sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Correm turvas as águas deste rio, Camões

 



Correm turvas as águas deste rio,

que as do Céu e as do monte as enturbaram1;

os campos florecidos se secaram,

intratável2 se fez o vale, e frio.

 

Passou o verão, passou o ardente estio3,

ũas cousas por outras se trocaram;

os fementidos4 Fados já deixaram

do mundo o regimento5, ou desvario6.

 

Tem o tempo sua ordem já sabida;

o mundo, não; mas anda tão confuso,

que parece que dele Deus se esquece.

 

Casos, opiniões, natura7 e uso

fazem que nos pareça desta vida

que não há nela mais que o que parece.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 168.

 

 

Notas:

1 enturbaram – tornaram turvas.

2 intratável – inacessível; intransitável.

3 estio – tempo quente e seco.

4 fementidos – enganosos.

5 regimento – governo.

6 desvario – loucura; inquietação; excesso.

7 natura – natureza humana.

 

Questionário:

 

1. Explique o modo como a passagem do tempo é representada nas duas primeiras estrofes.

 

2. «Tem o tempo sua ordem já sabida; / o mundo, não» (versos 9 e 10).

Explicite a oposição presente nestes versos, tendo em conta a globalidade do poema.

 

3. Selecione a opção de resposta adequada para completar as afirmações abaixo apresentadas.

Neste soneto, além do tema da mudança, também se destaca o tema ………………. Perante a realidade que perceciona, o sujeito poético evidencia um sentimento de ……………….

(A) da reflexão sobre a vida pessoal … indiferença

(B) da reflexão sobre a vida pessoal … descrença

(C) do desconcerto … indiferença

(D) do desconcerto … descrença

 

Chave de correção do questionário de interpretação do soneto:

1. Para que a resposta seja considerada adequada, devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

a referência à sequência das estações do ano através da caracterização de elementos da natureza (em «Correm turvas as águas deste rio, / que as do Céu e as do monte as enturbaram» – vv. 1-2, remetese para o inverno; em «os campos florecidos» – v. 3, aponta-se para a primavera; em «os campos [...] se secaram» – v. 3, indicia-se o verão; em «intratável se fez o vale, e frio» – v. 4, sugere-se o outono);

a referência aos efeitos que a passagem do tempo provoca na natureza/a referência às transformações ocorridas na natureza resultantes da passagem inevitável do tempo (como o turvar das águas do rio ou o secar dos campos florescidos);

a associação entre a passagem do tempo e a ideia de mudança, evidente no recurso aos verbos «passar» e «trocar» (vv. 5-6).

Nota Os tópicos podem ser abordados separadamente ou de forma integrada.

 

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

a previsibilidade/a constância natural da passagem do tempo, evidenciada pelo ritmo cíclico das estações do ano;

a imprevisibilidade da natureza humana/dos comportamentos humanos, provocando tal desconcerto no mundo que «parece que dele Deus se esquece» (v. 11).

 

3. (D)

Neste soneto, além do tema da mudança, também se destaca o tema do desconcerto. Perante a realidade que perceciona, o sujeito poético evidencia um sentimento de descrença.

 

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português, Prova 639, 2.ª Fase, Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade, 2021. Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho. Prova disponível em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-Port639-F2-2021-V1_net.pdf e critérios de classificação em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-Port639-F2-2021-CC-VD_net.pdf

 

 

Textos de apoio:

 

Camões e o real

 

O soneto “Correm turvas as águas deste rio” pode ser lido em perspectiva a “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, inclusive pela ocorrência em ambos de uma palavra-chave, “regimento”. Neste texto, basto-me no acima transcrito, que propõe uma cisão entre “mundo” e “tempo”. O “mundo”, realidade tangível à experiência do sujeito lírico, é “confuso”, enquanto o tempo mantém sua ordem. Há, portanto, um divórcio entre tempo e espaço, duas instâncias em desejada relação que, quando apartadas, criam no poeta uma espécie de precipício subjetivo. A partir do “tudo posso ver” que se encontra no citado “Que poderei do mundo já querer”, entendo real como dado espaciotemporal, mas, em “Correm turvas as águas deste rio”, isso se complica, pois, enquanto o tempo segue seu curso, o mundo é um “desvario” – por isso, o eu, além da natureza, se encontra perto desse estado, e a última palavra do segundo quarteto não deixa de ser um verbo em primeira do singular.

Por essas e outra, “parece” que Deus “se esquece” do mundo, o que me faz repetir algo do começo deste texto: escrevi imo para tentar indicar algo que pode ser tão superficial como qualquer banalidade, mas cuja não evidência precisa da atenção de uns olhos afiados que lhe permitam (seja ele, o imo, profundo ou superficial), ser visto, ou dado a ver. A aparência é do esquecimento de Deus, dada à percepção do poeta no mundo em “desvario”, o que enseja, por sua vez, outra aparência: nesta vida, talvez não haja nada além da própria aparência, sem imo, sem essência, sem profundidade. Maria Helena Ribeiro da Cunha, muito dedicada a pensar as bases filosóficas de que Camões lançou mão, afirma: “Camões percorre o conceito aristotélico do verosímil, que lhe abre a possibilidade de invocar continuamente o estranhamento diante de uma realidade contraditória e não explicada pelo entendimento” (1989, p. 97), o que o leva a formular o próprio desentendimento diante da desconfortável realidade.

Um detalhe desse soneto é magistral e revelador: em dois versos, “que parece que dele Deus se esquece” e “que não há nela mais que o que parece”, há incômoda proximidade de ocorrências do pronome “que”, não obstante a diferenças das respectivas funções sintáticas. A aspereza sonora e visual expressa a gagueira do poeta e do poema, incapazes de dizer maciamente de um desconcerto do mundo que toca Deus. O atrito dos “que” reforça a incompreensão acerca desse Deus que poderia concertar e o real, dando-lhe bom regimento: o problema é o da incognoscibilidade de Deus ou de Sua apatia? Dizendo, ou perguntando, de outro modo: se “parece” que “Deus se esquece” do mundo, e se, na “vida”, a aparência (“pareça”) é a de “que não há nela mais que o que parece”, há uma essência atrás da aparência? Não perco de vista as três ocorrências dessa ideia a partir do décimo primeiro verso, tampouco que Deus não aparece à Máquina do Mundo. Uma pergunta feita ao futuro: será possível investigar Deus em Camões tendo como apetrecho inclusive a ideia de indecidível?

 

“Camões e o real”, Luis Maffei. Faculdade de Letras da UFRJ, Metamorfoses (Revista de Estudos Luso Afro-Brasileiros da Cátedra Jorge de Sena), v. 14, n.º 1, 2017. https://doi.org/10.35520/metamorfoses.2017.v14n1a10504

 

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Tiempo-caos: angustia en Camões

 

Al leer los sonetos líricos de Luís de Camões encontramos que en su mayoría éstos se encuentran construidos sobre una base temática bimembre. Los dos componentes de esta arquitectura son el tiempo en su paso inexorable y el caos resultante. Esta relación dialéctica trae consigo el contínuo mutar de los órdenes, situación que produce en el poeta un sentimento angustioso; éste, a su vez, resultado de la anulación de aquellos valores o normas que ofrecen al hombre seguridad en un momento histórico determinado.

Nuestro propósito es presentar el desarrollo y tratamiento de estos elementos en el soneto "Correm turvas as águas deste rio." (Luís de Camões, Obras completas I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1956, págs. 255-6). A la vez, trataremos de situar esta expresión poética dentro de las corrientes estético filosóficas en que se desenvuelve el poeta.

Desde el primer verso del soneto eje de nuestro análisis, Camões introduce la idea de movimiento que será trabajada en el primer cuarteto. Metafóricamente se proyecta hacia el lector por medio de dos símbolos: el río y la tierra que, al mismo tiempo, están relacionados con la fertilidade y la vida. La imagen referente a las estaciones: "Os campos florescidos se secaram; /Intratável se fez o vale e frio.", señala la perpetuidad temporal de sus elementos dada su naturaleza cíclica y, por contraste, lo efímero del género humano. Junto a este gran tema, fuerza generadora del soneto, Camões sugestivamente desarrolla el segundo componente temático: el caos. Visualmente éste se presenta en la figura del agua: "Correm turvas as aguas deste rio", turbulencia que ha alterado la intrínseca diafanidad de la misma. Podemos notar que el caos aquí está presentado a base de elementos físicos, agua-río, no por ello descartando una posible interpretación filosófica, como veremos más adelante.

El segundo verso establece una concatenación de acciones que expresan movilidad: "que as do céu e as do monte as enturbaram;" y, a la vez, se reitera la idea de trastoque en la esencia. La lluvia cristalina produce el enturbamiento del río; del orden al desorden, del equilibrio al caos. Como señaláramos, un segundo nivel intelectivo permite recrear la imagen del río como símbolo de vida, enmarcando la expresión en un contexto religioso que recuerda las coplas de Jorge Manrique. Esta interpretación nos permite establecer un paralelo que vincula la tradición literária renacentista con la medieval.

Establecido el acercamiento al primer cuarteto, vemos como los dos temas presentados son tratados por Camões a dos niveles, el físico específico y el filosófico-universal.

La intensificación del primer elemento arquitectónico la encontramos en el segundo cuarteto. El tiempo, presente en el primer cuarteto, será objeto de análisis retrospectivo desde la inmediatez. Presenciamos el movimento temporal hacia el pasado: "passou, se trocaram". Camões presenta ahora la idea cambio-caso no ya de manera particular, sino universal: "Uas cousas por outras se trocaram", estableciendo nuevamente la relación entre causa y efecto. Lo caótioco en este cuarteto es presentado en un marco mítico-filosófico; el destino (Fados) es el responsable del desordenado mutar ya que, al abondonar el control del mundo, ha legado en el hombre la dirección del mismo. Por medio de la mitología pagana Camões da la visión renacentista del hombre como hacedor de su destino. Sin embargo, el cambio de una visión teocéntrica a una antropocêntrica parece presentarse negativa al poeta pues el hecho señala la pérdida de la armonía preexistente.

En el primer terceto se intensifica la idea de organicidad y perpetuidad, relacionándola al plano temporal. Nuevamente, el poeta señala que sólo aquello externo al hombre continúa su estado armónico en su eterno devenir: "Tem o tempo sua orden já sabida". El planteamiento es en estos momentos desde una perspectiva social: "O mundo não; mas anda tão confuso". Sin embargo, Camões no parece encontrar una explicación a dicha confusión social y, al encontrarse sin asidero ideológico expresa: "... parece que Deus se esquece", anguistia hecha verbo que en el plano religioso tendría ecos de blasfemia.

Esta desorientación provoca en el poeta una actitud negativa que alcanza su punto álgido en el segungo terceto expresándola en una visión totalizadora a base de la enumeración: "casos, opinões, natura e uso". Después de establecidos los elementos, el poeta, como último intento de encontrar una explicación, los recimina por ser, desde su perspectiva, los causantes del caos del mundo. Al haber agotado las posibilidades de encontrarle sentido al mundo concluye diciendo que la vida es sólo un cúmulo de apariencias: "Fazem que nos pareça desta vida/Que não há nela mais que o que parece." Expresión que encubre la anguistia experimentada ante la inseguridad y el caos que no consigue comprender.

 

Torres-Rosado, S. (1984). Tiempo-caos: angustia en Camões. Mester, 13(1). http://dx.doi.org/10.5070/M3131013704 Retrieved from https://escholarship.org/uc/item/6t52q9z0

 

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A crise metafísico-religiosa

 

Qual é a realidade de Camões? Da oposição entre o contentamento (supostamente) passado e o descontentamento presente, do contraste entre o empiricamente impossível e o empiricamente real, Camões encaminha-se para uma formulação metafísica do problema da crise subjectiva do tempo psicológico e do desconcerto do mundo, numa tentativa de escapar à conformação ou aceitação do absurdo da vida e à sua dupla verdade, numa busca desesperada da Verdade, que o liberte de todas as aporias e o encaminhe numa solução com sentido.

Tal é a tentativa de Camões para resolver (pelo menos explicar) o problema do desconcerto objectivo do mundo – aquele que se refere à distribuição desencontrada de prémios e castigos –, que adopta uma solução mística para poder justificar a presença de acontecimentos ou de casos que contribuem (aparentemente) para a ausência da ordem ou do regimento do mundo visível, ao sabor dos caprichos e das incongruências da Fortuna, e fazem com que os homens se julguem perseguidos pelos efeitos do desconcerto de um mundo tão confuso, que parece que Deus se esquece dele (“Tem o Tempo a sua ordem já sabida, / o mundo não, mas anda tão confuso / que parece que dele Deus se esquece. / Casos, opiniões, Natura e Uso / fazem que nos pareça desta vida / que não há nela mais que o que parece.”25). Mas estas perseguições são na verdade transcendentes à compreensão da mente humana, pois que a razão é impotente para integrar a experiência, solucionar e transcender a aparência do desconcerto do mundo; na verdade este desconcerto não é aparente, está antes justamente determinado pelos desígnios de Deus (desde o pecado original): o que para Deus é justo parece injusto aos homens (“(...) dedicai, se quereis, ao Desconcerto / novas honras e cegos sacrifícios, / que por castigo igual de antigos vícios / quer Deus que andem as cousas por acerto. / Não caiu neste modo de castigo / quem pôs culpa à Fortuna, quem somente / crê que acontecimentos há no mundo. / A grande experiência é grão perigo, / mas o que Deus é justo e evidente / parece injusto aos homens e profundo.”26).

A razão humana só pode restringir-se à experiência fenomenológica, à observação dos factos e dos fenómenos da natureza que envolvem todas as contradições vivenciais, conceptuais, éticas, morais e axiológicas (“Verdade, Amor, Razão, Merecimento, / qualquer alma farão segura e forte. / Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / têm do confuso mundo o regimento. / Efeitos mil revolve o pensamento / e não sabe a que causa se reporte, / mas sabe que o que é mais que vida e morte / que não o alcança humano entendimento.”27). A essência do desconcerto só poderá ser equacionada pelo entendimento humano, através da crença fideísta na acção divina. Porém, acreditar em Deus não significa descobrir uma razão no desconcerto do mundo; significa, sim, aceitar a sua irracionalidade no plano da experiência e confiar numa razão profunda inacessível aos homens. Ter muito visto e experimentado é melhor, mais válido, do que acreditar nas razões vãs dos doutos, pois que há coisas que se crêem e não acontecem e há coisas que acontecem e não se crêem; por isso, dada a incapacidade da razão para compreender este paradoxo entre a teoria racional positiva e a experiência fenomenológica negativa, entre o que se passa, o que realmente acontece, e a sede de verdade, de justiça, melhor ainda é crer em Cristo (“Doctos varões darão razões subidas, / mas são experiências mais provadas / e por isso é melhor ter muito visto. / Cousas há i que passam sem ser cridas, / e cousas cridas há sem ser passadas. / Mas o milhor de tudo é crer em Cristo”.28). Ao evocar Deus como a causa última lógica e racional do mundo, Camões não se deixa de conformar com a ideia do absurdo; simplesmente a racionalidade que não está no mundo está em Deus; até a necessidade de um universo (aparentemente) ilógico está em Deus; a inteligibilidade dos actos de Deus não existe no plano racional da teoria nem na experiência da realidade empírica mas sim na síntese mística e na solução volitiva do plano divino. Assim, só através da superação metafísico-religiosa do desconcerto do mundo e do dissídio vivencial, mental e espiritual é que se pode descobrir o processo da Verdade transcendente e encontrar um sentido ontológico e gnoseológico para a existência humana: se nos reportarmos ao mundo inteligível através da solução derradeira que irrompe da Graça divina, o desconcerto desaparece e o tempo fica iliminado; a saudade e a esperança perdem a esta luz a sua natureza empírica e temporal; a alma deixa de estar sujeita aos efeitos da mudança e inscreve-se num plano metacronológico de plenitude escatológica. É a partir desta solução fideísta (de matriz augustiniana e não neoplatónica ou antineoplatónica) – que não deixa de - ser também, na Lírica camoniana, uma solução estética, pela criação fictícia de um universo utópico de beleza, liberdade e fé, através do canto divino de libertação e ascensão espirituais –, que Camões se encontra para resolver as suas contradições, antinomias e tensões nas redondilhas “Sôbolos Rios” – aliás, já aludido na primeira parte da dissertação. É através do acto volitivo da fé, só possível com a ajuda da Graça, que Camões se separa do mundo sensível e alcança o mundo inteligível (e não pela simples contemplação intelectual, de matriz platónica). Como afirma Aguiar e Silva, “nas últimas quintilhas do poema exprime-se uma visão sombriamente pessimista e uma valoração radicalmente negativa de tudo quanto procede do mundo visível e da carne que encanta(s), / filha de Babel tão feia, ao mesmo tempo que se exalta, num triunfalismo furiosamente penitencial, a destruição de todo o afecto, de todo o deleite, de todo o liame, enfim, que possa prejudicar ou retardar o apelo e a acção da Graça. O clímax deste triunfalismo exicial por ser salvífico, encontra-se nestes versos (...): E beato quem tomar / seus pensamentos recentes / e em nacendo os afogar, / por não virem a parar / em vícios graves e urgentes. / Quem com eles logo der / na pedra do furor santo, / e, batendo, os desfizer / na Pedra, que veio a ser enfim cabeça do Canto. Estes versos significam um sacrificium intellectus (...)”29

As redondilhas “Sôbolos Rios” são por isso uma solução de superação da síntese de fundamentação e dinâmica neoplatónicas (tese recebida por herança cultural e desmentida pelo mundo empírico que o poeta experimentou) e exprimem um momento dramático que se resolve não por obra da inteligência mas por decisão e volição do recurso à Graça Divina. Tal como o faz para se libertar da obsessão do desconcerto do mundo, Camões escolhe (decide) crer em Cristo para poder resolver as suas contradições e encontrar, pela reminiscência e pela estética (poética) da utopia, a ordem do universo num lugar pré-terreno (Paraíso perdido), de onde foi o homem feliz. Contrapondo-se à sequência de paradoxos que atestam o desconcerto do mundo, em termos utópicos, o poeta vai projectar o sonho da verdadeira felicidade, em busca de um sonho apaziguador de regresso às origens. Para isso impõe-se uma recusa desse presente histórico injusto, corrompido e pervertido, babélico, desconcertante e sufocante, e projecta-se a esperança e o sonho de um mundo melhor no futuro – como o retorno da primitiva Idade De Ouro.

 

Daniela Barbosa Conceição, Pregnância da(s) crise(s) na obra de Camões, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

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(25) Cf. Soneto n.º 104,Correm turvas as águas deste rio”, ibidem, p. 108.

(26) Cf. Soneto n.º 165, “Vós outros que buscais repouso certo”, ibidem, p. 199.

(27) Cf. Soneto n.º 166, “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, ibidem, p. 199.

(28) Ibidem, p. 199.

(29) Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Amor e mundividência na lírica camoniana”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, pp. 176, 177.

 


CARREIRO, José. “Correm turvas as águas deste rio, Camões”. Portugal, Folha de Poesia, 10-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/correm-turvas-as-aguas-deste-rio-camoes.html


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Cesário Verde - o homem e o seu tempo


 

Cesário Verde, um génio ignorado

 

José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de fevereiro de 1855, num terceiro andar da Rua dos Fanqueiros, ou seja, em plena Baixa pombalina.[1] O país atravessava um período de relativa estabilidade, mas, se o pano de fundo era otimista, o mesmo se não pode dizer da conjuntura. As chuvas anormais da Primavera haviam provocado uma crise nos cereais, o que, num país sem caminhos-de-ferro, implicava literalmente a fome.

Nesse domingo - dia em que se celebrava São Cesário – as cheias tinham alagado grande parte do país, incluindo a zona à volta de Lisboa, onde o pai possuía terras. As exportações de vinho e de azeite estavam estagnadas. Corriam boatos, absurdos é certo, mas tidos como verdadeiros, de que o governo se preparava para mandar soldados para a guerra da Crimeia. Por causa das pestes - primeiro a da cólera e, depois, a da febre-amarela - que invadiram o país em 1856 e 1857, Cesário passou uma longa temporada na quinta que a família possuía em Linda-a-Pastora.

O pai, José Anastácio Verde (1813-1888), era um lavrador dos arredores de-Lisboa e o único proprietário da firma «J. A. Verde», uma loja de ferragens fundada em 1808. Ao contrário do que se supõe, isto não fazia dele um pequeno-burguês. Pelo contrário: José Anastácio pertencia ao importante grupo dos «negociantes» de Lisboa matriculados no Tribunal do Comércio, o que lhe conferia um status superior. Para além dos artigos de ferro, a sua loja vendia um pouco de tudo: camisolas de algodão, chinelas de trança, botinas de duraque, fazendas e oleados. Mas não era apenas dela que retirava o seu rendimento: este vinha também, talvez até sobretudo, das quintas que explorava nos arredores de Lisboa.

Os Verdes estavam a meio da escala social, mais próximos das camadas superiores do que das inferiores.[2] Basta olhar o local onde estava situado o seu estabelecimento comercial, com quatro grandes portas sobre a rua, ou as casas que habitaram – especialmente a de Linda-a-Pastora - para nos apercebermos de que viviam bem. Em 1878, quando, pretendendo construir um forte no Alto de Caxias, o Estado quis expropriar algumas das terras que a família trazia arrendadas ao Marquês de Pombal, Cesário avaliá-las-ia em 2 contos de réis, uma quantia bastante elevada. Numa carta datada de 29 de maio de 1878, declarava fazerem os ditos terrenos parte «dum prazo do qual eu pago ao Marquês de Pombal 303,5 litros de trigo e 303,5 de cevada com laudémio de vintena». Quanto à soma por ele calculada, dizia-a justa, não só por as terras serem muito férteis, mas por as ter tratado, no anterior mês de outubro, «com adubos caros, que tiveram importantes despesas de transporte», e ainda por estarem guarnecidas de oliveiras, uma boa fonte de receita.[3]

A família Verde era oriunda de Génova. Provavelmente fugidos de uma das convulsões políticas ocorridas naquela cidade-estado, os Verdes tinham emigrado, no século XVIII, para Portugal. Cesário era trineto de Giovanni Maria Verde, o genovês que, em 1731, se casara com Ana Maria de Pré, tendo decidido, pouco depois, vir para Lisboa. Fora um filho destes, de seu nome Manuel Baptista, quem montara a loja, ao Alto de Santa Catarina, que José Anastácio mudaria para um local mais central. Em 1842, este herdaria ainda a quinta de seu tio, João Baptista, morto sem deixar filhos.

Cesário viria a mudar de residência ainda em criança. Foi viver para o prédio que o pai comprara no começo da Rua do Salitre, ao lado do Passeio Público (atual Avenida da Liberdade), um local tido como mais salubre do que a Rua dos Fanqueiros. Aos dez anos fez, com êxito, o exame de instrução primária. Por morar na freguesia do Sagrado Coração de Jesus, foi examinado por uma das mesas organizadas na Academia das Ciências. Não se sabe que tipo de estabelecimento escolar frequentou, mas é possível que tenha aprendido a ler com base no manual de António Feliciano de Castilho, o mais popular à época.[4] Uma vez que o pai insistira em que ele deveria aprender contabilidade, bem como francês e inglês, é possível que tenha frequentado igualmente a Aula de Comércio, à Boavista.

Cesário não se limitou a estudar o que lhe iam ensinando na escola: gostava de ler tudo o que lhe vinha parar às mãos. Em casa (tal como, mais tarde, entre os amigos), ouvira falar de autores – Montesquieu, Quinet, Balzac, Taine, Spencer, Dickens, Byron, Daudet, Baudelaire, Zola, Mérimée – que o deliciaram. Desde cedo o pai notou que o primogénito se interessava pelas artes, um gosto, imaginou, que teria herdado do tio-avô João Baptista (amigo e cunhado do pintor Domingos Sequeira, e ele próprio um pintor), o qual possuía uma boa biblioteca.[5] Não creio que, como Eça ou Batalha Reis, Cesário fosse sócio do Grémio Literário, mas, além de ter ao seu dispor os livros do tio, frequentava as livrarias da Baixa.

O pai nunca pretendeu cortar-lhe as asas. Liberal em política, era tolerante em casa.[6] Apesar de ter planeado que o filho viesse a dirigir a loja, deixava-lhe uma grande margem de liberdade. Aliás, a família era singularmente culta. Cesário já não conhecera o tio-avô, nem, muito menos, Domingos Sequeira, mas vira alguns dos quadros deste, entre os quais o bonito óleo da sua prima-segunda, Maria Benedita Vitória, sentada ao cravo.[7] As conversas com João de Sousa Araújo, o filho de um comerciante de Coimbra que a família imaginava poder vir a casar com Júlia (a irmã mais velha de Cesário), estimularam-no, o que não quer dizer que o mundo estivesse a seus pés. Cesário não frequentara Coimbra, não havendo tido acesso, portanto, às novidades literárias que chegavam de Paris. Mesmo o que acontecia nos círculos intelectuais lisboetas lhe passava, em grande parte, ao lado. Era adolescente quando se realizaram as Conferências do Casino, mas não há qualquer indicação que nos permita pensar que delas tenha ouvido falar. A sua vida social reduzia-se ao círculo familiar.

A adolescência de Cesário foi marcada pelo anticlericalismo, um traço herdado do pai. Aos dezasseis anos, dizia ele ao presumível cunhado: «Eu fujo a sete pés de tudo o que é sério, sisudo, severo etc. etc. porque lhe acho um cheirozinho a incenso, que me faz lembrar as antigas naves dos lúgubres conventos, que repercutiam o eco dos fúnebres passos dos ferais monges.» Os Verdes pertenciam aos sectores das classes médias atraídos pelos ventos revolucionários que vinham da Europa.

Fisicamente, Cesário não parecia português. Era loiro e tinha olhos azuis, facto a que o sangue (francês e genovês) que lhe corria nas veias não seria alheio. Alguns anos depois, um amigo descrevia-o como «um rapaz alto, direito, elegante, simpático, cabelo curto, alourado, olhos azuis, vestindo sempre fato azul, de jaquetão, de corte inglês, sapatos amplos, com todo um ar britânico, que ele parecia querer aparentar».[8] Todas as fontes indicam ter-se preocupado com a indumentária, uma forma de se destacar dos empregados de escritório que, a seu lado, circulavam pela Baixa. Muitos anos depois da sua morte, Macedo Papança contaria ao filho que Cesário misturava o estilo dandy com o boémio, o que se traduzia nas calças aos quadrados, no jaquetão azul-marinho e na lavallière vermelha que costumava usar.[9]

O desgosto provocado pela morte da irmã, que tinha dezanove anos, coincidiu com o fim da adolescência de Cesário.[10] Pouco depois era introduzido, pelo pai, nos mistérios do comércio. A loja do Sr. José Anastácio ocupava o rés-do-chão do prédio de gaveto entre a Rua dos Fanqueiros e a Rua da Alfândega, facto que permitia a Cesário ter uma vista privilegiada sobre o Terreiro do Paço. O escritório, onde fazia a escrita, transformou-se num posto de observação. Mas não se pense que descurava as funções de escriturário. A primeira carta sobre negócios que redigiu, com data de 17 de janeiro de 1872, seguia as regras do ofício. Nem nesta, nem nas centenas que depois escreveu, se nota qualquer sinal de enfado. Tudo indica, pelo contrário, que apreciava aquela vida regrada, a ponto de ter começado a imaginar novos empreendimentos, tais como o aumento de exportação da fruta das quintas para Inglaterra e para a Alemanha, países de onde a firma importava artigos fabris.

Ao contrário de Fernando Pessoa, com quem por vezes é comparado, Cesário não era um assalariado comercial, mas o filho do patrão, e tanto quanto podemos avaliar teve uma infância feliz. Mesmo sendo verdade que a vida nem sempre lhe sorriu, manteve a sua placidez: gostava do emprego, sentia-se bem entre os seus e apreciava as mudanças sazonais de domicílio. Como outros, teve de enfrentar provações – desde mortes na família ao não reconhecimento do seu talento -, mas isso não o conduziu a lamúrias sobre a pátria. A sua melancolia era sossegada, o seu pensamento, claro, e não acreditava em Deus porque nunca o vira. Sabia que a realidade era apenas aquilo que tinha diante dos olhos: nunca albergou sonhos metafísicos. O seu objetivo era tão-só pôr em palavras, as mais adequadas, o que sentia quando se passeava pelas ruas de Lisboa ou pelo campo saloio:

Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

[…]

Apesar de ser o maior poeta da sua geração, quando, a 19 de julho de 1886, morreu, ninguém deu por nada. Na Sociedade Recreio Operário, na Rua dos Remédios (tão perto da casa onde tinha vivido), uma banda abrilhantou o baile proletário; na Nova Rossini, na Rua do Sol ao Rato, a filarmónica dos Alunos de Guilherme Cossul deliciou os pequeno-burgueses; no Jardim da Estrela, no de São Pedro de Alcântara e no Largo de Belém, ouviram-se concertos ao ar livre; o cavaleiro Alfredo Tinoco fez as delícias do público tauromáquico; na Esplanada dos Recreios, viu-se um bruxo fazendo truques de prestidigitação e, no Teatro Chalet, representou-se, mais uma vez, a peça O Duque de Viseu, de Henrique Lopes de Mendonça. Imperturbável, a cidade continuou a sua lida.

Não apenas a cidade, mas os intelectuais. Não fosse Silva Pinto, e os poemas de Cesário apenas existiriam, dispersos, em jornais esquecidos. Do seu rosto, apenas se conhecem duas fotografias, o que finalmente pouco importa, uma vez que temos o admirável esboço de Columbano, no qual ele surge com um ar espantado.[11]

 

Cesário Verde, um génio ignorado, Maria Filomena Mónica. Lisboa, Alêtheia Editores, 2007, pp. 15-23, 149, 150.

 



[1] Alguns autores afirmam ter Cesário nascido na Rua da Padaria, mas não é correto. Ver o artigo de Pedro da Silveira, «As casas de Cesário», Diário de Notícias, 22 de junho de 1986, em que diz ser mais provável ter ele nascido na esquina da Rua dos Fanqueiros com a da Alfândega, uma vez que o batismo foi registado na Igreja Paroquial da Madalena (a que aquela rua pertencia). Aparentemente, o pai instalara a loja nos números 2 a 8 da Rua dos Fanqueiros, tendo decidido ir morar para o prédio que ocupa o atual n.º 9 (ao invés do que sucede com o da loja, o imóvel deve ter sido deitado abaixo).

[2] Entre 1822 e 1842, data da sua morte, João Baptista Verde fora acionista do «Banco de Lisboa», o que evidentemente o colocava acima da pequena burguesia (em 1822, tinha 12, em 1824, 24, e, em 1835, 30 ações; ver Registo Geral dos Accionistas, 1822-1846). Agradeço a Jaime Reis a informação.

[3] A correspondência manteve-se durante meses, com o Estado a oferecer apenas 1 600 000 réis, quantia que Cesário julgou diminuta, não sendo possível saber-se qual o resultado final. Ver Joel Serrão, Cesário Verde: Obra Completa, Lisboa, Horizonte, 2003, pp. 245-46. Além destes terrenos e da quinta de Linda-a-Pastora, a família possuía outras terras perto (no Casal de Liceia e no do Rodízio). Em 1849, o pai de Cesário arrendara ainda terrenos, em Vale de Nogueira, Caneças, pelos quais pagava um foro anual de 1200 réis. Ver Gonçalo Monjardino Nemésio, «Os Verdes, uma família genovesa em Portugal», separata de Genealogia e Heráldica, n.º 9/ 10, 2003.

[4] António Feliciano de Castilho, Método Castilho para o ensino do ler e do escrever, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853 (2.ª ed.).

[5] Como se vê pelo testamento, foi este tio que deixou ao pai de Cesário as terras, em Caxias, que arrendava à família Rio Maior (a qual entroncava na do Marquês de Pombal). Os Verdes eram, portanto, vizinhos de Isabel, condessa de Rio Maior, com quem não conviveriam, dada a diferença entre o respetivo estatuto social. Ver Maria Filomena Mónica (org.), Isabel, Condessa de Rio Maior; Lisboa, Quetzal, 2002. Fardado de Voluntário Real do Comércio, João Baptista Verde seria pintado pelo seu futuro cunhado, Domingos Sequeira, junto à irmã, Maria Benedita Vitória (o quadro encontra-se no Museu Nacional de Arte Antiga).

[6] Há quem, como Rocha Martins, tenha afirmado que o pai de Cesário era miguelista – o que Joel Serrão reproduz –, mas tudo indica o contrário. Ver Joel Serrão, «A infância de Cesário Verde», Diário Popular, 26 de fevereiro de 1959. Como nota João Pinto de Figueiredo, além das suas relações com o tio e com Domingos Sequeira, ambos liberais, as convicções anticlericais do patriarca tornam a tese improvável. Ver a interessante obra de João Pinto de Figueiredo, Cesário Verde, Lisboa, Presença, 1986. Lamenta-se que o autor tenha decidido não incluir notas de rodapé.

[7] De facto, está a tocar numa espineta, um antepassado do cravo. Além deste óleo, existe outro da mesma menina, ao lado do irmão mais novo, no Museu Nacional de Arte Antiga.

[8] Henrique Marques, Memórias de um Editor, citado em Joel Serrão (org.), Obra Completa de Cesário Verde, Lisboa, Portugália, s.d., p. 116.

[9] Alberto de Monsaraz, Cesário Verde e Macedo Papança, separata da Revista Municipal, n.º 66, 1956.

[10] A irmã de Cesário morreria em 1872, pelo que o casamento com João de Sousa Araújo nunca se realizou.

[11] Feito de memória, este desenho aparece, em gravura, na primeira edição do Livro de Cesário Verde.




O dia em que Cesário Verde morreu


No princípio de julho, começara a debandada dos ricos; ficar em Lisboa era o cúmulo da ignomínia social. Centenas de poemas e folhetins pequeno-burgueses denunciam a miséria, atacam os ricos e troçam dos padres: a 19, às cinco horas da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, morreu Cesário Verde. Tinha 31 anos e vira o fim chegar "como um medonho muro".

Em 1886, Portugal era um país predominantemente rural. Fora de Lisboa e do Porto, não havia verdadeiramente cidades. A maior parte da população - 8 em cada 10 portugueses - vivia no campo, trabalhando uma terra pouco fértil mal distribuída. A norte do Mondego predominava a pequena propriedade, cultivada por camponeses e rendeiros pobres; a sul, o latifúndio. Ao contrário do que sucedia nalguns países europeus, a maioria dos senhores residia nas cidades, administrando as suas terras por intermédio de feitores; só um punhado de proprietários rurais se interessava o suficiente pelas suas explorações para aí tentar introduzir as inovações que sabia estarem a ser utilizadas no estrangeiro. Mas, num país que dispunha de uma mão-de-obra barata inesgotável, como Portugal, a mecanização raramente foi um êxito. Apesar de, em 1843, na Granja Real de Mafra, terem sido exibidas várias máquinas agrícolas, quarenta anos mais tarde o seu número era extremamente reduzido. Dos três produtos cultivados em grande escala, o trigo, a vinha e o arroz, só com o primeiro era possível utilizá-las. Assim, a maioria dos trabalhos agrícolas continuou a ser feita por trabalhadores rurais, camponeses ou assalariados, com os métodos que os seus pais e avós usavam há séculos.

Nas cidades, a Civilização penetrou mais facilmente. Depois das tempestades da primeira metade do século, Portugal atravessou um período calmo, durante o qual um grupo de políticos enérgicos se entregou à exaltante tarefa de modernizar o País. Durante alguns anos, a realidade correspondeu às expectativas. A indústria desenvolveu-se: Lisboa especializou-se na estamparia de tecidos e na metalurgia; o Porto, na fiação e tecelagem de algodão. Apesar do esforço do Fontismo no que diz respeito a vias de comunicação, o mercado interno estava longe de se encontrar unificado. Em muitas aldeias, os camponeses continuavam a comer o que produziam e a vestir o que o artesanato local Ihes fornecia, como sempre haviam feito.

No litoral, as fábricas produziam alguns bens de consumo simples, tecidos, pás e enxadas, tabaco, papel e rolhas. Apenas se exportavam conservas de peixe e cortiça.

Entre 1850 e 1880, a indústria crescera vagarosamente, mas crescera: em 1850, o total de cavalos-vapor existentes era de 938; em 1880 subira para 7000. No têxtil, cortiças e tabacos, existiam agora fábricas com mais de 500 operários. Infelizmente, Portugal estava suficientemente perto da Europa para que os progressos destes países ensombrecessem o que aqui se passava. Em 1881, um membro da comissão do Inquérito Industrial que o Governo mandou efetuar escrevia desencantadamente: "Levam-nos um grande avanço as nações industriais, tocaram quase a meta, quando nós principiámos ainda a caminhar", e acrescentava "Esforços e energias de que valem, se os passos que nós damos para diante são sempre fartamente compensados por outros mais largos e mais rápidos que eles dão no mesmo sentido?".

Na agricultura, as coisas não tinham corrido mal. O Minho exportava quantidades razoáveis de vinho e gado para os ricos mercados europeus; o Sul, laranjas, maçãs, figos, azeite e amêndoas. Mas em meados de 1880, Portugal começou a ter rivais temíveis nos mercados europeus. A exportação de gado ressentiu-se imediatamente, sofrendo o Minho uma severa recessão: nos "leilões dos estrangeiros", o concorrente consegue vencer-nos "por uma cotação que nos desvia". O modelo fontista entrava em crise.

Na indústria também havia problemas: o mercado interno estava a ser invadido por produtos estrangeiros que aqui chegavam a preços baixíssimos. Os velhos pólos artesanais estagnavam. Mesmo as fábricas urbanas se sentiam ameaçadas. Serralheiros e tecelões, caldeireiros e marceneiros apelam ao Governo para que faça qualquer coisa por eles, nomeadamente que dificulte a importação dos produtos estrangeiros; mas ainda teriam de aguardar alguns anos, antes que uma resolução fosse tomada. O relativo liberalismo do Fontismo no que diz respeito ao comércio externo colapsava.

Mais grave do que tudo isto era a situação das finanças do Estado. Em 1886, o Governo regenerador tentara alterar os impostos, mas defrontou-se com enormes resistências. A braços com um motim declarado entre Braga e Guimarães, devido a rivalidades locais, decidiu não forçar a reforma tributária. Pediu antes ao rei que adiasse as Cortes. Mas este considerou que, ao fim de 5 anos, o governo de Fontes estava "gasto". Apesar de o ano agrícola ter sido bom, o otimismo da Regeneração desaparecera. Mais ou menos conscientemente, toda a gente se apercebia que o futuro seria negro.

Em fevereiro desse ano, o chefe dos progressistas, José Luciano de Castro, era chamado ao poder. Poucas semanas depois, o rei D. Luís dava-lhe o que havia recusado ao seu antecessor, isto é, a dissolução do Parlamento. No Verão de 1886, vivia-se um daqueles intervalos ditatoriais que atravessaram a vida do constitucionalismo monárquico. (…)

Fontes Pereira de Melo foi muito criticado por ter corrompido tudo e todos. Enquanto as libras foram chegando, tudo correra de feição. Mas os banqueiros estrangeiros tinham-lhe fechado as portas. O cenário mudava.

De facto, assistia-se ao começo de uma grave crise, que atingiria o seu máximo em 1891. O clima de tolerância em que os Portugueses tinham vivido nas últimas décadas iria desaparecer. Ouviam-se já os gritos de "Vida Nova", os apelos autoritários que com a subida de D. Carlos ao trono atroariam os ares. Um dia viria, em que os "povos humilhados" se levantariam, de punhais aguçados, para derrubar uma monarquia odiada.

Em 1886, Lisboa era uma cidade muito diferente do que tinha sido trinta anos antes. A sua população, trezentos mil habitantes, tinha dobrado. Do campo, haviam chegado milhares, os homens primeiro, para trabalhar como estivadores ou pedreiros, a família depois. Em parte devido à pressão dos recém-chegados, em parte porque o alargamento dos limites urbanos era uma forma de obter novas receitas para o Estado, a cidade alastrava. Ao lado de uma indústria incipiente, visível sobretudo para os lados de Xabregas e Alcatra, a cintura saloia espraiava-se por todo o lado, Mafra, Benfica, Lumiar.

Os laços ao campo permaneciam fortes. A infância rural deixava saudades que não desapareciam facilmente. Com os seus espaços apertados e o tempo normalizado, a cidade parecia asfixiante aos novos habitantes. Não surpreende, pois, que, nos quentes dias de Verão, o povo deixasse a capital, com cestos repletos de talhadas de melão, damascos e pão-de-ló, a caminho das hortas. Para os que ficavam, havia os bailes "campestres" sob as parreirinhas dos cafés e das sociedades recreativas, além da música ao ar livre nos coretos pintados de fresco. No dia 18 de julho de 1886, um domingo, não faltavam distrações. No Beco das Olarias, o "baile campestre" era acompanhado por uma banda tocando um "variadíssimo reportório"; na sociedade Recreio Operário, na Rua dos Remédios à Lapa, a banda "abrilhantava" o baile proletário; na Nova Rossini, na Rua do Sol ao Rato, entre o bazar e o lanche, a filarmónica dos "Alunos de Guilherme Cossoul" deliciava os ouvintes pequeno-burgueses. Nos Jardins da Estrela, de S. Pedro de Alcântara e no Largo de Belém, entre as 5 e as 7 da tarde, os domingueiros podiam ouvir belos concertos ao ar livre. De entre as solicitações do dia, a mais popular era certamente a tourada que, nessa tarde, se realizaria no Campo Santana, e na qual tomavam parte os irmãos Roberto e o conhecido cavaleiro Alfredo Tinoco. Os espetáculos noturnos também eram aliciantes. Na Esplanada dos Recreios, poder-se-ia ver um bruxo que fazia truques de prestidigitação ou, no Teatro Chalet, a peça "O Duque de Vizela".

Em 1886, já tinham sido introduzidas em Lisboa algumas das inovações que facilitavam a vida urbana: em 1848, tinham aparecido os primeiros candeeiros a gás e, em 1878, haviam sido instalados, no Chiado, seis candeeiros elétricos. Não se pense, contudo, que esses melhoramentos se propagaram rapidamente. Grande parte das ruas da cidade eram de terra, malcheirosas e escuras. A muitas das suas vielas e escadinhas, a civilização não chegara. A 18 de Julho, um grupo de habitantes de Alfama pedia insistentemente à Câmara de Lisboa que mandasse regar as ruas do bairro, pois o vento estava a levantar enormes ondas de poeira, que invadiam casas e lojas.

Nos bairros antigos, a higiene era deplorável. Com traseiras, pátios e quintais apinhados de galinhas, coelhos e porcos, as casas estavam infestadas de parasitas. Apesar de a recente captação do rio Alviela ter permitido instalar uma rede de distribuição de água ao domicílio, o benefício chegava a poucas casas. Nos mercados, as condições sanitárias eram péssimas, fazendo com que muitos dos géneros consumidos pelas classes populares estivessem estragados. Os fiscais tentavam pôr cobro à situação, mas não chegavam para as encomendas. No mercado central, a 17 de julho, tinham sido inutilizadas, como impróprias para consumo, 81 pescadas, 76 peixes-espadas e 1200 carapaus: era uma gota no oceano.

Com os seus pregões e cheiros, gritos e correrias, a vida nestes bairros era animada. Até certo ponto, o bairro reproduzia a aldeia originária, com as suas redes de lealdades e rivalidades. Muita gente nascia e morria ali, sem ter saído dos seus limites estreitos: era ali que trabalhava, namorava e se zangava. Como em todos os universos fechados, as brigas eram frequentes, assumindo por vezes um carácter violento. A 18 de julho, um casal da Mouraria fora atacado, na cama, por uma vizinha que brandindo um garfo os feriu de tal forma que tiveram de ser conduzidos ao Hospital de S. José. Um pouco acima, António Martins socava barbaramente a sua amante Maria Engrácia; noutro ponto da cidade, o padeiro José Dias da Silva era preso por arremessar à amante, Ana de Jesus, uma bilha que lhe despedaçou a cara. Certas zonas da cidade, depois do sol posto, Alfama, a Mouraria ou o Bairro Alto, eram particularmente perigosas. O policiamento era ineficaz. Só os criminosos mais azarentos, como o Bexiga, acabavam presos. O povo de Lisboa era uma amálgama muito particular. Juntava gente variada, do operário fabril ao descarregador, da criada ao artesão, do pequeno funcionário ao caixeiro. Formavam a massa dos "pequenos", da "ralé", da "canalha", que ganhava o pão com o suor do seu rosto. Se entre o pequeno lojista e o operário havia um mundo de diferenças, estas tendiam a esbater-se quando os poderosos entravam em cena. Era contra os da "alta" que os "pequenos" se definiam.

Cidade portuária, a zona ribeirinha era uma das mais ativas de Lisboa. Pelas docas de Alcântara, Ihe chegava o carvão que consumia nas suas fábricas; pela de Santos, as mercadorias coloniais; pela do Cais do Sodré, os melões e o vinho de Almeirim, o trigo do Alentejo, as melancias de Setúbal, o peixe que abastecia a cidade. Fragateiros, varinas e descarregadores povoavam este cenário luminoso e febril. Todos os dias atracavam grandes transatlânticos, despejando mercadorias. No sábado, o movimento da alfândega fora, como de costume, intenso: para o Maranhão, seguira, no Bragança, um carregamento de feijão; para Hamburgo, no Davis, 171 fardos de cortiça; para Liverpool, no Ter, 147 caixas de maçãs, 630 caixas de cebolas e 17 caixas de tomates; para Bordeaux, no Mokla, 226 caixas de sardinhas. De Newcastle, a bordo do Catarino Richard, chegara um carregamento de carvão.

Os contrastes entre ricos e pobres eram enormes. É verdade que os milionários portugueses eram patéticos quando comparados com os seus parceiros europeus, mas em face da miséria indígena qualquer ser com o mínimo de sensibilidade se chocaria. No centro da cidade, entre portais e vãos de escada, amontoavam-se cegos, estropiados, crianças abandonadas e velhos paralíticos. Para muitos, os pobres faziam parte da ordem do Universo e a injustiça social de que eram vítimas era tão natural como o facto de um sobreiro não ter nascido um pinheiro, como mais tarde escreveria Fernando Pessoa. Os miseráveis eram objectos que Deus colocara no caminho dos ricos para que estes pudessem exercer a caridade, nas festas e nos bazares variados, como o que, na véspera, tivera lugar no passeio da Estrela, durante o qual as senhoras da Lapa leiloaram entre si os despojos oferecidos.

Mas não havia caridade que bastasse para este caudal imenso de costureiras pálidas e tísicas, artesãos desempregados de olhar rebelde, vendedeiras esmagadas pelo peso da carga, velhas abandonadas que falavam sozinhas, coxos, cegos e manetas. Nesse Verão de 1886, os albergues noturnos abarrotavam de gente suja e esfarrapada que, aos milhares, ali ia em busca de uma sopa e de uma enxerga. Os jornais transmitem os gritos dos que viviam aflições: a Assunção da Glória, viúva, moradora na Trav. de S. João de Deus apelava ao público para que lhe desse qualquer coisinha, pois não tinha família que lhe valesse; a Amália Vidal, moradora na Rua da Mouraria, pedia a uma alma caridosa que lhe pagasse o quarto escuro donde estava em risco de ser despejada. Havia outros recursos, mas eram mais arriscados. Nesse dia, o marítimo José Maria fora preso, por ter roubado dois gorazes do mercado da 24 de Julho.

Os trabalhadores ganhavam salários irrisórios e estavam sempre à beira do desemprego. Alimentavam-se, ano após ano, a pão, sopa e batatas, uma ementa insuficiente que ajuda a explicar as altíssimas taxas de mortalidade de Lisboa e do Porto. As doenças que mais mortes causavam eram a tuberculose pulmonar e as pneumonias. Havia quem não aguentasse esperar: Luísa, criada de servir, atirava-se, na tarde de 18 de julho, de um terceiro andar na Rua do Oiro para a rua após ter sido despedida; o cozinheiro Cândido da Silva lançava-se ao Tejo.

As condições de trabalho eram atrozes: a duração do dia de trabalho era longuíssima e a segurança nas oficinas inexistente. Todos os dias se verificavam acidentes: fiandeiras que ficavam sem dedos, pedreiros que caíam de andaimes, vidreiros que arruinavam os pulmões, mineiros que ficavam soterrados. A 18 de Julho, quando trabalhava na construção de uma linha de caminho-de-ferro, Sebastião Pereira, de 30 anos, fora subitamente esmagado por um penedo que se soltara, enquanto Manuel do Ó caia de uma tábua durante um descarregamento no cais. Perante este espetáculo, até os mais acérrimos defensores do liberalismo foram forçados a vergar. A ideia de que o Estado tinha de intervir para proteger os mais fracos foi-se espalhando.

O nível cultural da população era baixíssimo: oito em cada dez portugueses não sabia ler nem escrever, situação que na Europa só encontrava paralelo nos mais remotos cantos do Império Austro-Húngaro. Apesar da retórica, o regime não tinha sido capaz de melhorar a instrução do povo. Apenas em Lisboa e no Porto se tinham verificado alguns progressos, mas mesmo esses eram ridículos. Nas cidades, organizados pelos operários e pelos republicanos, alguns organismos faziam esforços louváveis para educar as massas, mas a tarefa era grande de mais para os seus fracos recursos. Muitas vezes, a atividade destas associações limitava-se a conferências doutrinárias, como a que, nesse domingo, Manuel de Arriaga, proferia na Associação Escolar e Eleitoral de Sacavém.

No meio de todas estas desgraças, os ricos gozavam imperturbavelmente os frutos da terra. Os contratos com o Estado, as grandes companhias monopolistas, os "negócios" tinham gerado os famosos "barões" da Regeneração, os "novos ricos" de quem surdamente toda a gente sentia inveja. Existia também uma camada de burgueses com tradições, ricos e cultos, muitos deles estrangeirados, de entre os quais se destacava o conde de Daupias, dono da fábrica de lanifícios que o seu avô Ratton fundara em 1839, ao Calvário. No seu belo palacete, mesmo ao lado da fábrica, Daupias mantinha um salão permanentemente aberto, em que os seus amigos, alguns pertencentes à melhor nobreza do Reino, se reuniam para ouvir bons concertos e para se deliciar com os jantares que o cozinheiro francês lhes preparava. Acima deles, havia uma velha aristocracia "caquética e caturra", como Eça de Queirós lhe chamava, ciosa dos seus pergaminhos, mas minada nos seus fundamentos pela abolição dos morgadios. Estes aristocratas levavam geralmente uma vida recatada, apenas entrecortada por bailes diplomáticos ou receções no Paço. Viviam em palácios decrépitos, paredes meias com os pobres que, em momentos de magnanimidade, gostavam de proteger.

À volta do rei, uma pequena corte de amigos e dependentes partilhava rotinas e hábitos. No Verão, seguiam para Sintra, Cascais ou Mafra. A família real passara essa semana de julho, em Sintra. Depois de ter ouvido a missa dominical na capela real, durante a qual se tocara a polka que o mestre de música de Caçadores 2 compusera em honra da recém-chegada noiva do príncipe herdeiro, decidira partir para Mafra: estavam todos ansiosos pela caçada planeada para o dia seguinte na Real Tapada, durante a qual a princesa D. Amélia de Orléans se destacaria, ao matar três dos nove veados nesse dia abatidos.

O centro de todo este mundo era o S. Carlos. Era aqui que os ricos faziam os seus casamentos, conspiravam, mostravam as toilettes vindas de Paris. Além deste convívio familiar, havia o recém-fundado clube, O Turf, onde os homens iam jogar e discutir política. Mas nesse domingo de Verão, ambos estavam desertos: o S. Carlos fechara as suas portas por alguns meses e os membros do Turf estavam quase todos fora da capital.

No princípio de julho começara a debandada dos ricos: ficar em Lisboa era o cúmulo da ignomínia social. Os mais invejados eram os que partiam para o estrangeiro. A 18 de Julho, o movimento dos carros de aluguer era intenso nas estações de caminho-de-ferro, levando e trazendo os que chegavam, de "Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!". De umas curtas férias em Vichy, chegara o "abastado capitalista" Policarpo dos Anjosdiretor da Associação Comercial de Lisboa, com a sua esposa e sogra; o primeiro-ministro, José Luciano, viera de Sintra, onde fora descansar, com a mulher e as filhas, durante uns dias; os condes de Casal Ribeiro regressavam da sua quinta em Braga. Outros partiam, felizes: o príncipe D. Afonso embarcava no paquete Araucária, a caminho de Bordéus; a rainha D. Maria Pia preparava-se para ir passar uma temporada às Caldas. O conselheiro Martens Ferrão trocava a sua casa na capital pela sua quinta no Poço do Bispo. O conhecido banqueiro H. Moser partia para Paris. Até os republicanos repousavam dos seus afazeres revolucionários: Teófilo Braga partia para o Minho, enquanto o "dedicado correligionário" Miguel Braga passava uns tempos em Vizela. O interesse por toda esta movimentação estival era tal que nas Novidades existia mesmo uma coluna, "Praias e Caldas", onde se forneciam ao leitor listas nominais de quem chegava e partia.

Os pequeno-burgueses ficavam-se por Linda-a-Pastora, Belas ou Caneças, sítios aprazíveis, de belas quintas muradas e aldeias lavadas, com bons ares, boa luz, bons alimentos. Quem não alugaria a casa que a 18 de Julho o Diário Popular anunciava: "Aluga-se fora de portas, mas próximo de Arroios, sitio saudável, tem água da Companhia, excelente escada, 9 compartimentos, muito limpos e espaçosos, incluindo despensa e quarto para criado, passam-lhe à porta de 1/2 em 1/2 hora carros Riped e outros. Renda até ao fim do ano: 50.000$00"?

Entalados entre os ricos e os pobres, estes pequeno-burgueses dividiam-se nos seus hábitos, comportamentos políticos e cultura. Os mais ambiciosos tentavam imitar o estilo de vida aristocrático, enquanto as camadas inferiores, que não podiam acalentar tais ambições, se consumiam num ressentimento social que aumentava com a crise económica e com a prolongada marginalização. Em 1886, muitos estavam já descrentes de que o regime monárquico lhes desse o que pretendiam: consideração social e participação politica. Alguns começaram a aderir ao movimento republicano que exprimia maravilhosamente o seu ódio aos privilégios sociais.

Os jornais populares espelham a sua visão do mundo. O contraste entre a vida dos ricos e dos pobres é celebrado até à exaustão: de um lado, a família burguesa, envolta em seda e arminhos; do outro, a pobre, tiritando de frio e fome. Centenas de poemas e folhetins pequeno-burgueses denunciam a miséria, atacam os ricos e troçam dos padres: é o grande fresco dos humilhados e ofendidos, a retórica lacrimejante tão apreciada em reuniões populares. Os títulos destes poemas, "Contrastes", "A Miséria", "A Prostituta", "O Desgraçado", são indicativos do conteúdo. Cesário Verde faz parte desta tradição: o que distingue é o génio.

A influência da Igreja na sociedade portuguesa era considerável, o que inevitavelmente fez dela um dos alvos preferidos dos republicanos. Nos campos, os párocos controlavam os grandes rituais da vida, além de servirem de intermediários entre os camponeses e o poder. Em Lisboa, a Igreja defrontava-se com obstáculos crescentes. Para os trabalhadores e para as classes médias, era evidente que a Igreja estava do lado dos ricos. Não existindo, como nos países protestantes, possibilidade de se criarem novas igrejas, a única saída que lhes restava era o livre-pensamento. A capital passou a estar dividida entre uma maioria que aceitava passivamente a doutrina da Igreja e uma minoria ativa que defendia as novas ideias contra tudo e todos.

Nesse domingo de julho, os católicos tinham uma escolha variada: na Igreja de S. José, como em tantas outras, havia primeira comunhão de meninos, seguida de missa, durante a qual pregaria o Rev. Gaspar Borges; pelas 6 h. da tarde um Te Deum com o Rev. Duarte do Rosário. Na Igreja dos Anjos, realizava-se a novena ao Coração de Jesus e, nas Chagas, ensino de doutrina, ladainha e bênção. Alguns resistiam heroicamente a estas influências: em tribunal, o caldeireiro de ferro, Paulo Rodrigues do Amaral, recusara-se, na antevéspera, a prestar juramento sobre os Evangelhos, alegando que era ateu. Por seu lado, a "Associação Antijesuítica" andava muito atarefada com o seu projeto de criação de um colégio de meninas que lhes ministrasse os conhecimentos necessários para as colocar "ao abrigo das tentações e seduções jesuíticas". Para salientar bem que o perigo era real, noutra página, O Século noticiava o rapto da bela sobrinha do prior de Belas, misteriosamente desaparecida de madrugada, depois de ter deixado ao namorado uma nota angustiada: na povoação, claro, toda a gente atribuía a façanha aos Jesuítas.

Quem, a 19 de julho de 1886, abrisse, de manhã, a janela, perceberia que o dia iria estar quente. No Norte trovejara, mas nos arrabaldes da capital, entre as ribeiras e os montes, o clima estava ameno. Nos pomares, cantavam os pintarroxos, nos prados as vacas leiteiras pastavam pachorrentamente e, entre pedregulhos luzidios, as mulheres saloias preparavam-se para lavar as últimas peças de roupa que, no dia seguinte, teriam de entregar nas casas ricas da capital. Famílias aperaltadas partiam para a missa dominical. O silêncio era apenas entrecortado pelas chocas da manada e pelos carros de bois que desciam do outeiro. Foi no meio deste esplendor que, às 5 h da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, "sem querer, aflito e atónito", morreu José Joaquim Cesário Verde. Tinha 31 anos e vira chegar o fim "como um medonho muro". 

Maria Filomena Mónica, Revista Prelo nº 12, 1986


Verde, Cesário, 1855-1886Pinto, Silva, 1848-1911, ed. lit.; Tipografia Elzeviriana,impr.


 

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CARREIRO, José. “Cesário Verde - o homem e o seu tempo”. Portugal, Folha de Poesia, 08-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/biografia-de-cesario-verde.html