quarta-feira, 24 de julho de 2019

Quem muito viu..., de Jorge de Sena



Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há de encontrá-lo morto.

Soneto de Jorge de Sena, Brasil, 1956-65
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), incluído em Poesia III (1978)




Sobre “quem muito viu…”

Inscrito na seção “Brasil” de Peregrinatio ad loca infecta (1969), livro dividido em 4 partes mais um epílogo (respectivamente “Portugal (1950-59)”, “Brasil (1959-65)”, “Estados Unidos da América (1965-69)”, “Notas de um regresso à Europa (1968-69)” e o poema “Ganimedes”), o soneto “Quem muito viu…” talvez seja um dos poemas que melhor dê expressão ao título do livro e seu sentido de peregrinação. Talvez até possamos pensar que o sujeito deste poema é o próprio movimento, o próprio peregrinar, numa busca incessante.
Seguindo o trajeto de um sujeito – singular ou coletivo? – apenas designado pelo pronome “quem”, que mais oculta do que revela a sua identidade (ou mais revela que oculta, se pensarmos numa dimensão autobiográfica…), o soneto assinala um movimento contínuo, materializado no discurso pela enumeração e pela sucessão de orações coordenadas (“Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,/ mágoas, humilhações, tristes surpresas;/ e foi traído, e foi roubado, e foi/ privado em extremo da justiça justa”). Esta acumulação de acontecimentos nem sempre correlatos, mas todos ligados ao mesmo sujeito, vai como que arrastando o leitor e tira-lhe o fôlego até poder respirar novamente, no décimo verso, diante do ponto que finaliza o longo período. Percebe então que este se fecha com uma sentença radical: o ser que tanto experimentou, ou que, camoniamente, “errou todo o discurso dos [s]eus anos”, afinal “não sabe nada, nem triunfar lhe cabe/ em sorte como a todos os que vivem.” Tal declaração (que nos recorda “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, cuja primeira estrofe enfatiza o não ser nada, o não saber nada) cria enorme surpresa por sugerir a inconsistência ou futilidade daquele somatório de experiências que o sujeito incorporou ao longo dos tempos. Mesmo o ter conhecido “mundos e submundos”, mesmo o ter sido tudo, ainda não foi suficiente e, por isso, em que pese o contraditório, “Apenas não viver lhe dava tudo.”
No entanto, o poema prossegue, semelhante a uma profecia, cujo tom não é menos radical que a afirmação anterior: “Inquieto e franco, altivo e carinhoso, será sempre sem pátria”. Surge aí o termo historicamente ancorado – pátria – que tudo esclarece: esse sujeito indefinido será sempre marcado pelos tempos e espaços do desterro, da condição ex-cêntrica, da condição de exilado, ou seja, do “não viver”. E, ao fim do poema, em outra afirmação voltada para o futuro, lemos, “E a própria morte,/ quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.”, a sugerir uma espécie de sujeito (“altivo”), que, graças à sua trajetória de exílio, de não-vida, é capaz de ultrapassar a própria morte. Antecipando-se a ela, recusa o território que ela lhe poderia oferecer – uma espécie de “pátria” da morte – e, portanto, por ser apátrida acima de tudo, consegue derrotá-la.





    Ligações externas:


Homenagem a Jorge de Sena - Colóquio Letras, N.º 104/105 (Jul. 1988), Disponível em: http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?issue&n=104


“Jorge de Sena e o testemunho poético de paisagens ausentes”, Alessandro Santos. Nau Literária, PPG-LET UFRGS, https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/76095/47029, vol. 13, N. 02 2017

Ler Jorge de Sena® 2010 Universidade Federal do Rio de Janeiro

O essencial sobre Jorge de Sena, Jorge Fazenda Lourenço. 2.ª edição revista e aumentada, INCM, 2019






Quem muito viu..., de Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 24-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/quem-muito-viu-jorge-de-sena.html



1 comentário:

Paradiso Morricone disse...

Eu conheci Jorge de Sena quando tinha 16 anos hoje tenho 58 amo demais gosto de "a morte o espaço e a eternidade" que escreveu em homenagem a um ente querido em um sábado de aleluia. fiquei feliz em ver que alguém também gosta desse trabalho. Quem muito viu é lindíssima. Triste é que não tenho com quem conversar sobre poesia e musica etc, isso aumenta a solidão abraços saúde e paz. Cesar Renato porto alegre RS