segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A Clepsydra Libertada


Sobre a fixação do texto e a edição da poesia de Camilo Pessanha.
Tiago Clariano

 
Camilo Pessanha é um dos maiores poetas do fin-de-siècle português ao lado de nomes como Cesário Verde e António Nobre. Estes três nomes são os últimos poetas portugueses que, antes do período modernista, escreveram um único livro de poesia: falo de O Livro de Cesário Verde, e Clepsydra, que foram sendo aperfeiçoados1. Outra característica em comum é o facto de os autores não terem tido mão directa na edição dos seus livros, legando o processo editorial aos seus melhores amigos Silva Pinto, Alberto de Oliveira e Ana de Castro Osório, respectivamente.

Deve realçar-se que a qualidade destas poesias é muito superior à falta de qualidade do seu processo editorial: apesar de ser comovente por contar com o conhecimento dos melhores amigos dos autores acerca das suas obras, por outro lado o mesmo processo é angustioso pelas deliberações editoriais que foram tomadas, nomeadamente no caso de Camilo Pessanha.
Quando se fala de intervenções editoriais na finalização e na divulgação de obras literárias, são referidos nomes como Emily Dickinson cujo trabalho foi escolhido e publicado postumamente ou John Donne que teve a sua primeira edição em 1633, apesar de esta ser geralmente considerada uma representação da arte deste poeta. Mesmo o poema “The Wasteland” de T. S. Eliot teve uma história editorial conturbada, tendo sido aperfeiçoado, a pedido do seu autor, por Ezra Pound, a quem o poema depois foi dedicado com a inscrição “Il miglior fabbro” (“o melhor artesão”). Dos casos elencados, o mais similar a Camilo Pessanha será o de John Donne: as primeiras edições de Pessanha também não deixam espreitar a sua técnica tão bem quanto seria o seu objectivo, enquanto trabalhos filológicos.
A Clepsydra de Camilo Pessanha é considerada um livro-fantasma por ter tido várias organizações no que toca à ordem dos seus poemas e cujo resultado muito dependeu das decisões dos seus editores. Em 1920, quando foi lançada a primeira edição da Clepsydra, o seu poeta tinha perdido a vontade de organizar um livro, visto que reage à sua recepção pelo correio referindo a sua alma “há tantos anos morta”. O que resulta num “livro indecidível”, como Gustavo Rubim teoriza no seu artigo “Fantasmas da Obra”:

Digamos, pois, que a hipótese do livro indecidível pretende suscitar a questão do livro como fantasma interior à escrita poética, evitando assim resolvê-la antecipadamente num programa intencional, ou reduzi-la a mero problema filológico ou de critérios de publicação. Pretende, por outras palavras, pensar o livro enquanto questão inscrita em espectro nas linhas ou entrelinhas do poema. (2008: 88)

Assumindo estes vestígios de obra, inscritos nas linhas ou entrelinhas do poema, gostaria, com o presente trabalho, de fazer propostas que ajudem a Clepsydra a deixar de ser um livro indecidível, para passar a ser apenas um livro indecidido, como o seu poeta a deixou. Para estes efeitos, serão escrutinadas as várias edições feitas pelos amigos de Camilo Pessanha, de modo a encontrar vestígios do que seria a sua intenção para o livro. À medida que as questões editoriais são questionadas, outros escritos e informações conhecidas do poeta serão analisados para uma melhor intuição dos seus objectivos. Este trabalho parte ainda da ideia de que cada edição da Clepsydra exigiu um esforço crítico de  lidar  com  uma  obra  incompleta,  fragmentada,  dispersa  e  com  apenas  algumas indicações verbais acerca de como o fazer.
Depois de analisadas as edições da Clepsydra feitas pela família Castro Osório, entra em campo a teorização. A que se deverá esta fragmentação e dispersão da sua obra? Porque é que um mesmo poema surge com formas variantes? E a conclusão a que se pretende chegar é uma aproximação desta poesia à estética musical. Avança-se a hipótese de que, nas suas declamações, Camilo Pessanha era, por excelência, um poeta que escrevia os seus poemas depois de os declamar, sem prejuízo de voltar a declamá-los, com variações, mesmo depois de passados a escrito. Nas suas declamações, o poeta tomava liberdades que não podiam ser tomadas por escrito, o que resultou na dificuldade de fixação da sua poesia. O que se passa na declamação destes versos é parecido com o que se passa em interpretação musical: a mesma peça musical nunca é interpretada da mesma forma. A característica musical dos seus versos constitui uma forma de se libertar do texto e de se aproximar da estética que estava em voga, como por exemplo, na conhecida frase de Paul Verlaine, “De la musique avant toute chose”. Constitui-se, portanto, a libertação da Clepsydra pela declamação como uma libertação da fixação, deixando os seus poemas conhecidos, mas nunca fixos nem ordenados numa forma final de que não se pudesse escapar. Pessanha sabia e era tema recorrente da sua poesia que a idealização, a criação de hábitos ou de padrões de interpretação tinha o seu maior rival na desilusão que se segue ao confronto com a realidade.
Faço uma última adenda a respeito das referências dos poemas feitas neste ensaio: todos eles remetem para a edição crítica de Paulo Franchetti, publicada pela editora Relógio D’Água em 1995, por considerar ser esta a melhor e mais completa representação do texto de Camilo Pessanha. Sempre que os poemas são citados, sem apelido de autor ou data de edição é para as páginas desta edição que os números entre parêntesis remetem.

 CLEPSIDRA

A Clepsydra agrilhoada (ou editada)

A excelência da poesia de Camilo Pessanha rapidamente lhe fez reputação por causa das suas declamações em cafés e saraus ao longo das poucas vezes que regressou a Portugal, depois de partir para Macau, para trabalhar, a 19 de Fevereiro de 1894. O poeta era amigo próximo de Alberto Osório de Castro, outro poeta, e foi apresentado a Fernando Pessoa no café Suiço pelo general Henrique Rosa. Sabemos que Mário de Sá-Carneiro muito esperava da poesia de Camilo Pessanha, chegando a responder, quando lhe perguntaram qual seria o maior livro de poesia dos últimos trinta anos, que “seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista” (2010: 643). O mesmo poeta pedia a Fernando Pessoa que lhe enviasse versos de Camilo Pessanha2, sendo que este transcrevia e decorava alguns destes poemas, que guardava religiosamente3 por o considerar como um mestre.
O conhecimento superficial desta poesia tão hipnotizante pelos seus ritmos, eufonias e harmonias, bem como o facto de permanecer inédita, moveram Fernando Pessoa a contactar Camilo Pessanha, pedindo-lhe autorização para editar a sua poesia na revista Orpheu, de cujo conselho editorial fazia parte em 1915:

(…) é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu actual carácter de inéditos (quando, aliás, correm, estropiados, de boca em boca nos cafés) a que ouso endereçar a V. Exa. esta carta, com o pedido que contém. (…) O meu pedido tenho, reparo agora, tardado a chegar a ele é que V. Exa. permitisse a inserção, em lugar de honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas. (...) Entre os poemas que era empenho nosso inserir contam-se os seguintes: Violoncelos”, Tatuagens”, O Estilita (conheço, deste, o segundo soneto), Castelo de Óbidos”, O Tambor”, Nocturno”, Passeio no Jardim”, Ao longe os barcos de flores”, O meu coração desce...”, “Passou o Outono ”, Floriram por engano as rosas bravas...”, O Fonógrafo”. Ao soneto que considero o maior de todos os seus, e é sem dúvida um dos maiores que tenho lido Regresso ao Lar , não me refiro, visto que o seu assunto, infelizmente, inibe (e creio ser essa a vontade de V. Exa.) que ele se publique. (Pessoa, 1986: 119)

Este pedido é importante por constituir um primeiro esforço de colecção da poesia de Camilo Pessanha e por vir de Fernando Pessoa, um grande admirador da sua poesia, que transcrevia, repetia e estudava. Um admirador que sentiu que os poemas de Pessanha, enquanto estivessem inéditos, e por isso não estavam fixados, continuariam a corriam estropiados por Lisboa. Porém, nem esta carta obteve resposta, nem a revista Orpheu chegou a ter uma terceira edição, que incluiria versos de Camilo Pessanha4.
Na altura em que a carta de Fernando Pessoa foi enviada, Camilo Pessanha encontrava-se em Portugal. O poeta frequentava saraus na casa de Ana de Castro Osório, irmã do seu grande amigo, Alberto Osório de Castro, e a mulher por quem Pessanha se tinha apaixonado quando era mais jovem. Alguns críticos argumentam que esta mulher foi o motivo da saída do poeta para Macau, sustentando-se no poema “Canção da Partida”, onde o poeta, que parte de barco, pede aos seus marujos que atirem o cofre que contém o seu coração ao mar:

E hei-de mercar um fecho de prata. O meu coração é o cofre sellado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…

A ultima, de antes do teu noivado.5 (90)

O noivado referido é o motivo do desinteresse amoroso de Ana de Castro Osório, que estava prometida a Paulino de Oliveira e com quem casou em 1898. Não obstante, e do que se sabe, este poema foi publicado pela primeira vez a 5 de Novembro de 1897, no jornal A Tribuna, pelo que precede e expressa ansiedade pelo casamento da mulher que o poeta amava. Camilo Pessanha torna a conviver com Ana de Castro Osório depois desta ficar viúva, nos regressos que fez ao país depois de 1910.
Em “Canção da Partida” encontramos um dos tons recorrentes da poesia de Camilo Pessanha: a grave depressão que faz implorar a anestesia, a ausência total de sensações seja pelo atirar do coração ao mar, de modo a não sofrer por causa das emoções, seja a pedir o enterro do seu próprio corpo, num poema como “Porque o melhor, emfim”, para não sofrer por sensações:

Porque o melhor, emfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sôbre mim
E nada me doer! (127)

É plausível que a carta de Fernando Pessoa e o seu intuito de ver a poesia de Camilo Pessanha editada tenham sido tema de conversa num desses saraus na casa dos Castro Osório. A crítica não tem prestado muita atenção ao facto de a carta de Fernando Pessoa ter sido enviada no mesmo ano em que Ana de Castro Osório começa o seu projecto editorial para a Clepsydra. Ver esta carta (que não tem data) como possível antecessora deste projecto suplementa a hipótese de que terá sido esta a rampa de lançamento para a edição da poesia de Camilo Pessanha.
No início do ano de 1915, nos saraus em casa de Ana de Castro Osório, a anfitriã pede a Camilo Pessanha que comece a registar os seus poemas, de modo a poder organizá-los num livro. O poeta registou vinte poemas em autógrafos e ditou um a João de Castro Osório (que, então, tinha 17 anos), tendo corrigido a pontuação e algumas palavras. O poeta ainda ficou de enviar mais alguns poemas que comporiam a primeira edição da sua obra.
Os poemas registados em autógrafo por Camilo Pessanha datados do início de 1915 foram: “Eu vi a luz em um paiz perdido”, “E eis quanto resta do idyllio acabado”, “Floriram por engano as rosas bravas”, “Esvelta surge! Vem das aguas, nua”, “Desce em folhedos tenros a collina”, “Singra o navio. Sob a agua clara”, “Se andava no jardim”, “Voz débil que passas”, “Passou o outomno já, torna o frio”, “Em um retrato”, “Ao longe os barcos de flores”, “Phonographo”, “Ao meu coração um peso de ferro”, “Quem polluiu, quem rasgou meus lençoes de linho”, “Imagens que passaes pela retina”, “Quando voltei encontrei os meus passos”, “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, “Rufando apressado”, “Depois das bodas de ouro” (estes dois com a anotação “De memória”) e “Chorae arcadas”. Para além destes poemas, os poemas “Estátua”, “Crepuscular” e “Interrogação” foram recolhidos do jornal O Novo Tempo, onde tinham sido publicados entre 1889 e 1899.
Dos poemas então coligidos, quinze são reunidos e enviados ao editor da revista Centauro,  Luís  de  Montalvor,  e  a  sua  publicação  nesta  revista  indicia  o  estado «embrionário» do primeiro livro de Camilo Pessanha, como foi descrito por Ana de Castro Osório6. É de notar que oito dos quinze poemas editados na revista Centauro em 1916 correspondem a poemas que foram pedidos por Fernando Pessoa. Caso a carta de Fernando Pessoa nunca tenha sido lida por Camilo Pessanha, pode concluir-se que este conjunto de poemas correspondiam aos poemas em que o poeta mais pensava durante os anos de 1915 e 1916, tendo-os declamado em cafés nos quais Fernando Pessoa estava presente, que os ficou a conhecer.
Para a primeira edição da Clepsydra, foram ainda enviados por Alberto Osório de Castro os poemas “O meu coração desce” (conhecido por “Queda”), “Ó meu coração, torna para trás” (o primeiro do díptico “Paisagens de Inverno”), “Quando se erguerão as seteiras?” (que por vezes recebe o título “Castello de Óbidos”) e “Na cadeia, os bandidos presos”7, que tinham sido enviados por Camilo Pessanha ao seu amigo em 1907. O poema “Ó meu coração, torna para trás” foi dedicado ao filho de Alberto Osório de Castro, Rodrigo de Sousa Coutinho Osório de Castro. “Quando se erguerão as seteiras?” reporta- se a uma visita ao Castelo de Óbidos partilhada por Camilo Pessanha e Alberto Osório de Castro.
Os restantes poemas que compõem a primeira edição da Clepsydra são compilados de autógrafos e cópias feitas pelos Castro Osório através das seguintes fontes coligidas por Paulo Franchetti para a sua edição crítica da Clepsydra: um autógrafo de “Tatuagens” datado de 1 de Janeiro de 1916, um autógrafo de “Depois da lucta e depois da conquista”, pertencente a Carlos Amaro, e a cópia de “Foi um dia de inúteis agonias”8, levada a cabo por João de Castro Osório num dos saraus e que depois foi submetida a Camilo Pessanha para correções de pontuação e ortografia.
Da transcrição dos poemas para a sua edição resultaram transtornos no equilíbrio dos mesmos (em termos de tempo ou ritmo e em termos de tom ou som): disso é exemplo a dificuldade de interpretação da caligrafia do poeta, que leva os primeiros editores a publicar o poema “Queda” com o décimo verso “Átomo miserando”, quando nos manuscritos se “Atono”9. Note-se que é apenas uma palavra, mas como transtorna completamente o poema que tinha sido escrito de modo a expressar a forma como o coração de Pessanha batia de um modo distinto (atonal, fora do ritmo comum dos corações da sua sociedade) e o aproxima da ideia de Nietzsche de que cada pessoa é uma dissonância incarnada10.
Enquanto primeira editora desta poesia, Ana de Castro Osório lidou com uma pequena amostra do universo de poemas de Camilo Pessanha e com um enigma: o poeta não tinha deixado indicações para a ordenação dos poemas, além da posição fixa dos poemas que receberam o nome “Inscrição” e “Final”. E ainda esperava que outros poemas fossem enviados de Macau, como a primeira parte do díptico “Vénus” (do qual tinha o soneto “Naufrágio”, que começa com “Singra o navio. Sob a água clara”) e “Branco e Vermelho”. No entanto, o poeta não enviou nenhum poema e, tornando-se necessário publicar o que se conhecia, partiu-se para a primeira edição.
Por não ter enviado mais poemas e por não ter descriminado a ordem que deviam tomar na edição, a participação de Camilo Pessanha no processo editorial da sua obra é pouca. O seu desinteresse aparente contribuiu para que João de Castro Osório lhe chamasse “poeta abúlico”. Mais tarde, Barbara Spaggiari chama-lhe “poeta desistente”.
Não obstante a fantasmagoria da participação do poeta na edição dos seus poemas, são-lhe atribuídas umas quantas indicações orais, das quais não registo. As indicações orais surgem para justificar a localização de “Inscrição” e “Final” nas várias edições da Clepsydra. Ao longo das edições que passam a ser organizadas por João de Castro Osório, é recorrente que este se refugie nestas ilusórias indicações orais quando se sentia encurralado pela crítica às suas decisões. Por exemplo, é através de indicações verbais do poeta que se explica a estranha divisão dos poemas entre sonetos e poesias; a respeito desta divisão, diz João de Castro Osório, na “Nota explicativa à segunda edição”: “Desejava também Camilo Pessanha que se agrupassem à parte os sonetos e o que chamava de poesias” (Osório, 1974: 65), refugiando-se, novamente, nas indicações verbais que o poeta terá dado a Ana de Castro Osório em 1916. Porém, e apesar destas indicações verbais serem utilizadas em defesa das decisões editoriais tomadas por Ana e João de Castro Osório, nenhum deles as registou, o que teria sido uma mais-valia para a filologia e para a interpretação deste poeta.
É ainda relevante, para entender a conjuntura envolvente da primeira edição da Clepsydra, fazer notar que os relatos dos acontecimentos dos saraus em casa dos Castro Osório foram manipulados, que correm diferentes histórias do que aconteceu nessa noite e que nenhuma destas histórias tem fundamento em depoimentos do poeta. Em entrevista ao Diário de Lisboa de 21 de Abril de 1921, Ana de Castro Osório afirma:

Camilo Pessanha nunca escreveu um dos seus versos. Compõe-nos nas horas de inspiração, e guarda-os na memória. consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade. tempos, tendo eu ouvido alguém recitar versos seus, deturpando-os e truncando-os sem piedade, pensei que era absolutamente necessário reunir num volume algumas das suas melhores poesias. Então, sem dizer ao poeta os meus planos, pedi-lhe que fosse dizendo algumas belas poesias. E foi assim que nasceu a Clepsidra. (Pires, 1990: 83)

Porém, as fontes para a primeira edição da Clepsydra foram maioritariamente poemas em manuscrito autógrafo de Camilo Pessanha. um poema foi transcrito por João de Castro Osório e os outros foram enviados por Alberto Osório de Castro e Carlos Amaro, amigos do poeta. Mas, nesta entrevista, Ana de Castro Osório diz ter sido ela a copiar os poemas sem que o poeta soubesse que o fazia (que, ao que tudo indica, não foi o que aconteceu). Não dados que o comprovem, não restaram documentos que fundamentem estas cópias a não ser que a estranha caligrafia no manuscrito de “Foi um dia de inúteis agonias” fosse dela e não de João de Castro Osório.
Por outro lado, a partir do momento em que João de Castro Osório começa a editar a Clepsydra, entre 1945 e 1956, passa a dizer que foi ele próprio a transcrever os poemas de Camilo Pessanha, apesar de podermos averiguar tal facto a respeito de um:

Inexplicável e tristemente, ninguém antes, sequer tentara esta obra de recolha e preservação dos seus poemas, não obstante ele os ceder generosamente, se lhos pediam, como autógrafo a guardar, ou para publicação em algum periódico. E no entanto, o acolhimento imediato, agradecido e entusiasta que obteve o meu pedido claramente demonstra quanto algumas simples dedicações de tantos indivíduos que com o poeta, mais ou menos íntima e longamente, conviveram, no decurso de três ou quatro décadas, poderiam ter contribuído para a completa recolha das suas obras, e até para mais vasta realização, em especial no campo, de enorme valor, das traduções poéticas da literatura chinesa. (Osório, 1973: 14)

Caso os poemas tivessem sido transcritos enquanto eram declamados pelo seu poeta, podemos imaginar um quadro de dificuldades de interpretação que se prende com a própria poesia de Camilo Pessanha. É uma poesia com um zumbido característico, assonante, conseguido através de um intrincado jogo fonético-morfológico baseado em homofonias, homografias, cacofonias e poliptotos11  e seriam ainda necessárias uma velocidade e técnica caligráficas fenomenais para acompanhar a declamação de poesia e ainda um conhecimento da língua portuguesa ao nível do de Camilo Pessanha.
Mostra-se o editor também desconhecedor do poeta que edita, pois sabemos hoje que Pessanha fazia chegar por sua mão os seus poemas a uns quantos jornais onde eram editados, com maior incidência, na última década do século XIX. A partir das edições de João de Castro Osório, o trabalho filológico em torno de Camilo Pessanha passa a ser um trabalho “de salvamento”, diz o editor no mesmo texto introdutório. Nesta citação encontramos ainda outra incongruência em relação à versão dos factos de Ana de Castro Osório: que teria sido o adolescente João de Castro Osório a ter a ideia de pedir a Camilo Pessanha os seus poemas para os publicar posteriormente.
Seja como for, com base nos dados que temos hoje, é mais fácil acreditar que foi pedido ao poeta que registasse tantos poemas quanto se lembrasse e enviasse uns quantos mais para futura edição. Pelo menos, é para isso que apontam os autógrafos de 1915, depositados no espólio que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal.
[…]

A Clepsydra Libertada
A poesia de Camilo Pessanha chega aos dias de hoje alterada por deliberações editorais de que foi objecto ao longo do último século. Devido ao facto de este poeta declamar os seus poemas, alguma confusão foi gerada a respeito da melhor forma de fixar a sua poesia e foi o que moveu poetas e amigos a proporem-se a fazer a sua edição: a Clepsydra ficou sujeita a complicações interpretativas que surgiram no seu processo editorial. Estas deliberações editoriais foram fundamentadas em preconceitos acerca da vida e da estética literária deste poeta (que foram insidiosamente propagados durante o processo editorial e de que o poeta não teve culpa) e que também influenciaram o pensamento e a crítica da obra deste poeta. Este trabalho visa também propor caminhos a tomar e cuidados a ter com a fixação do texto e com a edição da poesia de Camilo Pessanha.

Ler mais em: A Clepsydra Libertada, Tiago Clariano.
Tese de mestrado em Teoria da Literatura. FLUL, 2017.


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1 Cesário Verde teve o seu livro editado postumamente e António Nobre fez passar o por várias edições e reescritas; fora do país, temos Walt Whitman, cujas Leaves of Grass foram sendo progressivamente reescritas. O que interessa é que houve um moroso processo de edição e fixação dos textos destes poetas.
2 A 3 de Dezembro de 1912, pede Mário de Sá-Carneiro: “Rogava-lhe encarecidamente que me enviasse para mostrar ao Santa Rita, os violoncelos do Pessanha e o soneto sobre a mãe e mesmo mais algum se para isso estivesse” (Carneiro, 2004: 43) e, a 28 de Julho de 1914, a propósito de Pessanha: “Logo que puder, mas logo, rogo-lhe muito, que me envie os versos a que alude. E pedia-lhe, mais uma vez abusando, que, quando tiver vagar, me envie uma cópia do soneto à mãe e mesmo doutras que eu conheço pois é para mim m grande prazer reler esses admiráveis poemas” (idem: 198).
3 Encontram-se transcritos por Fernando Pessoa os poemas “Nocturno” (o que começa com “Voz débil que passas”) e um excerto do poema “Violoncelo”, mas sabe-se que também tinha em sua posse uma versão do soneto que começa com “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, que Pessanha enviou em carta a Alberto Osório de Castro, antecipando a morte da sua mãe, em 1896, com a descrição “Quer ver medonhos versos meus?” (apesar de a sua mãe morrer quatro anos depois, em 1900) (Pessanha, 2012: 120-121).
4 Como se pode atestar da carta de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues a 4 de Setembro de 1916: “Outra colaboração do [próximo] número: Versos do Camilo Pessanha (a propósito; «não cite isto a ninguém»)” (1986: 122).
5  Tal é o que defende António Osório no seu artigo “O segredo de Camilo Pessanha e Ana de Castro Osório”, publicado na revista Colóquio/Letras N.º 155/156, dedicada ao estudo deste poeta.
6 São editados na revista Centauro os poemas: “Ao longe os barcos de flores”, “Castelo de Óbidos”, “Desce em folhedos tenros a colina”, “Esvelta surge, vem das águas nua”, “Floriram por engano as rosas de inverno”, “Foi um dia de inúteis agonias”, “Imagens que passais pela retina dos meus olhos”, “Naufrágio”, “O meu coração desce”, “Passou o outono já, torna o frio”, “Quando voltei, encontrei os meus passos”, “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, “Se andava no jardim”, “Tatuagens” e “Os Violoncelos”.
7 Sabe-se, pelas cartas de Camilo Pessanha a Alberto Osório de Castro, que teria também em sua posse o poema inédito que começaria com o verso “Voa o comboio, correria doida”.
8 O poema “Foi um dia de inúteis agonias” foi o que Camilo Pessanha declamou para que João de Castro Osório registasse. Num autógrafo pertencente a Carlos Amaro, está a indicação “Disse-me o Camillo Pessanha que era Isto o mais perfeito da sua Obra” (Franchetti, 1995: 174), uma anotação que deixa espreitar a consideração que Pessanha tinha pelo pequeno João de Castro Osório, ditando-lhe “o mais perfeito da sua Obra”. Reencontra-se esta consideração do poeta por João de Castro Osório nas suas últimas cartas do poeta a Ana de Castro Osório, onde pede notícias do desempenho do jovem adulto nas suas mais recentes conferências: “Igualmente me cativou a notícia da conferência feita pelo João, que tão meu amigo é e cujo fino e equilibrado talento eu tanto aprecio” (Pessanha, 2012: 156).
9 Uma grande discussão entre Barbara Spaggiari e Paulo Franchetti é levada a cabo em torno desta dificuldade de interpretação, a que Franchetti descanso no seu artigo “Editar Pessanha (contra a barbárie e a barafunda)” no volume 8 da revista Veredas, 2007, pp. 215-243.
10 Tal é afirmado no início do capítulo 25 de O Nascimento da Tragédia, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 143.
11 O poliptoto é o uso de um mesmo termo em diferentes acepções semânticas. Em “Violoncelo”, a palavra “arcadas” constitui o poliptoto, por referir tanto a passagem do arco pelo violoncelo, como a arcada formada pela arquitectura da ponte por debaixo da qual passam os barcos (e é o movimento formado pelo arco sobre o violoncelo que estabelece esta analogia). Sabemos que têm diferentes sentidos, mas o seu veículo é exactamente o mesmo som.