|
Urbano Bettencourt |
Urbano
Bettencourt, poeta e escritor com várias obras publicadas, nascido no Pico,
licenciado em Filologia Românica, colaborador de vários jornais, revistas e
televisão, vai lançar a 27 de Setembro, em Ponta Delgada, “Com Navalhas e
Navios”, mais um rasto, como ele diz nesta entrevista, de uma longa caminhada
na escrita.
“Com Navalhas e Navios”, a
publicar no final deste mês, o Urbano Bettencourt cumpre cinco décadas de
escrita. A nova obra é o retrato desta longa caminhada?
Comecei a escrever e a publicar
nos jornais, alguns anos antes de chegar ao primeiro livro em 1972, que já não
incluiu todos os meus poemas da altura.
E neste novo livro procedo a mais
uma selecção e deixo apenas aquilo que eu pretendo venha a ficar como o
rasto dessa caminhada, embora em processo inacabado: além dos poemas banidos do
conjunto, deixei de fora os textos em prosa poética e algumas narrativas curtas
que integravam os livros originais; vou reuni-los em livro próprio e então aí
estaremos mais próximos do que foi a minha escrita poética ao longo deste
tempo.
Porquê este título? Leva-nos
aonde?
O título recupera e adapta a
expressão colhida no poema «Pastagem com homens dentro», que pode
passar como glosa, um pouco bruta e cruel, ao mais célebre
poema de Pedro da Silveira; leva-nos por isso à Califórnia, mesmo que
nalguns casos esta se manifeste apenas como objecto de
desejos anavalhados, mas, numa perspectiva mais pacífica
também pode trazer-nos de lá aquelas «navalhinhas» que vinham na bagagem
dos regressados para presentear amigos mais próximos.
No contexto mais vasto do livro, é
possível que as navalhas tenham passado já à categoria de «armas
brancas», indissociáveis, portanto, da violência que em diversos
momentos o livro acusa poeticamente.
“De raiz de mágoa” a “Que
paisagem apagarás” vai uma grande distância apenas na duração ou também no
estilo?
O tempo faz-nos crescer e divergir,
a nossa compreensão do mundo altera-se, a relação que
mantemos com a linguagem torna-se mais aprofundada, mais exigente e também
permeável ao contacto com a escrita do mundo – e essas coisas
reflectem-se no modo como em cada momento olhamos para a nossa própria escrita
e para aquilo que pretendemos com ela.
Razões mais do que suficientes para
excluir poemas iniciais, em relação aos quais me sinto desconfortável,
incomodado mesmo com o seu excessivo voluntarismo, embora isso não me impeça de
reconhecer que há um certo ponto de vista crítico e irónico que vem desde
o início e que alguns temas se prolongam no tempo sob discursos diferenciados
entre si.
A poesia hoje está diferente?
A minha está, seguramente. E,
no geral, está diversa, como o comprova a recente antologia A
Garganta Inflamada, que reúne poemas de 33 autores de língua portuguesa
editados pela Companhia das Ilhas entre Maio de 2012 e Maio de
2019.
Aspectos já referidos na resposta
anterior, bem como a função atribuída por cada um à poesia e ao seu lugar na
sociedade e no espaço público justificam essa diversidade.
Temos que publicar mais
antologias de autores açorianos?
Podemos pensar em termos
individuais e em termos colectivos.
No primeiro caso, importa referir o
que tem acontecido quanto à obra de autores já falecidos e que vão sendo
recuperados lentamente.
No ano passado saiu na
Companhia das Ilhas a «Poesia Reunida», de José Martins Garcia, no âmbito da
reedição da obra completa deste autor picoense.
Há cerca de quatro ou cinco anos, a
SREC promoveu a edição da Obra Completa de Emanuel Félix; já este ano a
Imprensa Nacional publicou «Alexandrina, como era», todos os poemas de J. H.
Santos Barros, o grande poeta da minha geração que andou demasiado tempo
arredado dos leitores. A Companhia das Ilhas em parceria com a Imprensa
Nacional está a reeditar a obra de Vitorino Nemésio. E o IAC acaba de
apresentar «Fui ao mar buscar laranjas», que reúne a poesia completa de Pedro
da Silveira, uma iniciativa de grande alcance em virtude da qualidade
literária do autor.
Em termos colectivos, e no âmbito
dos Colóquios da Lusofonia, a Calendário das Letras editou a antologia 9 ilhas
9 escritoras – organizada por Helena Chrystello e Rosário Girão,
responsáveis também pela Antologia Bilingue de Autores Açorianos e ainda pela
Antologia de Autores Açorianos Contemporâneos (dois volumes de poesia e prosa).
Tudo isto já representa um
contributo importante para a divulgação e conhecimento do cânone literário
açoriano, mas há nomes que precisam de ser de novo trazidos ao contacto do
público, como o do poeta J.H. Borges Martins, para referir apenas um nome de momento.
Em termos de modelo antológico,
parecem-me uma boa solução os Cadernos de Santiago, projecto desenvolvido
na Madeira por um grupo de professores e escritores: cada autor antologiado tem
espaço para uma sequência poética representativa e coesa, seguida de uma
leitura crítica feita por um convidado, o que significa um avanço a vários
níveis em relação ao modelo habitual, com ganhos literários e de
leitura.
“Uma cidade ama-se. Ou
odeia-se. E compreendê-la?” (“Algumas das Cidades”, 1995). Um homem do Pico, da
Ponta da Ilha, é universal? Compreende a Cidade onde vive ou a nostalgia dos
lugares inspira?
Creio que a vida me tornou imune ao
complexo do universalismo e ao, ainda mais doentio, complexo do
cosmopolitismo.
Apesar do espaço e do isolamento, a
Ponta da Ilha ficava a um palmo de S. Jorge e a um pouco mais da
Terceira, avistável em dias de luz crua. E tirando bem o rumo a leste podia
ainda chegar-se a S. Miguel, donde viera o meu bisavô Rebelo e a que eu
acabaria por aportar duas vezes, a segunda tornada definitiva.
No Calhau passavam barcos e gentes,
vozes diferenciadas como outros tantos sinais da diversidade do mundo,
chegavam os jornais da comunidade açoriana na Califórnia prolongando o espaço
insular para lá do horizonte e estabelecendo uma espécie de proximidade e de
convívio virtual. E de um lado e de outro do território
havia ainda os universos especiais da Calheta e de Santo Amaro, entre a
baleação e a construção naval, pretexto de viagens, em suma.
Tudo isso atravessa a minha poesia
como sombra dos lugares e se articula com a sombra de outros lugares mais
extensos e abertos, mais violentos também, por vezes; é a matéria residual que
em parte a alimenta.
Mas em termos puramente empíricos
sou um homem de cidades, em cujas dinâmicas (paradoxais, por vezes)
me formei, e sem grandes nostalgias de um campo que já não existe senão
como memória desfigurada de nós próprios.
Como vai ser apresentado
e divulgado “Com Navalhas e Navios”?
Para já, com uma sessão na Livraria
Solmar, a 27 de Setembro ao fim da tarde. Além das intervenções protocolares, o
meu amigo e poeta Fernando Martinho Guimarães apresentará a sua leitura,
interpretação, do livro, e os meus amigos José Carlos Jorge e Maria
Fátima de Sousa lerão alguns poemas, à semelhança do que já fizeram, em
contexto mais alargado, na apresentação de África frente e verso. O resto
será um processo em desenvolvimento.
“A minha poesia está diferente, seguramente”, Redação do Diário dos Açores, 2019-09-14
RECENSÕES CRÍTICAS
|
Fernando Martinho Guimarães |
Uma apresentação de Com Navalhas e navios
Fernando Martinho Guimarães
Com Navalhas e Navios é uma colectânea, uma
antologia, uma «poesia reunida», que compreende parte da produção poética de
Urbano Bettencourt, desde o volume inaugural de 1972, Raiz de Mágoa, até ao livro África e Verso,
de 2012. Encontramos, ainda, no seu fecho, uma série de 5 poemas dispersos. E
em nota final, diz-nos o autor que deixou de fora um conjunto de poemas,
principalmente dos seus dois primeiros livros, o já referido Raiz de Mágoa e o Marinheiro com
Residência Fixa, de 1980. Mais nos diz que, na recolha de poemas
que constitui este Com Navalhas e Navios não
está a maior parte dos seus textos poéticos em prosa e algumas narrativas
breves. Promete-se, nesta nota, que em devido tempo virão a lume, reunidos e
reorganizados. O prometido é devido e ficamos nós, seus leitores, a aguardar.
O
presente livro conta, ainda, com um Prefácio do poeta Carlos Bessa. Carlos
Bessa identifica e reconhece os aspectos mais significativos que, na criação
poética de Urbano Bettencourt, simultaneamente o aproximam de um imaginário
comum a muitos dos seus contemporâneos e o afastam, constituindo-se como voz
própria, tanto no ritmo, cadência e tom que imprime aos seus textos poéticos,
como no que exprime das e nas circunstâncias a partir das quais a poesia
aparece. E que são todas as circunstâncias, cabendo nelas as que, no poema, é o
seu fazer – a arte poética.
O
título, Com Navalhas e Navios, é
a expressão adaptada de um verso do poema «Pastagem com homens dentro» e que,
conforme esclarece o poeta em entrevista ao Diário dos Açores (14-09-2019),
«pode passar como glosa, um pouco bruta e cruel, ao mais célebre poema de Pedro
da Silveira».
Uma
transumância da palavra, uma pastorícia do sentido na incessante procura dele.
Um «inventário de reciprocidades», como nos diz Javier Fernandez no prólogo à edição
espanhola, canarinha, deste Com Navalhas e Navios.
«Os
pastores são os depositários plenos dos planos de viagem,
adormecem
a dor medem amarrados à estaca entre a erva
e
o esterco. (…)
Com
navalhas por dentro e navios nos olhos eles assinam
assim
o ponto no dorso da ilha e cavalgam as aves as nuvens
com
elas fogem para oeste à frente da fome e do frio (…)» (Pág. 30)
Também
o poeta quer pôr ao seu cuidado a linguagem e o que nela é sempre o oeste de
onde se está, de onde se fala. Na diligência que empresta ao ofício das
palavras, na advertência e desvelo com que toma as palavras a sério,
encontramos a inquietação do subverso, a ameaça do adverso. Por isso a poesia,
o poema, não é, em Urbano Bettencourt, uma forma entre outras de dizer o mundo.
É o mundo que se dá em aliterações, de sílabas, de sons e de sentidos, que no
próprio acto de ecoarem se desdobram, produzindo o diverso no mesmo que nos
persegue – a infância, a ilha e as ilhas, a guerra, a saudade, alguns nomes
circunstansiados, Gaspar Frutuoso, Pedro da
Silveira, Roberto Mesquita, Ivone Chinita, Santos Barros, a vida, a morte, o
que se queira do que a poesia é feita:
«Fazer
versos dói? Não! (…)
O que dói é arrancá-los
assim ao próprio sangue como se um filho fora, erguê-los
à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever
a nossa morte. A nossa vida.» (Pág. 79)
Assinala
Carlos Bessa, no Prefácio, que a obra poética de Urbano Bettencourt atravessa –
e é atravessada –, por geografias e circunstâncias várias em que a luz e a
sombra, a alegria e a dor, a exaltação e o desencanto, eros e thanatos,
afluem ao dizer poético, para nele se transfigurarem em modo de redenção, de
ascese, como ilha que, sem nunca se deslargar do seu fundo, do seu chão, quer
continuar elevando-se como corpo insulado e insuflado – por forças vulcânicas,
já se sabe –, numa cadência de aliterações e metonímias – nos versos e na vida.
Uma
poesia, diz Lélia Nunes, de regressos e reencontros. Neste sentido, o poema é
um exercício de celebração, mas também de redenção. Quer se trate de momentos,
circunstâncias que o simples facto de existir inevitavelmente comportam, de
geografias que o verso quer dizer como se elas apenas o fossem pelo seu dizer,
sentimentos que, ao permanecerem, viram afectos, rememorações de tempos
sofridos na primeira pessoa, como os da guerra na Guiné, ou mesmo os que não
são estritamente nossos, como acontece no poema sobre a Urzelina de 1808, a
poesia de Urbano Bettencourt dá a ver o que já não nos olha.
O
que há de autobiográfico na escrita? Com o quê ou com quem se identifica o
autor? Com os advérbios, dizia Umberto Eco. O desconcerto desta resposta
reforça a constatação de que, nos advérbios, quaisquer que eles sejam, há
sempre um tempo, o do autor, o das personagens e o do leitor também, a partir
do qual se procura encontrar um sentido para tudo o que cabe numa vida, a
vivida, a pensada e a dita. O que há de autobiográfico na escrita – na escrita
poética –, de Urbano Bettencourt? Tudo. E, acima deste tudo, a sua escrita.
Existe mundo para além do que se escreve? É claro que sim, na condição de que
se possa dizê-lo. O silêncio e a sombra não são os limites com os quais a
palavra poética se confronta, mas é desse confronto que o dizer poético retira
o seu impulso, a urgência do dizer, ou, como se pode ler num poema do livro Lugares Sombras e Afectos, cujo incipit é «Crescem os deuses»:
«E
quando a memória queimar de mais, chamarei
a mim a sombra das figueiras bravas. Sem figos,
como nos rebenta a boca? Olho as ruínas,
os escombros da cal e acolho um pássaro
de melancolia
vindo da névoa e de um ardido Setembro.» (Pág. 105)
Para
o leitor que se auto-satisfaz em o ser, e que, do ponto de vista do autor, é o
máximo que, intencionalmente, o move, os poemas, como é o caso presente, não
são apenas fulgurações projectadas ao e no mundo, a solicitarem derivas
interpretativas, diferâncias di-versificadas,
quantas as leituras que se fazem dos leitores que o livro encontra. São,
também, realidades que no seu dizer enunciam a própria condição de
possibilidade do que enunciam. Não é deste ou daquele lugar que se fala, não é
a partir desta ou daquela geo-grafia que o poema se desenvolve, encandeando (ou
não) o olhar do leitor. É com os lugares, reais ou imaginários, que os poemas
de Urbano Bettencourt instauram um diálogo, um ajuste de contas, como que
edificando um mundo da escrita e uma escrita do mundo. Neste sentido, o poema
vale por si mesmo, tem uma vida própria.
A
paisagem como espaço, como lugar ou lugares com gente dentro. Uma estética da
territorialidade, diria Vamberto Freitas. Espaço, ilha, Urzelina, Angra, Porto,
Canárias, ilha, Mafra, Guiné, Cabo Verde, Ponta Delgada, ilha, Lisboa, Piedade,
Pico, La Gomera, ilha, lugares nos quais e pelos quais a pulsão poética se
entretece a fazer e a desfazer memórias, a fiar e a desfiar sentimentos e
emoções, a compor e a descompor imaginários que, pela própria natureza das
palavras, são sempre outra coisa, eco, espelho, labirinto, da qual o verso
limpo, essencial, de uma delicadeza magoada, procura dar conta, enunciar o seu
exacto dizer.
Victor
Rui Dores, em texto sobre o livro Outros Nomes,
Outras Guerra, uma antologia de poemas publicada em 2015,
identifica, justamente, na produção poética e ensaística de Urbano Bettencourt,
a íntima ligação entre a vida e a escrita, e em que o poeta, [cito], «decifra o
enigma dos dias e viaja da ilha para o mundo, funcionando a ilha como uma
alegoria ou uma metáfora do mundo».
Assis
Brasil, num ensaio sobre outra colectânea de Urbano Bettencourt, Que Paisagem Apagarás, de 2010, traça o itinerário do
espaço, uma topologia, um programa de leitura dos espaços poéticos no percurso
criativo do poeta. Suportando-se na topo-análise proposta por Gaston Bachelard
no livro A Poética do espaço,
Assis Brasil destaca, muito justamente, a natureza do espaço poético como a
condensação imagética de objectos, lugares, situações, pessoas, que, na matéria
das palavras em si mesmas, se tornam outra coisa, realidades com vida própria
e, até certo ponto, independentes daquilo de que elas são o dizer. É a natureza
das palavras. Ao permitir-nos falar do que não está sob os nossos olhos, do que
já não está ou ainda não está, a palavra poética consome-se na actualização do
que nunca está presente ao nosso olhar.
É,
aliás, da consciência desta impossibilidade, deste desligamento, desta
ausência, desta distância, que o olhar poético de Urbano Bettencourt se
institui e constitui como símile da condição humana. O poema é, aqui, um
exercício de restituição que, incessantemente, se faz e refaz a partir da
consciência daquela impossibilidade. Veja-se, por exemplo, o poema inserto no
livro Naufrágios Inscrições, de 1987, cujo incipit pergunta como afrontar a erosão do gesto:
«Como
afrontar a erosão do gesto? Algumas
das palavras flutuam depois de mortas mas o verbo
as dissipa, lhes disseca a emoção de breves corpos sobre
a margem. Entretanto simularás aqui a construção da frase
língua a língua enunciada, o rumor do verbo no ventre
das baías.» (Pág. 63)
Por
isso, a ironia e o humor ocupam um lugar e função importantes na poesia de
Urbano Bettencourt. É que elas lembram, permanentemente, ao leitor que o verso,
no regresso sem fim a si mesmo, nunca se reencontrará no lugar de onde partiu.
Só por facilidade é que se diz que numa ilha, independentemente do seu recorte,
acaba-se sempre por regressar ao lugar de partida.
O
reverso, como a sombra, não é o negativo que se quer anular, mas sim realidade
que o poema integra, fazendo dela matéria do seu dizer e desdizer. Pela ironia
e pelo humor, o «pássaro da melancolia» não nos permite nunca pausarmos em
definitivo em contentamentos celebratórios do que na vida acontece – a
estritamente nossa ou a que fazemos com os outros. A guerra, os desencantos e
as perdas, que na poesia de Urbano Bettencourt são presenças indeléveis, não
autorizam lirismos versificados ou rimas encantatórias, metrificadas como deve
ser, auto-satisfeitas na exibição da técnica, na ostentação da competência
linguística ou na eufórica amostração do que, na literatura e na cultura, é enleio
do que é «nosso». É, vejam mal, «apenas nosso». A ironia ou é disfórica ou não
é. E Ernesto Gregório, que apesar de não estar, explicitamente, em Com Navalhas e Navios, sempre
aparece no verso que desencaminha do sentido aparente ou na subversiva mestria
com que o poeta sabe «fechar» um poema.
É
avisado o parágrafo em que Carlos Alberto Machado, em texto de apresentação de Que Paisagem Apagarás, nos alerta para o facto de que,
no mundo das ilhas de Urbano Bettencourt, os vulcões, magmas, nuvens, neblinas,
baleias e baleeiros não são adornos, ornamentos ou enfeites em que o verso
funcionaria ao modo de legenda para bilhete-postal, ou segundo a moda dos facebooks, de que o paraíso é aqui e viver é belo
porque é o contrário de estar morto.
Uma
antologia é um exercício de recolha e de escolha. Junta-se e ordena-se um
conjunto de coisas – tanto as que, na natureza, constituem o mundo, como as
que, na cultura, constituem os projectos humanos, colectivos e individuais.Com Navalhas e Navios é uma antologia de poemas,
melhor, de livros de poemas, dos quais o autor recolheu alguns que, levando à
letra a letra da palavra crestomatia, procura
organizar e comunicar o que há de exemplar e de significativo num saber ou num
saber fazer.
Com
esta colectânea, fica acessível ao leitor um percurso poético de 50 anos em
que, ao virar da página, se dá a ver a poesia como um [cito]
«Regresso
dos nomes e lugares
destes versos. Não direi, porém,
a exacta dimensão em que me tenha perdido
ou encontrado.
Pouso no peitoril a túnica
das palavras, o secreto sal dos seus caminhos,
e escuto
a lenta respiração
do mundo.» (Pág 106)
Texto da apresentação pública
do livro na Livraria Solmar, Ponta Delgada, setembro de 2019.
|
Leonardo Sousa |
A propósito de Navalhas e Navios.
Considerações sobre a poética de Urbano Bettencourt
Leonardo Sousa
Conta-se que, ao deparar-se com
um exemplar de Outros Nomes Outras Guerras,
deitada ao prelo pela Companhia das Ilhas em 2013, alguém confundiu a antologia
de poemas de Urbano Bettencourt com um passaporte. Tratava-se, pois, de um
objecto de tal forma discreto, de tal forma despojado de aparato, uma selecção
de poemas que reduzira a pouco mais de quarenta páginas uma obra que percorre
meio século, que a ninguém se poderia atribuir culpa pelo equívoco. Seria mesmo
um equívoco? Face à transformação de um motivo antológico num objecto de bolso,
pondera-se se aquele que se enganou não terá, na verdade, sido certeiro na sua
sentença.
Seis anos depois,
com carimbo ainda da mesma editora sediada na ilha do Pico, da qual o poeta é
também oriundo, será mais difícil fazer a mesma analogia. Com Navalhas e Navios acrescenta
poemas a quase todos os livros antologiados e introduz novas sequências que
haviam sido excluídas de Outros Nomes Outras Guerras.
Longe, contudo, de meramente engordar o volume, esta mais recente colectânea
confirma a harmonia, a coerência, a consistência, do trabalho poético de Urbano
Bettencourt, quando muito alargando a diversidade formal das suas
manifestações. Por outro lado, se sobrevivem apenas dois poemas de Raiz de Mágoa (1972),
assinalando o mesmo apuro criterioso, indicando por si só estarmos perante uma
reflexão crítica em torno de uma produção certamente mais vasta, é também
igualmente verdade que as linhas temáticas e formais desta poética podem ser
identificadas já nas primeiras composições.
Em “Quadras da
Ilha”, a “mágoa de estar vivo/ de estar vivo junto ao mar/ com meus olhos de
partir/ em meu corpo de ficar” constitui desde logo uma representação da
vivência insular, ritmada ao gosto popular, isto é, inserindo-se formalmente no
âmbito de uma experiência comum a um colectivo; do ponto de vista temático, na tradição
literária açoriana, a “dor de ser cais” traduz o conflito colectivo da viagem,
da partida de um lugar materno cercado por fronteiras marítimas, em tempos de
impossível transposição, e que, dizem os mitos, nos insulares resulta numa
experiência existencial persistentemente melancólica aonde quer que se fixem,
situada entre o desejo de novos caminhos e a latente consciência de que “os
barcos desejados/não regressam nunca mais”.
Os poemas de
Urbano Bettencourt viriam sempre a reencontrar-se com esse diálogo entre um
sujeito e os tempos e os espaços que atravessa. Ele, porém, demarca-se,
coloca-se na posição de quem constantemente revê as circunstâncias da sua acção
e afirma, com certa distância, a sua voz individual. Isto é visível em
versos como, no poema seguinte, “Mafra é Mafra/ e eu sou livre”; ou: “não
pretendo lançar no futuro/a minha história que os outros construíram”. A
liberdade, aqui, circunscreve-se aos limites – geográficos, históricos,
culturais – a que ninguém pode escapar, por melhor que se iluda. A consciência
individual dessa liberdade chega-lhe, afinal, carregada de memórias que
pertencem também a outros – e só detrás desse pano, nos bastidores, o indivíduo
se reconhece, “por detrás da máscara/ (…)/despido”.
Tal não significa
que o sujeito não procure um olhar autónomo (lembra-nos: “nem porei a cabeça no
alvo que procuras”) – a dicotomia entre si e o colectivo e, daí, a
representação vívida, por vezes crua, da guerra colonial, a “persistência da
memória” que, por via do acto poético, se transfigura, nisto abarcando a
experiência dos lugares – que se estendem das ilhas açorianas, às ilhas de Cabo
Verde, à Guiné, a Lisboa – e a experiência dos tempos históricos – desde o
Estado Novo, atravessando a revolução dos cravos e desaguando já nos nossos
dias de estabilidade (?) democrática –, são motivos que sempre habitam as
estruturas da obra aqui em visita. Fortificam-se e diversificam-se os seus
meios, a sua forma de canto, mas manifesta-se o que sempre se pode entender
como a mesma matéria poética. Trata-se da revisitação, da melancolia
retrospectiva de quem se ressente do peso das incontáveis folhas rasgadas do
calendário, do efeito da passagem do tempo que “sobre os corpos actua e se
transmuta, neles depondo/os resíduos” e dos quais sobra meramente “a intocável
poeira das palavras”, ela própria agente de transposição da memória que, no
último poema do livro, nos surge como uma “arte de montagem”. Uma fotografia
torna-se o mecanismo que serve “a pequena glória do técnico”: “a de
inventar-lhes uma história/ anulando a distância que vai de um natal dele/
sobre o Sado, em 70,/ à ilha dela e a um outro estúdio/ que o tempo baniu do
mapa da cidade”.
Nisto imiscui-se
um tom elegíaco, mas não necessariamente – ou explicitamente – trágico. Mesmo
quando se o pode intuir, sobressai-lhe frequentemente o pendor irónico, ainda
quando assuma contornos dolorosos. Em “Baía do Canto” pode ler-se: “dizia/ meu
avô que das figueiras colhesse/ o fruto, nunca a sombra. Morreu dependurado
numa”. Perpassa um tom desencantado por uma vasta parte desta poética, que se
dirige ao espectro das promessas e dos sonhos por cumprir (“Castos até no
incesto alguns de nós perderam/a fé a esperança em vinhas prometidas”), que
invoca âmbitos sociais e políticos (“os estivais calores de 75”, numa elegia
dirigida aos “turistas que pastam ao sol poente”), ou que se resigna a este que
talvez seja, ainda assim, “o melhor dos mundos” – mais não seja porque é o
único.
Este “Agostos”,
que conduz o leitor de um Agosto longínquo, de uma paisagem vívida de guerra,
até um Agosto presente, onde uma tranquilidade exterior – que o discurso
poético, com a sua serena gravidade, reflecte eximiamente – “vibra nos
telhados” e “as guerras trazem outros nomes,/outros donos”, é representativo do
esplendor desta voz, que intersecta memórias, cruza tempos e espaços díspares,
fazendo-as confluir em construções líricas onde não deixam de se envolver o
gosto pelo comentário alusivo e pela assonância, nelas operando reflexões de
inclinação céptica e/ou pessimista. Decerto porque a memória é ainda
macerada pelos fantasmas de uma guerra que, se aparentemente terminou, legou
inesquecíveis marcas a quem a viveu. Em Remuniciar o Tempo, temos disso exemplos vários: a
mulher que, “violada pela milésima vez”, permanece “teimosamente virgem”; o
poeta que “aborta os versos de gerações massacradas”; os companheiros com os
quais perdeu tudo “excepto o instinto animal de gatilhar”. Quando se reencontra
com Bolama, em Algumas das Cidades,
a raiva, o “cansaço de estar nu”, que se lêem nos poemas da Guiné, décadas
antes, são invocados com ironia e até, surpreendentemente, com humor: “Tenho
viajado muito/nem sempre na melhor altura”. A viagem, o lugar que se vivenciou
ou o lugar onde se está e se confunde com a memória de outro, é, com
frequência, nos poemas deste autor, o ponto de partida para a composição
poética. Porque o poema “afronta a erosão do gesto” – recupera, por via da
imagem, do ritmo, do som, uma circunstância temporal ou espacial, registando-a
segundo uma língua comum a todos nós, mas individualizada. Gera-se, assim, um
discurso ou um canto que, para o leitor, se torna um passaporte para o universo
que procura reportar e transformar.
Como assinala
Vamberto Freitas, a poesia de Urbano Bettencourt, ainda assim, “requer o nosso
reencontro de tempos a tempos” – a leitura que dela fazemos adensa-se e adquire
novas ligações entre si. Reconhecem-se-lhe diálogos com Camões, com Emanuel
Félix, com Santos Barros, com Nemésio, quer explicitamente quer ao nível da
construção, mas que sempre confirmam a unidade fundamental, orgânica, da voz
que nos conduz do primeiro ao último poema de Com Navalhas e Navios. Ainda espaço haveria para
se discorrer sobre a influência que Eros (como relembra Carlos Bessa no
prefácio) exerce sobre esta obra. Sobretudo na forma como se religam as ideias
de casa, natureza e ventre, a atribuição à palavra de uma função fertilizadora
(por exemplo, o verbo “penetrar” ressurge assiduamente) resulta frequentemente
numa composição na qual o “marinheiro com residência fixa” recupera e
reconstrói os lugares, as sombras, os afectos, que atravessaram a sua
existência e (des)orientam o seu sentido.
Leonardo Sousa, Atlântico Expresso,
2019-10-14
|
Luiz Antonio de Assis Brasil |
Os motivos de Urbano Bettencourt
Luiz
Antonio de Assis Brasil
Não desdenho a plurivalência semântica do vocábulo “motivo” do título, ora
declinado no plural; mas como uma resenha deve ser esclarecedora e não agente
de confusão, apresso-me a esclarecer que aqui, ao falar nos motivos de Urbano
Bettencourt, estou a pensar nas fontes culturais de sua escrita, encontráveis
na antologia de seus poemas saída na Primavera de 2019, nominada Com Navalhas e
Navios – poesia reunida 1972-2012, mas não só: penso, também, nas razões
interiores que o levaram a escrever poesia no decorrer das quatro décadas que
começam por Raiz de Mágoa [1972]. Como as razões interiores pertencem à reserva
íntima do poeta, posso, entretanto, adivinhá-las sob a proteção das reflexões
do autor acerca da nossa humanidade, trazidas à luz em poemas escolhidos da
obra em pauta. Advirto que pretendo fazer, aqui, um corte “horizontal”,
abdicando de uma peregrinação miliar e diacrónica por todos os livros – e
poemas avulsos – aqui reunidos.
Isto posto, meu texto terá um aspecto bifronte: por um lado, tentará descobrir
que fontes culturais são essas e, por outro, buscará identificar, num único
poema, o que pensa o autor sobre sua forma privilegiada de expressão artística.
Não desconheço a existência e a relevância dos textos em prosa de Urbano
Bettencourt, mas aqui, por óbvio, devo ficar adstrito ao objeto da recensão.
Gostaria de fazer um registo vestibular: este é um livro da dúvida, expressa
pela grande quantidade de sentenças interrogativas que são disseminadas pelos
diferentes poemas que o compõem. Quero dizer: Urbano Bettencourt não pretende
nos trazer verdades sólidas, irretorquíveis, mas antes deixar patente a ambivalência
que pede a cumplicidade criativa do leitor para que este possa ajudá-lo a
decifrar as perguntas que ele próprio se coloca. E são dúvidas que atingem a
essência do fazer poético, como revelando sua impossibilidade: como dizer o
ritual de retomar o gesto a crueza dos corpos entre as redes e as velas
decompostos? Ou, então, as imprecisões da História ao pensar no célebre
quadro de Domingos Rebelo: Estaria ausente o pintor quando / no cais antigo as
mulheres / desembarcavam os maridos os baús / e as crianças? Claro, algumas
sentenças são apenas formalmente interrogativas, como, do mesmo poema: Janelas
/ de Ponta Delgada, que horizontes vos não fixam / e se vos negam? – trata-se,
vê-se, de um recurso retórico, mas ninguém fica indiferente, e talvez fale mais
do que as afirmações. Aliás, em todo o livro há um eu-lírico que, para além das
contínuas perguntas, rejeita o tom categórico das afirmativas, ou ele existe de
forma mitigada, escondendo-se na insinuação das metáforas.
Há, perceptível, a presença de um motivo que frequenta – antes com maior força,
é verdade – a escrita daqueles açorianos que participaram da guerra colonial ou
foram por ela afetados, e que exorcizam suas percepções quase sempre através da
narrativa. Esse é um assunto que, parece, transita também para a segunda
geração, isto é, a dos filhos e netos dos participantes da guerra, embora não
saibamos, ainda, sua exata dimensão e durabilidade. Na vertente “canónica”,
entretanto, os exemplos estão aí, e podem ser citados, dentre outros, e em
ordem cronológica de publicação, José Martins Garcia [Lugar de Massacre, 1975],
João de Melo [Autópsia de um Mar de Ruínas, 1984], Álamo Oliveira [Até hoje.
Memória de Cão, 1988] e Carlos Tomé [Morreremos Amanhã, 2007]. Esse viés, em
Urbano Bettencourt, é mais visível em Remuniciar o Tempo: – 13 Poemas da Guiné,
incluído na coletânea que ora nos ocupa, e que nos traz a vivência desse
conflito bélico. Sua irresignação à guerra transparece no poema “De Mafra, com
mágoa”, sendo ali um lugar de preâmbulo de uma sequência que levaria à África:
Mafra é Mafra / e eu sou eu. A eclipsar/explicar a aparente tautologia, vem a
declaração pacifista: Nunca acertei meus passos pelo ritmo das balas / nem
porei a cabeça no alvo que procuras. / Por detrás da máscara eu lá estou / sem
ódios, nem balas, nem guerras / despido / e com um ramo de cravos / em cada
mão. O que distingue nosso autor é a rara utilização do gênero poético para
tratar da guerra [tal como, nos Açores, encontramos J.H. Santos Barros e, no Continente,
Manuel Alegre]. Sua perspectiva já na Guiné, mais do que o horror e a denúncia
de seus pares geracionais, alterna-se na díade medo/enfado: domingo tão
chato/como a chatice antiga de ir ao domingo à missa. Depois: daqui escrevo
este batuque de medo. Não deixam de estar presentes, contudo, a raiva, a
indignação, a saudade de casa, a solidariedade com a Guiné: Aqui também em maio
se escreveu / morte mágoa vértice de saudade, ou porque escrevo raiva / ante o
cansaço de meus braços armas e depois: um país pisado / lilás / violado em cada
noite pelas bombas. O enfado e o medo, portanto, agem como catalisadores dessa
raiva, dessa saudade, dessa compaixão, pois todas essas circunstâncias se
interpenetram, gerando inesperadas realidades poéticas. Tentando resumir esta
última reflexão: porque o poeta é um só, não apenas como poeta, mas também como
homem, naturaliza-se a ideia, facilmente apreendida pelo leitor, de que nenhuma
emoção é pura, mesmo quando estilizada pelo verso. No caso de Urbano
Bettencourt, é possível dizer que ainda valem, e muito, os poemas de Remuniciar
o Tempo: a universalidade dos sentires humanos garante-lhes plena justificativa
neste século XXI. Essa é, aliás, a marca da boa poesia: ainda que datada,
fala-nos desde sempre e para sempre.
Outro âmbito genético bastante disseminado por todo o livro é a figura
feminina, transposta em metáforas aliciantes. Trata-se de uma perspectiva de
colocar-se ao lado da mulher que sofre, mas jamais no exercício da piedade,
esse sentimento estéril. É uma atitude construtiva, que entende a mulher como
um ser de padecimento numa sociedade ainda dominantemente masculina. Essa
atitude é ampla, compreendendo também as mulheres da guerra: como este lago de
sangue / nascido nas pernas da mulher / violada pela milésima vez / e sempre
virgem / teimosamente virgem. Aqui uma exegese mais dilatada poderia inferir
citações bíblicas subjacentes, e deixemos ao leitor que o faça, segundo seu
modo de entender a fé. Já o lamento, a dor e a incompreensão têm residência no
poema “Elis, essa mulher”, a cantora brasileira tão cedo e inesperadamente
morta, sem nenhum aviso prévio de peregrinação / à porta, nem um presságio. É
um poeta capaz de criar o sintagma: a virtude das mulheres infiéis no notável
“Cidades de Passagem”, subvertendo a lógica da moral comum. Aliás, temos de
estar atentos. Urbano Bettencourt faz essa subversão a todo momento em Com
Navalhas e Navios.
Esta recensão ficará incompleta se não assinalar a onipresença dos Açores, que
são afinal, o lugar de nascença e permanência, esta última com ausências
pontuais. Muito longe estamos de Roberto de Mesquita e sua sensação conflitiva
de encarceramento e infinitude, como bem detectou José Martins Garcia na obra
do autor de Almas Cativas. Os tempos são outros, o poeta é outro. Em Urbano
Bettencourt, sem a pretensão de buscar uma amplitude hermenêutica tal como
proposta por Martins Garcia, é possível dizer que o poeta cultiva antes de tudo
uma realidade insular inominada, o que pode levá-lo além do Arquipélago
familiar, e eis aí outra distinção relativamente aos seus coetâneos. Sabe-se
que o autor frequenta outros sistemas literários insulares. Como diz, Tenho
viajado muito / nem sempre na melhor altura. E essas viagens ocorrem na
busca, ainda que velada à consciência, de conceituar um designativo comum que
una esses sistemas para além da língua partilhada e transformada. A tarefa não
é fácil, tendo em conta a diversidade histórica e cultural desses universos em
meio ao Atlântico. Já as ilhas de sua vivência medular são expressas em
engenhosas e escolhidamente naïves “Quadras de Ilha” – a não esquecer Pessoa,
que cultivou o género em Quadras ao Gosto Popular – mas, de igual sorte, suas
metáforas abstratas, que, por vezes, vêm acompanhadas de um motivo inesperado,
como o poema “A meu pai, construtor de barcos”: tu fabricante de viagens /
amordaçadas / arquitecto de ilhas / naufragadas. A acompanhar esse inventário
há, quase sempre, um olhar que revela algo de tênue sarcasmo, como neste
“Postal de São Jorge”: Sábado de manhã, abres a janela sobre o mar e as
invisíveis laranjas / da Urzelina. Canal. A gente tá aqui é pra esperar. E o
Pico sem mexer. Quanto às outras ilhas fora do Arquipélago, temos Cabo Verde, a
que o poeta lança um olhar positivo, de reconhecimento de uma arte fresca como
a da cantora bem conhecida em São Miguel, Djuta Ben-David, da qual celebra a
discreta música de búzios / e conchas, e que conclui com um brado enérgico e
inequívoco: Sodade de Cabo Verde. Ainda Urbano Bettencourt escreve um poema
cheio de doçura e enternecimento à “sabedoria” das cabras de Cabo Verde, que
envelheceram demasiado cedo / a interrogar o mistério do sal / e do vento.
Também às Canárias ele tem os olhos prendidos, como em “La Gomera”, que é um
gomo de mistério / na sua casca de cinza / e noite. Digamos assim: se a vida no
seu Arquipélago natal vem às vezes carregada de tantas dúvidas e eventuais
críticas e ironias, o refúgio moral do eu-lírico encontra amparo noutras ilhas,
ainda virgens ao seu olhar, e é lá onde ele põe toda sua reserva de
descobertas.
Quando Urbano Bettencourt se volta para o fazer do artista da
palavra – passe a expressão um pouco desfasada – muito poderia ser dito, mas
creio que a summa está visível num momento capital deste livro. Tudo está ali.
É uma declaração de princípios, eu diria, quase um manifesto, se ainda
vivêssemos em época de manifestos literários. Peço desculpas pelo tamanho da
citação, mas isso é necessário por sua importância: Fazer versos dói? Não! As
tecnocracias / literárias também fazem fermentar os seus vates voadores / de
cinco e mais estrelas compondo em papel de cor / e perfumado suaves
consolações, perversas constelações / ao Dicionário de Rimas arrebatadas. / / O
que dói é arrancá-los / assim ao próprio sangue como se um filho fora,
erguê-los / à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever / a nossa morte. A nossa
vida. O leitor já entendeu que o poeta não faz concessões à escrita
fácil, aquela que não brota da dor e da profunda relação entre a vida – ou a
morte – e o poema; enfim, insurge-se com o poema feito de artifícios da
superficialidade, das “tecnocracias literárias”, e, ao contrário disso, ele
prega a verdade do poema que emerge das entranhas sanguinolentas, “como se um
filho fora”.
Chegou o momento de resumir. Urbano Bettencourt, na sua reunião de poemas em
boa hora publicada pela admirável Companhia das Ilhas, constitui-se num poeta
de consistência autêntica, persistente no seu ofício, erudito – haja vista as
dezenas de alusões culturais – capaz de ser lido por qualquer geração, hoje e
amanhã, e que ainda irá dar aos seus leitores muito mais de sua inequívoca
vocação.
Publicado no Diário dos Açores, 1 de fevereiro 2020
Bettencourt, Manuel
Urbano
[N. Piedade, Lajes do Pico, 24.11.1949] Poeta e docente
universitário. Raíz de Mágoa, primeiros poemas de Urbano
Bettencourt publicados em livro, data de 1972, e a mais recente, Algumas
das Cidades, de 1995. Tem publicado entretanto e regularmente nos mais
diversos periódicos científico-académicos ou de larga circulação, reunindo-os
em sucessivos volumes (três, até hoje) sob o título de O Gosto das
Palavras. Paralelamente àquela consistente actividade literária, nunca
deixou de intervir a vários níveis na vida cultural da comunidade açoriana,
sempre consciente da sua dispersão e consequente ?riqueza? artística ao longo
dos séculos ? um mosaico de ser e estar diverso
e conjugado num todo, como as próprias ilhas a que ele intimamente pertence, e
a partir das quais se posiciona perante o restante mundo. Foi ainda a meados
dos anos 70 (e como resultado imediato do 25 de Abril) que Urbano fundou e
dirigiu, com o falecido J. H. Santos *Barros, A Memória da Água-Viva,
a primeira revista de cultura açoriana que propôs com desusada audácia um
projecto de definição e defesa de uma Literatura Açoriana a partir de
pressupostos ideológicos profundamente democráticos e universalizados. Urbano
tem antecipado outros teoricamente numa antevisão de um pós-modernismo
culturalmente abrangente e marcado necessariamente pela permanente dialéctica
da territorialização/desterritorialização (de que falaria mais
tarde Edouard Glissant em relação às ilhas Caraíbas) da criação literária
açoriana, enraizada desde há muito, tanto na experiência histórica da vida nas
ilhas como na ?convivência? ou diálogo intelectual com o exterior, desde o
Continente português às Américas. Urbano Bettencourt é, nos Açores, um dos mais
completos e consequentes exemplos do poeta e crítico, com
profundo enraizamento na experiência criativa do nosso país. Desde há anos
docente de literatura na Universidade dos Açores, a dualidade da obra de
Urbano, assim como o seu papel de homem de letras público, faz lembrar a
dinâmica criativa e teorizadora do conhecido grupo de poetas sulistas
norte-americanos que (também a partir das suas universidades) nos anos 30 e 40
criaram e aprofundaram o New Criticism, a mais duradoura (e
internacionalizada) proposta teórica na descodificação do texto poético.
A data da publicação da sua poesia é pertinente. É aí que se encontra a
chave descodificadora de muita da sua temática: o desespero e alienação de toda
uma geração perante a guerra colonial e a longa ditadura política que não
deixava mais do que a resistência ou a emigração a homens e mulheres livres e
conscientes do seu momento histórico adentro de um referencial transnacional. O
trágico cerco humano, na poesia de Urbano, intensifica-se na geografia
atlântica da ilha abandonada e num tempo sem tempo. Urbano
cultiva, desde o início, na sua poesia, uma aguda ironia e certo grau de
ambiguidade na abordagem do mundo ilhéu açoriano ou mais vastamente português.
A sua linguagem poética está decididamente vincada por uma insistente
imagística e demais andamentos ora de denúncia da desolação societal ora de
dialogismo entre autores e textos das mais próximas e distantes geografias
reais e imaginárias; é a poética de uma dialéctica entre a realidade estática e
a fuga através da pura fantasia. Há na sua obra a continuidade de preocupações
temáticas expressas nas mais diversas formas desde, por exemplo, Fez do
abandono um hino de coragem, do poema ?Ilha-Grande? do já
referido Raíz de Mágoa de 1972, a O mundo
acaba mesmo em frente, de encontro à Montanha emboscada
na sua teia de nuvens, de ?Horta, um perfil? em Algumas das Cidades de
1995. Este seu mais recente livro contém nove sequências sobre
Angra pós-sismo (de 1980). É um gesto poético de aproximação afectiva e
simultâneo distanciamento irónico e intelectual à realidade da ilha caída e
aparentemente ?recuperada?.
Ensaísta e teorizador crítico da literatura e cultura açorianas, tal como
na poesia, Urbano estende consideravelmente o campo de contextualizações
estéticas e históricas. A análise textual serve-lhe inevitavelmente para a
retenção de ideias principais e impulsos temáticos de cada texto em foco. A sua
?comunidade? de referências literárias e culturais inclui naturalmente a maior
parte dos seus colegas dos ou nos Açores, mas nunca ignorando os que, de um
modo ou outro noutras partes, intervieram ou intervêm nesse gesto de
reconhecimento melvilliano de geografia para geografia, de
língua para língua. Os escritores africanos de língua portuguesa,
principalmente os cabo-verdianos devido às suas afinidades intelectuais com as
ilhas açorianas, são-lhe uma presença constante e frutífera, como nos
mostra De Cabo Verde aos Açores ? à luz da Claridade, editado
(em 1998) na cidade do Mindelo após uma série de conferências que Urbano
proferiu naquele arquipélago. Quanto aos referidos volumes de O Gosto
das Palavras, bastará citar o que sobre essa obra de referência (para
qualquer estudioso da literatura ou cultura açorianas) escreveu um dia Eugénio
Lisboa nas página do JL: ?É que se Urbano é um académico genuíno,
por profissão e competência, é também, e acima de tudo, um verdadeiro escritor.
A diferença é enorme. O académico só tem que ensinar, investigar e apresentar
comunicações com o resultado dessa investigação. Ao escritor compete-lhe criar
textos, isto é, de criação literária que, mesmo comentando outros textos, estão
muito para além da comunicação meramente denotativa?.
A experiência imigrante açoriana na América do Norte e os
seus reflexos nalguma literatura do arquipélago, para além de constantes
chamamentos na sua restante obra poética e ensaística, valeu-lhe
ainda o estudo Emigração e Literatura: Alguns Fios da Meada,
publicado na cidade da Horta em 1989. Trata-se de uma análise de como esse
(talvez o mais importante) vector histórico na vida multissecular dos Açores
foi transfigurado ou representado por alguns escritores açorianos no fim do
século XIX.
Vamberto Freitas (2002)
Obras (1972), Raíz
de Mágoa. Setúbal, Ed. do Autor. (1980), Marinheiro com Residência
Fixa. Lisboa, Grupo de Intervenção Cultural Açoriano. (1987), Naufrágios/inscrições.
Ponta Delgada, Brumarte. (1995), Algumas das Cidades. Angra do
Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura [poesia]. (1983), O Gosto das
Palavras. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura
[artigos sobre Antero de Quental e outros autores açorianos; o carácter cósmico
de alguma poesia barroca, os Apólogos Dialogais de D.
Francisco Manuel de Melo]. (1989), Emigração e Literatura. Horta,
Gabinete de Cultura da Câmara Municipal [ensaio que aborda a questão nalguns
contistas açorianos do final do século XIX].O Gosto das Palavras. Ponta
Delgada, Jornal de Cultura, II [ensaios sobre autores açorianos e ainda Maria
Ondina Braga, Helena Marques, António Tabucchi, Raul Brandão, entre outros].
(1998), De Cabo Verde aos Açores ? à luz da Claridade.
Mindelo, Câmara Municipal de S. Vicente. (1999), Gosto das Palavras. Lisboa,
Ed. Salamandra, III. [Ensaios sobre Literatura Clássica Portuguesa e Literatura
Açoriana e Cabo-Verdiana] [Crítica/Ensaios Reunidos]. (1986), ?Rodrigo Guerra -
Alguns Olhares? in Onésimo Teotónio Almeida, Da Literatura Açoriana ?
subsídios para um balanço. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e
Cultura. (1987), Algumas Palavras a Propósito... In Terra,
F. Água de Verão. Ponta Delgada, Signo. (1998), ?A Ilha de Fernão
Dulmo em Mau Tempo no Canal? In Homem, M. A.
(ed.), Livro de Comunicações do Colóquio As Ilhas e a Mitologia.
Câmara Municipal do Funchal: 117-123. [Ensaios Dispersos].
Fonte: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=51 (consultado em 14/09/2019)
“Com Navalhas e
Navios, de Urbano Bettencourt” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 14-09-2019. Disponível emhttps://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/a-minha-poesia-esta-diferente.html