/ - a sua melhor obra foi morrer”.
A morte foi encontrar em Santa Barbara, na Califórnia, não tinha ainda completado 60 anos, o escritor indómito cujo vulto literário deitava demasiada sombra neste rectangulozinho de estrategas e carreiristas. Não se cansou o poeta de reivindicar a dignidade de ser quem era e como era. Dignidade - um outro nome de poesia, como propôs já Eduardo Lourenço.
Faz hoje 40 anos que Jorge de Sena desapareceu. A data é redonda como um seixo, mas quase tudo o resto se furta à regularidade, à lisura, à harmonia das formas comuns. A começar pelo seu trajecto existencial: difícil, acidentado, eriçado de angulosas e tristes surpresas, incompreensões, baixezas, traições, perfídias literatas, impossibilidades, a do regresso à pátria incluída. Tudo somado, faz avultar aquela “dor de haver nascido em Portugal / sem mais remédio que trazê-lo n’alma”.
Considerava-se um exilado mesmo antes de sair de Portugal, em 1959, por ocasião de um colóquio que lhe serviu de pretexto para se exilar no Brasil, depois da participação numa acção revolucionária mal sucedida. Andou terras e gentes, coleccionou nacionalidades como camisas se trocam. “Poeta-peregrino, expulso de cidade em cidade”, fez da poesia o seu grande lugar de viver. A um mês da morte recebe da secretaria de estado dita da Cultura o primeiro convite oficial (leu bem) para vir trabalhar para Portugal como director do Teatro D. Maria II. Queria aceder ao convite, mas já a vida se lhe gastara.
Não tendo embora conhecido Jorge de Sena, acabou por manter com ele um trato próximo, íntimo. Quando é que se iniciou esta convivência? Como é que tudo começou?
Jorge de Sena era para mim um poeta de que já tinha ouvido falar. Até que, no final dos anos 70 (do século passado!), saiu uma sucessão fabulosa de obras suas: “Os Grão-Capitães”, em 1976; a edição isolada de “O Físico Prodigioso”, a sequência “Sobre esta praia...”, e a reedição de “Poesia-I”, em 1977; as duas “Dialécticas da Literatura”, em 77 e 78; “Antigas e Novas Andanças do Demónio”, “Poesia-II” e “Poesia-III”, em 1978; e, finalmente, “Sinais de Fogo”, em 1979. Fiquei completamente varado pelo poeta; e digo poeta, porque em tudo o que ele escreveu é sempre legível o trabalho de um poeta. E em 1982 comecei a escrever sobre “o meu poeta”. Precisava de extravasar toda aquela admiração.
E o que é que escreveu?
Em geral, pequenas críticas aos livros que Mécia de Sena estava publicando depois da morte dele, faz agora 40 anos. O entusiasmo dos textos devia ser grande (a qualidade não sei), de tal modo que a Mécia quis saber de mim junto do Jacinto Baptista, que tinha sido meu professor de jornalismo e me aceitou como colaborador do semanário “O Ponto” (um jornal esquecido). Foi, portanto, através do Jacinto Baptista, o jornalista mais culto que eu conheci, que eu entrei em contacto epistolar com Mécia de Sena, que vim a conhecer, pessoalmente, quando ela veio a Portugal em 1984. A partir desse ano, e de uma forma gradual, como numa relação que se vai construindo e crescendo, fui ficando seu colaborador cada vez mais próximo. E temos uma longa correspondência. Em 1988, a Mécia desafiou-me a ir para Santa Barbara trabalhar no espólio do marido e estudar na Universidade da Califórnia, onde estive cinco anos. E aí a nossa cumplicidade aprofundou-se, num contacto, afectivo, quase quotidiano.
Soube que, entretanto, deixou de manter contacto com Mécia de Sena. O que aconteceu?
A última vez que estive com Mécia de Sena, foi em 2011, em Santa Barbara, para acertarmos pormenores de próximas edições da obra de Jorge de Sena. Mécia de Sena nasceu a 16 de Março de 1920. O peso dos anos era já então evidente. Continuámos a corresponder-nos por carta e a falar de vez em quando ao telefone. Numa das nossas últimas conversas, recordando os nossos mais de 30 anos de colaboração, Mécia de Sena falou-me de “como nos tínhamos feito um ao outro”. Até que, em meados de 2015, começaram a surgir barreiras à comunicação impostas pela família. Mécia de Sena estaria num processo de demência, desencadeado ou acelerado por uma queda numa época de Natal. Entretanto, a família obtém a sua interdição legal, considerando-a incapacitada para a condução da obra e não oferecendo qualquer mediação aos seus amigos, mesmo aos mais chegados. Um corte. Abrupto. Cruel. Como quem apaga alguém. Para sempre.
O convívio com o poeta já leva décadas, mas disse já que quanto mais lê e escreve sobre Jorge de Sena mais o seu desconhecimento dele aumenta. Quer explicar?
O que eu tenho percebido é que o conhecimento de uma obra como a de Jorge de Sena cresce com o conhecimento que vamos tendo de nós próprios e da humanidade de que somos feitos, incluindo nela a literatura e as artes, numa espécie de inter-relação que é singular a cada leitor, e que faz da obra do poeta um objecto singular também para ele, leitor. Nesse sentido, quanto mais conhecemos, mais fica por conhecer; mais ignorantes somos do objecto que queremos compreender. É como numa relação amorosa: quanto mais conhecemos a pessoa amada, menos sabemos dela, e, por isso, mais desejamos conhecê-la, e conhecê-la mais profundamente, pois esta forma de conhecimento é também uma forma de auto-conhecimento.
O Jorge Fazenda Lourenço é o que habitualmente chamamos um especialista de Jorge de Sena. Por cá, não é raro encontrarmos especialistas com uma ideia muito própria da literatura: um vasto domínio dividido em leiras, ou canteirinhos, com cercas à volta, espécie de feudos. E que ninguém se lembre de as galgar!, entrando assim em propriedade privada. Revê-se no retrato ou torce-lhe o nariz?
Bem, como já reparou pela resposta anterior, eu não me vejo como especialista de nada, embora o meu ego seja impressionável. Se a palavra não estivesse tão depreciada, eu diria que sou um amador da obra (sublinho, da obra) de Jorge de Sena. Aceitemos, portanto, que sou um estudioso. Talvez por ter andado tresmalhado em Medicina, ligo muito a ideia de especialista à ideia de órgão e de doença. Jorge de Sena não é, para mim, uma doença. É uma das pessoas mais vivas da minha vida. Não é uma doença, nem é uma obsessão que me impeça de apreciar outros criadores. Antes pelo contrário. Foi Jorge de Sena que me levou a descobrir uma infinidade de poetas, pintores, músicos e pensadores por ele traduzidos e estudados, ou com os quais estabeleceu um diálogo poético, criativo, como em “Metamorfoses” e “Arte de Música”.
Os seus trabalhos, de maior o menor fôlego, têm provado que o discurso académico pode ser claro sem perder a densidade. Este esforço tem sido importante na divulgação da obra de Sena?
É-me difícil responder a esta sua pergunta, porque ela contém um elogio, para mim, um enorme elogio, que agradeço. A tentativa de aliar clareza e densidade creio que pode ser lida em todos os textos meus, que não são apenas sobre Jorge de Sena. Pode estar relacionada com a minha faceta de professor de literatura. É, sem dúvida, resultado de uma aprendizagem, mas não é uma atitude estudada, com esta ou aquela finalidade. A clareza de exposição torna a densidade mais clara; e a densidade do pensamento busca as profundezas da claridade. De resto, não me considero um divulgador da obra de Jorge de Sena, e também não um académico (palavra que, para mim, ainda tem conotações serôdias). Eu sou um estudioso e, portanto, um leitor, mesmo quando estou na sala de aula, e o que procuro é transmitir o prazer e a dor de sentir e de pensar com os versos e as prosas de outra pessoa, e como nisso há uma responsabilidade política (cidadã), ética e estética.
Mesmo quem de Jorge de Sena conhece apenas aqueles poemas mais célebres, estará familiarizado com o “retrato falado” que dele chegou, incólume, até ao século XXI: um ser irascível, feroz, sarcástico, nem sempre capaz de se manter na circunferência da compostura, um escritor com o sentimento da genialidade própria, que se celebrava a si mesmo, que não se coibiu sequer de indicar em que secções da história literária portuguesa merecia ser citado, louvado e ensaiado. Convenhamos que não é uma imagem muito simpática …
Sim, conheço bem a “lenda negra” de Jorge de Sena. Mas conheço igualmente um sem número de pessoas, de diferentes países, que ficaram com uma percepção dele completamente diferente: um homem amável, cortês, solidário, convivial, atento aos outros, respeitador de diferenças ideológicas, políticas, comportamentais. E, sim, por vezes o contrário disto: intolerante face à miséria, sobretudo intelectual, à traição, à falsidade, à mediocridade, à intolerância de uns quantos. Por certo que Jorge de Sena foi um homem com defeitos e qualidades, como cada um de nós. E quanto a modéstias, se estamos bem recordados, o único modelo de modéstia de todo o século vinte português foi o ditador de Santa Comba. Eu sempre achei que, quanto mais contraditória, mais interessante uma pessoa é. Desde que, é claro, não tenhamos de viver com ela quotidianamente. E contudo, a sua obra revela uma cuidada atenção ao outro, às fragilidades da condição humana, à urgência de amor e de liberdade como princípios fundadores da dignidade humana, como é raro encontrar-se.
Terá aquela imagem contribuído para uma certa posição de desvantagem de Jorge de Sena, face, por exemplo, a uma Sophia ou a um Eugénio de Andrade, muito mais presentes na nossa cena literária?
As comparações são sempre difíceis, porque delicadas. Mas não creio que seja esse o ponto. Repare que Jorge de Sena viveu exilado durante quase 19 anos, desde Agosto de 1959, com vindas esporádicas a Portugal, a partir de 1968, vindas essas que acabavam por, paradoxalmente, servir de reforço à sua condição de exilado. Este é, aliás, um dos muitos paradoxos da condição de exilado. Embora estivesse presente na nossa “república das letras” como poeta publicado, é sempre mais vantajoso, em termos sociais, que é o domínio da “cena literária”, estar em cena, e não fora de cena. Estar dentro e não fora do palco.
Não acha que boa parte dos escritores de hoje, muito embora não o confessem, se têm em alta conta literária?
Não gostaria de fazer apreciações generalistas ou generalizantes. Até porque a questão se pode aplicar a uma infinidade de escritores de épocas anteriores, alguns deles tidos como primeiras figuras das “cenas literárias” do tempo em que viveram. Creio que o que mais importa, nisto como noutras coisas, é descobrirmos os nossos contemporâneos, independentemente do tempo cronológico que marcou as suas vidas. Em termos literários, ou artísticos, essa é que é a verdadeira vida. A vida que fazemos com aqueles que cada um de nós traz na ponta da língua.
Curiosamente, o Jorge Fazenda Lourenço, que também é poeta, acaba de publicar, na Companhia das Ilhas, “Azares da Poesia”. O livro quer ser lido como um auto-retrato?
Sim, ainda que um auto-retrato provisório, uma vez que ele é a fixação de um instante, ou melhor, de uma intermitência de momentos discursivos, cuja necessidade é ditada pelo acaso. O momento de me olhar e perceber que, passados os 60 anos, eu sou aquilo que os meus poemas, incluindo as minhas traduções de poesia, e os meus ensaios fizeram de mim, reconhecendo, ao mesmo tempo, que a construção desse rosto tem sido feita da inter-acção, verificável, dessas duas formas poéticas. O livro é, aliás, um primeiro volante desse auto-retrato de um poeta em construção. O segundo, também constituído por poemas e ensaios, estará mais centrado na figura de Jorge de Sena. Espero poder publicá-lo para o ano, para o centenário do poeta.
Nunca foi fácil a relação de Jorge de Sena com a crítica, que começou por considera-lo “infinitamente mais inteligente que poeta propriamente dito”. Que queria isto dizer? Era o sinal de uma incompreensão?
Sim, incompreensão, sobretudo, em relação à poesia, confundindo-a com o lirismo sentimental. E, é claro, um estratagema para desvalorizar a poesia de Jorge de Sena, fingindo elogiar os seus dotes de crítico literário. Afinal, ele não era engenheiro civil? Fiz já a crítica dessa crítica num texto incluindo em “Matéria Cúmplice”, de 2012. O preconceito tinha, aliás, o condão de juntar Jorge de Sena a nomes maiores da poesia portuguesa, como Luís de Camões e Fernando Pessoa.
Num tempo em que a figura do polemista é uma espécie em extinção, que faria hoje Jorge de Sena à sua veia de polemista? Acha que a consideração das conveniências terá ditado o fim desse interessante género que é polémica literária?
Creio que a polémica literária correspondeu a uma necessidade de enfrentamento político e cultural. Era uma resposta à falta de abertura ou de democratização da chamada “república das letras”, que, ainda por cima, era coisa de machos. Provavelmente, já não faz sentido. E, por isso, o que existe hoje nas redes sociais é um enredo, um entretém, um simulacro, com as excepções que sempre há, é claro. Discutem-se personalidades, à moda antiga, mas raramente se discute literatura.
Havia no autor de “Metamorfoses” um frenesi criativo: poesia, prosa, teatro, ensaio, traduções, antologias, prefácios … tudo! Escrevia com o furor de quem teme morrer no dia seguinte?
É isso mesmo. Como se não houvesse outro dia. Como em Mozart, por exemplo. A arte contra a morte. O que, para quem suspeita, como Jorge de Sena, que não há outro mundo senão este, é crucial. A arte e o amor, num anelo invencível. A poesia como desejo de amor; o amor como desejo de poesia.
Mécia de Sena abriu-lhe o espólio e a biblioteca de Jorge de Sena. O que por lá encontrou: o caos, a ordem ou qualquer coisa de intermédio?
Eu cheguei a Santa Barbara em Março de 1988. Já sabia, pela correspondência que vínhamos mantendo, que Mécia de Sena estava a organizar de forma profissional, criteriosa, o espólio de Jorge de Sena, o que lhe permitiu, em apenas dez anos, publicar novos ou reeditar mais de trinta livros, o que dá uma média anual e um ritmo de trabalho impressionantes, para mais numa época em que as provas tipográficas circulavam ainda por correio postal. Todos os volumes, editados ou a editar, ou ainda em projecto, organizados em pastas individuais, os manuscritos dactilografados e fotocopiados, para suprir acidentes ou extravios, e as pastas arrumadas em grandes arquivadores de metal, com gavetas. Dezenas. No escritório, no quarto, na lavandaria, no corredor que ligava este compartimento à cozinha. Todos os géneros literários, incluindo a vasta correspondência, com cada pasta para o seu destinatário, mas também o arquivo fotográfico, cronologicamente organizado, ou mesmo pastas e arquivadores cheios de programas de conferências, congressos e outras actividades em que Jorge de Sena participara de algum modo. E ainda programas de concertos musicais, objectos pessoais, relativos ou não à vida profissional, como escritor e professor. Tudo o que, parecendo menor, ajudaria (ajudará?) a dar um contexto, a tornar mais viva, a obra e a vida do seu bem-amado Jorge de Sena.
É verdade que a casa de Santa Bárbara era uma espécie de centro editorial para a publicação das obras do poeta?
Sim. Quando em 1988 cheguei a Santa Barbara, encontrei, no número 939 da Randolph Road, um verdadeiro centro de investigação e edição da obra de Jorge de Sena, que, ainda por cima, oferecia pensão completa a quem necessitasse. Mécia de Sena foi (será sempre) não só a figura tutelar de várias gerações de investigadores, de diferentes nacionalidades, como a grande editora de Jorge de Sena, tendo realizado um notabilíssimo trabalho intelectual, produzindo um vasto conjunto de prefácios, introduções e notas críticas, fundamentais para o entendimento da sua obra, com grande influência na recepção crítica que ela vem tendo desde 1978.
Como é que foram estes anos de trabalho em torno da organização e edição da obra de Sena? Quais as principais dificuldades que enfrentou?
Embora colaborando de perto com Mécia de Sena desde 1984, é só entre 2009 e 2016 que, por delegação sua, assumi a coordenação da edição das obras completas, de que a Guimarães Editores, por dificuldades conhecidas do grupo Babel, acabou por publicar apenas doze volumes. A grande dificuldade foi conseguir estabelecer um ritmo de publicação que respondesse, num espaço de tempo razoável, de mais ou menos dez anos, à edição da totalidade da obra de Jorge de Sena, incluindo parte significativa da sua correspondência (de que saíram apenas dois volumes). Era um projecto ambicioso, no qual me empenhei com todo o suor, inteligência, diplomacia e alma, mas que não foi possível concretizar, nem sequer em termos de ritmo de publicação.
Era um projecto. Já não é? Não haverá outras editoras interessadas em continuá-lo?
Neste momento, a edição da obra de Jorge de Sena está a cargo da filha mais velha, a qual tem ideias e critérios divergentes dos da mãe, sobretudo no que toca à publicação da correspondência, grande parte dela inédita. Afastada Mécia de Sena, e uma vez que eu fazia equipa com ela, afastado estou. Creio que a publicação da obra terá sido entregue ao Grupo Porto Editora.
Mécia de Sena é a mulher que qualquer escritor preocupado com o destino dos seus escritos quereria ter. Tendo em conta todo o seu trabalho – e a importância de Jorge de Sena na cultura portuguesa – não lhe parece estranho que, ao longo destes anos, o Estado português tenha respondido sempre com “silêncio e escuridão – e nada mais”?
Em 2009, Mécia de Sena doou à Biblioteca Nacional de Portugal o espólio de Jorge de Sena, incluindo a sua biblioteca particular e um conjunto significativo de objectos pessoais. Houve uma primeira cerimónia de entrega, em Abril desse ano, de uma parte do espólio, que estava à guarda da Fundação Calouste Gulbenkian, e, segundo julgo saber, a parte maior e restante foi já transportada de Santa Barbara para Lisboa, estando tudo, creio que ainda, em processo de catalogação.
Sabemos que Jorge de Sena traçou a régua e esquadro um programa de posteridade que o empenho de Mécia de Sena, e o seu próprio, haveriam de continuar. Passados 40 anos da morte do poeta, podemos dizer que esse plano deu certo? Ou será Sena ainda um poeta demasiado contemporâneo para podermos avaliar?
Traçar a régua e esquadro um programa de posteridade, por parte de Jorge de Sena, é uma expressão totalmente desadequada, e até cruel, que vi já utilizada por outra gente. Acontece que, após o grave ataque cardíaco que Jorge de Sena sofreu em 1976, e perante a extrema fragilidade da sua saúde, o poeta começa a preparar a publicação da sua obra com a consciência de um tempo limitado de vida, como, infelizmente, se veio a verificar. Para além dos livros publicados em 1977-78, o que ele conseguiu organizar foi muito pouco, como se calcula. Depois é que vem o planeamento de Mécia de Sena. A posteridade de uma obra é uma consequência, não se antecipa. A posteridade de Jorge de Sena está nas mãos de cada um de nós. É responsabilidade de todos e de cada um. A posteridade de um autor é uma questão literária, mas é também uma questão política, de cidadania.
Poucos poetas terão produzido, como Jorge de Sena, uma imagem tão viva, tão magoada do exílio. O que é que nele era diferente?
Não sendo o único, Jorge de Sena é um dos grandes poetas do exílio, na longa tradição que vem de Ovídio e Dante, e seguramente um dos maiores da língua portuguesa. Como diz Edward Said, o exílio é uma condição terminal. A poesia de exílio de Jorge de Sena dá continuidade, como também no caso de Camões e da sua glosa do salmo 136, àquele canto de exílio ansiando por uma Jerusalém celeste ou terrestre, pelo regresso a paraísos perdidos, pela restauração de uma condição divina que não é deste mundo. Exílio interior, exílio político (físico, existencial) e exílio metafísico, exílio dentro e fora da pátria, em Portugal, no Brasil, nos Estados Unidos, eis a conjunção de exílios que diz o poeta Jorge de Sena: “exílios exilados de exilada terra”.
Por fim: quer dirigir-se aos seus contemporâneos?
Creio que as minhas respostas podem valer como tal.


Teresa Carvalho, Jornal i, 04/06/2018

domingo, 4 de novembro de 2018

O rapaz do lilás (Henrique Levy)

Henrique Levy, outubro de 2018. Foto de Dulce Gonçalves.


A NOSSA TARDE

chegaste à hora do chá, as chávenas refletiam o sol deitado no
horizonte lilás de bruma.

a mágoa arrefecida pelo tilintar da colher na porcelana
convocava o tempo disperso na vastidão da ilha, pequena
concha que ao alto mar ruma, sulcada por clamores, dores e
batalhas vulcânicas.

os meus olhos errantes nos muros que cercavam a casa
contemplavam o destino de nos perdermos juntos,
naufragados no sonho flutuante de toalhas de renda e botões
de punho...

as primeiras horas da noite soaram abertas ao vento e à
chuva que abraçavam a casa e o jardim onde a remota
imensidão azul nos cercava de alongados verdes.

estou doente, referi, enquanto tu falavas de tempestades e do
sol que outros agora iluminava.
[…]

Henrique Levy, O Rapaz do Lilás
Ribeira Grande, Confraria do Silêncio, 2018




para o henrique e o luis

O poeta faz versos porque o amor é uma varanda aberta ao mar. E mergulha, ainda dentro de casa, no tempo que é livre, acabado de chegar do futuro que se confirmou. Mergulha como quem abre o corpo e pede a deus que leve o que é seu e deixe o que é do amor. Fica, assim, inteiro o poeta, que se renova na água imensa, jorrando do poema por escrever. O poema que desafia o espaço da cabeça e do coração, para caber aninhado e sair em fanfarra, pelos dedos eléctricos.
Este livro é esse mistério convertido em candeia acesa. Todos podemos ver como o amor é uma acendalha, como os dias distantes são núpcias, à espera, apenas, quem sabe, de um pastor de olhos verdes, capaz de ser árvore e luzeiro alto, em vez de todas as coisas que as pedras já conhecem de cor, cada vez que nos cobrem os sonhos. Este livro é uma glória que se conquista todas as manhãs, se a vida nos dá e nós agradecemos, rezando aos nossos poetas, aos anjos e aos santos que encarnam nos animais, criaturas do deus que existe, com a maravilha de eles serem, tantas vezes, a voz que fala através dos olhos, e garante que somos todos iguais. Todas as manhãs, quando o Luis sai, o Henrique fica, e encontram-se os dois no poema, amam-se numa vasta lucidez, antecipando a luz das flores do linho, que nunca mancha nem ensombra, essa vida que se faz de pequenos rituais. E a casa cresce, depois, com o espaço que as palavras trouxeram, para a hora do chá, e para o comprimento das mãos, elas que saciam a espera, de que o amor se livra, cada vez que um poema decide falar, a glória que o amor dispensa, se tudo é tão simples, como abrir um livro, rezar às paredes, acordar o silêncio, e pô-lo à escuta, da ilha que nos rodeia. Quando vamos à Mediana vemos este livro na sombra perfumada das coisas, que é luz do avesso, dizendo-nos para testemunharmos o paraíso encontrado do amor, ele que nunca é o que estávamos à espera, e talvez por isso nos comova, e faça sentido abrir-se o oratório, como quem abre uma janela, e comprova que vamos sempre além dos sonhos, se para tanto basta um abraço, e o mar, ao fundo, como uma colher que nos embala no líquido do amor.
Prefácio a O Rapaz do Lilás

Daniel Gonçalves, Santa Maria, setembro de 2018

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O Algarve de Sophia por Pedro Sousa Tavares

As férias algarvias de Sophia de Mello Breyner relembradas pelo neto, o jornalista Pedro Sousa Tavares.

Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos© D.R.


HÁ MUITO

Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vaza


Sophia de Mello Breyner Andresen

DUAL, 1.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores; 2.ª ed., 1977, Lisboa, Moraes Editores; 3.ª ed., 1986, Lisboa, Edições Salamandra; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Eduardo Lourenço.



O levante é sempre uma dádiva com os dias contados. Três, seis ou nove, assim o mediam os antigos, quando as contas ainda batiam certas. Pelo meio - na maior parte do tempo, para não mentir - é a nortada, sua némesis, quem dita as regras, levantando areia e guarda-sóis, tornando geladas as noites e, única virtude que se lhe reconhece, expulsando melgas e mosquitos para outras paragens. 
Nas noites de nortada, Sophia deixava-se ficar até tarde a cismar no seu "escritório", um mezanino por cima da sala, na casa da Meia Praia, que os netos sempre encararam como o seu santuário privado, ainda que nunca o tivesse reivindicado como tal. Acendia os seus cigarros slim, que invariavelmente esquecia no cinzeiro depois da primeira passa, bebericava o seu chá, que parecia durar para sempre e nunca parar de fumegar e, com a portada de vidro entreaberta, passava horas a ouvir o vento a silvar entre os pinheiros.

Sophia no Algarve© D.R.

Lembro-me disso porque, tendo-lhe herdado os genes noctívagos, ocupava muitas das mesmas horas imediatamente em baixo do mezanino, sentado na mesa de jantar, levando sucessivas abadas no xadrez do meu tio Xavier até às raras e triunfais ocasiões em que, geralmente apanhando-o já meio a dormir, descortinava um erro que me permitia recompor o meu score para um mais digno 1-10 ou 1-11.
Entre os nossos silêncios de jogadores, e o seu silêncio de poeta, era capaz de jurar que o vento que entrava pela janela lhe falava ao ouvido e que ela, num murmúrio, tão leve que talvez fosse apenas imaginado, lhe respondia.
- Mãe, vá-se deitar -, suplicava às tantas o meu tio, quando nós próprios claudicávamos ao sono.
- Vou já, Xavier.
Muitas vezes nunca ia. Adormecia ali mesmo. Embalada pelo vento.
Nos dias de levante a Meia Praia transformava-se na melhor praia do mundo. O mar, por norma parado como um lago, enchia-se de vida, proporcionando-nos épicas sessões de carreirinhas e obrigando o nadador-salvador a abandonar o seu posto habitual - uma cadeira à sombra, onde, imagino maldosamente, se recompunha, a sono solto, das aventuras noturnas da véspera - para impor a ordem possível entre multidões de crianças e adolescentes eufóricos. A temperatura da água subia, dia após dia, até ir bem para lá dos 20 graus, facto que alguém - já não me lembro quem - atestava cientificamente com um daqueles termómetros em forma de peixe que se usavam nas banheiras dos bebés. E o vento de sul envolvia-nos num abraço, transformando a água que nos escorria pela cara num caldo morno com sabor a sal e algas.
Não era apenas nesses dias que Sophia lá ia. Mas as memórias que guardo dela na Meia Praia estão invariavelmente ligadas ao esplendor dessas manhãs e tardes de levante, que muitas vezes duravam até anoitecer. Talvez por estarem arquivadas na mesma pasta destinada às boas recordações.
Nunca aparecia antes das duas, três horas. Não por se levantar tarde - coisa que raramente fazia, apesar dos longos serões - mas por preferir evitar as horas de maior calor. Havia sempre alguém a oferecer-se para a ir buscar a casa mas, muitas vezes, dispensava a oferta, preferindo fazer a pé o trajeto de meio quilómetro até ao areal. Por vezes apanhava boleias improváveis. Num ano, já bem na casa dos setenta, arranjou uma empregada que guiava uma scooter e passou as férias a deslocar-se para a Meia Praia sentada de lado atrás da condutora, à amazona, com uma alcofa numa mão e uma sombrinha japonesa na outra.
Chegava à praia sempre elegante, com longas túnicas ou vestidos de tecidos leves, chapéu de palha na cabeça. Pousava a alcofa, estendia a esteira, também de palha. Já de fato de banho, ainda segurando a sombrinha, que só largava à beira-mar, avançava decidida até à primeira onda, mergulhando de cabeça. Lembro-me de ver, orgulhoso, o olhar embasbacado de duas turistas inglesas que assistiram a um desses rituais.
Era uma excelente nadadora, de gestos estilizados, como uma atleta olímpica. Lá em casa, cumpria religiosamente as suas sessões de bruços de fim de tarde na piscina ladeada por uma alfarrobeira, em cujos ramos pousava as coisas antes de entrar na água. Vê-la a nadar, de braçada certa e uma respiração cadenciada (que também usava para se acalmar quando alguma coisa a irritava), era um momento tão solene que conseguia a proeza de nos manter a nós, netos, a uma invulgar e respeitosa distância da água.
A alfarrobeira, que adorava, nunca deixou de ser um pesadelo logístico para todos os mestres-de-obras e técnicos de manutenção que passaram pela casa. As suas raízes levantam o chão de tijolo vermelho e já furaram as paredes da piscina duas ou três vezes. As suas folhas e frutos sujam a água e entopem os filtros. Os apelos para a deitarmos abaixo sucederam-se ao longo dos anos. Mas isso sempre esteve fora de questão: aquela árvore, por estranho que esta afirmação possa parecer, também é ela.

Postal enviado por Jorge de Sena com a morada "Vila Moura"© D.R.

No discurso que fez em 1964 num almoço da Associação Portuguesa de Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído ao Livro Sexto, referiu-se ao artista como alguém capaz de sublinhar "a dignidade do ser", mesmo quando fala "somente de pedras ou de brisas". Mas, em Sophia, as pedras, as árvores, as brisas, o mar, a terra, não foram "somente" temas da sua poesia mas partes indeléveis da sua essência, da "dignidade do ser" que era. E no Algarve, que descobriu nessa mesma década de 1960, encontrou uma fonte inesgotável de inspiração. Era a sua Grécia entremuros.
Revendo o trajeto de O Caminho da Manhã - poema que, como contou anos mais tarde, começou por ser um conjunto de indicações à sua empregada sobre como ir da Praia da D. Ana ao Mercado de Lagos -, pergunto-me como encaixaria, depois da "estrada que [já não] é de terra amarela", junto às "muralhas antigas da cidade", um recém-construído parque de estacionamento com um aberrante minigolfe temático na cobertura. É um pensamento absurdo. Tão absurdo como imaginar que alguma vez a fealdade de parte da cidade de Atenas a impediria de se deslumbrar com o Pártenon. Sempre se concentrou no essencial. E o essencial - a luz de Lagos, a brancura das suas paredes, fontes do seu "amor pelas coisas visíveis" que é "oração em frente do grande Deus invisível" - perdura.
O levante passou por cá, há dias, embora breve e menos feliz do que noutras ocasiões. Com a notícia da perda de um amigo, pai de um grande amigo, chegaram-nos também nuvens negras de fumo, vindas da serra de Monchique, que ensombraram o sol e tiraram sal aos nossos mergulhos. Enquanto escrevo, a nortada, já de regresso, fustiga as chamas em direção a Silves. Os homens que as combatem parecem precisar de ajuda. Talvez ela possa, mais uma vez, dar uma palavra ao vento.
Pedro Sousa Tavares, 13-08-2018

https://www.dn.pt/1864/interior/no-algarve-de-sophia-9699673.html



 

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sexta-feira, 27 de julho de 2018

Poesia e Cuidados Paliativos

Wanda Rossi de Carvalho

Hoje recebi um poema.

Hoje falarei sobre a Sra Wanda Rossi de Carvalho. Sei que não posso falar de pacientes com os nomes reais, mas não comentarei sobre a doença dela. Ela merece o crédito de sua história.

Dona Wanda tem 94 anos. É uma poetisa. Fez o hino de Bandeirantes (uma cidade aqui do lado de Londrina). Presidente da União Brasileira de Trovadores - seção Bandeirantes.

A cada 6 meses comparece no consultório. Reclama da demora (independente se estou atrasado ou não). Chama-me de bravo (por mais que me esforce para não ser, pelo menos não com ela…). Fala que está muito idosa, mas chega andando, a cabeça ótima.  Sempre me entrega um poema novo. Na hora de ir embora digo que o retorno é em 6 meses, e ela diz que vai estar morta até lá, porque está muito velhinha. Isso se repete já faz 6 anos.

Desta vez deu-me um poema sobre o natal, mesmo sendo na época em que estamos. Isso porque acha que não me verá mais. Igual o que sempre faz desde que a conheço…

Presente de Natal

Sonhei dar-te um presente,
Mas não sei o que darei…
Tens riqueza, tens amigos,
E até mesmo o que eu não sei.
Lembrei de dar-te a saudade
Mas com certeza já a tens,
Pensei na felicidade
Mas não mais a encontrei!
À venda estava a piedade
Mas esta sei que já tens…
E se eu te desse a verdade
Presente de grande poder.
São todos eles tão belos…
Se guardados com carinho,
Mesmo grande ou pequenino
Faz do teu sonho um menino!…
Um presente nobre me ocorre:
E se eu te desse o amor?
Dentro deles guardarias
Tudo bem que a vida for!!!

Obrigado pelo poema, dona Wanda. Até ao próximo semestre.


[Nota: a poetisa Wanda Rossi de Carvalho faleceu em 04-10-2014]

***

Aprendendo a Morrer com Mario Quintana



Continuo a insistir: a poesia é um dos poucos redutos onde podemos aprender um pouco da arte de morrer. Não isso que vemos na TV, as mortes cenográficas, dolorosas, dramáticas. Nem a morte que vemos nos hospitais, os abandonos nos quartos, o lidar com o corpo vivo porém morto à vida num leito de UTI.
Falo de preparação, não como uma espera ansiosa mas que tematiza o morrer como algo que expressa também o meu viver para que ele seja mais intenso, porque sabemos agora focar o existente como seu real valor de singularidade e beleza. E quem nos ajuda a (re)encontrar esse valor é a percepção de que a morte faz parte do viver.
Hoje falaremos de Mario Quintana. Para mim este poeta gaucho tem a virtude de tornar pesada uma pena e leve um cofre de banco. Mostra sutilezas e complexidades ocultas naquilo que vemos todos os dias e que aprendemos a não "ver" mais. Mario Quintana extrai ouro daquilo que nos acostumamos a chamar de banalidade.
Quintana falou muito sobre a morte, fez inclusive piada dela ao nos lembrar que “A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”. Então, não temos mais que nos preocupar com o fato dos lençóis ficarem sujos com a terra do nosso calçado, aliás, talvez a morte seja isso mesmo, a ausência total das preocupações e, por isso, exercício pleno de uma liberdade que não se exercita.
Quintana pode ser um ótimo companheiro de jornada se quisermos discutir a morte. Recomendo essa discussão a todos e, particularmente, aos trabalhadores de saúde, já que eles, muito provavelmente, cuidarão do nosso morrer. A questão é: como estão cuidando hoje em dia? Minha resposta é afirmar que o cuidar não pode estar reduzido a mera monitoração de sinais clínicos, de um corpo reduzido a suas funções biológicas. As pessoas à beira da morte perdem a singularidade, se transformam em massas biológicas à beira da dissolução. Nós somos muito mais do que isso!
O morrer grita pelo exercício de outras necessidades: expressa os quereres especialmente reservados para o fim da vida, pela simples razão que são percebidas como sinais da despedida do mundo e de tudo que amamos. Assim, quando formos falar de morte nos hospitais, por que não pensarmos em Mario Quintana? Vejam por exemplo este soneto:

Minha Morte Nasceu…

          (Mário Quintana para Moysés Vellinho)

Minha Morte nasceu quando eu nasci
Despertou, balbuciou, cresceu comigo
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi

Já não tem aquele jeito antigo
De rir que, ai de mim, também perdi
Mas inda agora a estou sentindo aqui
grave e boa a escutar o que lhe digo

Tu que és minha doce prometida
Nem sei quando serão nossas bodas
Se hoje mesmo… ou no fim de longa vida

E as horas lá se vão loucas ou tristes
Mas é tão bom em meio as horas todas
Pensar em ti, saber que tu existes

(Fonte: QUINTANA, Mario. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2005)

Quanta leveza para um tema costumeiramente denso e amedrontador… a morte como um ente que nos acompanha desde o nascimento… como uma namorada de infância com quem um dia, cedo ou tarde, nos casaremos. Já utilizei este poema para estimular trabalhadores de saúde em rodas para tematizarem as suas experiências pessoais com a morte, suas primeiras lembranças. O resultado foi muito bom. As pessoas trouxeram recordações, expressaram lutos mal elaborados, produziram ligações com as experiências de morte vividas no cotidiano.
Como todo tabu, depois que percebemos que não haverá necessariamente punições por quebrá-lo, a porta se escancara e as pessoas meio que perdem o medo, pelo menos de falar, e percebem que o medo da morte e do morrer que as deixa tão vulneráveis, na verdade é o medo de todos. Assim, nos tornamos fortes quando percebemos que o medo é algo que pertence ao mundo, elemento que tipifica a condição humana.

Mas Quintana tem mais a nos dizer:

Este quarto

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

Que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…

(Fonte: QUINTANA, Mario. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2005)

Aqui, Mario Quintana apresenta a percepção da morte por quem está morrendo ou, pelo menos, uma idealização do que ela deveria ser. O olhar do moribundo parece expressar esperança nas promessas de um céu que significa descanso, o fim das dores e sofrimento. Compara a morte a este mesmo céu que a semelhança do dia, cede espaço para a noite inexorável, um manto que nos cobre e nos livra da ansiedade de saber que é o fim. Novamente, uma bela metáfora da morte que nos afasta das representações terríveis e dolorosas.
A partir dessa leitura as pessoas podem ser estimuladas a falar das experiências que vivem nos hospitais, no cotidiano do trabalho, podem compartilhar os sentidos que tem dado a morte, as percepções do que seriam a mortes dolorosas (física e psiquicamente) e como poderiam atuar para minimizar a dor e vulnerabilidade de pacientes e familiares.
Vamos terminando por aqui, encerrando da melhor maneira possível, claro, com Mario Quintana:


INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio…
E a luz da estrela no fim!"

 Erasmo Ruiz, 09/07/2009
http://redehumanizasus.net/6987-aprendendo-a-morrer-com-mario-quintana/#sthash.93dGk4Ga.dpuf




¿Por qué necesitamos poesía en cuidados paliativos?


Objetivo: Practicar la poesía: La necesidad de darle voz a la experiencia del final de la vida es compartida por pacientes, familias, cuidadores y profesionales de la salud así como por la comunidad.

Los paliativistas necesitamos aprender de la poesía el poder de las palabras, los símbolos y las metáforas para capturar o transformar la experiencia de enfermedad de los pacientes.

Público objetivo: Numerosos profesionales de la salud se han acercado a la poesía, para rescatar de ella el ancestral contenido curativo e imaginativo que esconde cada una de nuestras palabras.

Relevancia del tema para el congreso: Es un tema original y revelador que indaga nuestra esencia en conexión con el lenguaje. La capacidad sanadora de la poesía nos permite desarrollar la conexión empática o la presencia compasiva. Sanadora en sí misma, la poesía actúa también sanando al sanador a causa del viejo rol natural que tiene el arte. Este género envuelve un mundo de creatividad e imaginación que conlleva en sí el fruto de nuestro deseo humano por descubrir el sentido del mundo y de nuestras vidas.

Relevancia del tema para la región: El acercamiento al género literario nos dará herramientas para nuestra propia sanación, para volvernos en el instante preciso a la requerida humanidad y al íntimo acercamiento hacia el que sufre.

Resumen: ¿Por qué necesitamos poetas en Cuidados Paliativos? Porque existen dos tipos de poetas: los que publican y los inéditos. Los que publican cantan el canto del espíritu humano. Los inéditos son el canto que cantan los primeros. Ambos son necesarios en Cuidados paliativos.

Se trabajará durante la sesión el tema de la práctica de la poesía con la premisa de que “la poesía no es de quien la escribe sino de quien la necesita”. Se intentará generar un ambiente de alto contenido espiritual: leyendo, escribiendo, discutiendo e internalizando poesía se puede encontrar un medio de autoconocimiento, en especial cuando es usado en el trabajo en equipo.

Los paliativistas necesitamos aprender de la poesía el poder de las palabras, los símbolos y las metáforas para capturar o transformar la experiencia de enfermedad de los pacientes.

Se explorará con lecturas de fragmentos de poetas latinoamericanos -Olga Orozco, Jaime Sabines, Luis Cardoza y Aragón, Pablo Neruda, Jorge Boccanera, Hugo Padeletti, etc.- acompañados de imágenes, la aptitud del hombre para permanecer en medio de la incertidumbre, del misterio y de las dudas, sin irritarse y sin un ansia exacerbada por llegar al hecho y la razón. Es decir, la sabiduría de tolerar no saber. Renuncia que por cierto no es abandono sino, por el contrario, perseverancia en la búsqueda. Pero también implica humildad, entrega al otro y desprendimiento material e intelectual. En otros términos, es esta capacidad la que da genera la empatía, el colocarse en el lugar del otro, el considerar la función decodificadora del receptor de acuerdo a sus propios médios.

Vilma Tripodoro, "¿Por qué necesitamos poesía en cuidados paliativos?" IX Congreso Latinoamericano de Cuidados Paliativos, Santiago, Chile, 2018-04-12, http://cuidadospaliativos.org/ix-congreso/encuentros-con-expertos/

Papel TE VOY A ACOMPAÑAR HASTA EL FINAL




Why we need more poetry in palliative care


Abstract

Objectives: Although many well-known poems consider illness, loss and bereavement, medicine tends to view poetry more as an extracurricular than as a mainstream pursuit. Within palliative care, however, there has been a long-standing interest in how poetry may help patients and health professionals find meaning, solace and enjoyment. The objective of this paper is to identify the different ways in which poetry has been used in palliative care and reflect on their further potential for education, practice and research.

Methods: A narrative review approach was used, drawing on searches of the academic literature through Medline and on professional, policy and poetry websites to identify themes for using poetry in palliative care.

Results: I identified four themes for using poetry in palliative care. These concerned (1) leadership, (2) developing organisational culture, (3) the training of health professionals and (4) the support of people with serious illness or nearing the end of life. The academic literature was mostly made up of practitioner perspectives, case examples or conceptual pieces on poetry therapy. Patients’ accounts were rare but suggested poetry can help some people express powerful thoughts and emotions, create something new and feel part of a community.

Conclusion: Poetry is one way in which many people, including patients and palliative care professionals, may seek meaning from and make sense of serious illnesses and losses towards the end of life. It may have untapped potential for developing person-centred organisations, training health professionals, supporting patients and for promoting public engagement in palliative care.

Elizabeth A. Davies, "Why we need more poetry in palliative care". 

Inscrição”, José M. A. Carreiro, Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005

Viagem na Família”, José M. A. Carreiro, Folha de Poesia, 21-02-2007

A médica que prescreve poesia na lida diária com a morte”, Publicado em Ex-alunos, Gente da USP, Perfil, USP Online Destaque, por Redação em 9 de maio de 2012

Prescrição de Poesia, blogue de Claudia Quintana

Unos poemas Paliativos, simples y algo educativos”, Eduardo Bruera. V Congreso Latinoamericano  de Cuidados Paliativos 15-18 de Marzo Buenos Aires, Argentina

A cura pela palavra”, Folha de Poesia, 01-07-2017