LIBERDADE
Viemos com o peso do
passado e da semente
Esperar tantos anos torna
tudo mais urgente
e a sede de uma espera só
se estanca na torrente
e a sede de uma espera só
se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a
falar pela calada
Só se pode querer tudo
quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem
teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem
teve a vida parada
Só há liberdade a sério
quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério
quando houver
Liberdade de mudar e
decidir
quando pertencer ao povo o
que o povo produzir
quando pertencer ao povo o
que o povo produzir
Sérgio Godinho, 1974
A canção Liberdade [...] foi composta logo após a Revolução dos Cravos e
traz uma temática relevante em relação ao período português que sucedeu o
regime ditatorial. Composta e lançada por Sérgio Godinho (um dos entrevistados)
no seu disco Á Queima-Roupa, ainda em 1974, logo após
o seu retomo a Portugal,
foi um enorme sucesso por
realçar os problemas que Portugal estaria enfrentando e por ser um dos
primeiros discos da fase do PREC, o
teor das composições reforça
a preocupação com a política e com o país naquele período significativo que
deveria ser de mudanças.
Esta canção é ainda muito
lembrada atualmente, por discorrer sobre desigualdade social, tema que continua
recorrente em esfera global.
A canção
contém quatro estrofes, sendo as duas últimas apresentadas como 'refrão'.
Contém quatro versos em cada, podendo ser regulares e/ou livres, devido à mudança da
contagem da sílaba métrica nas duas últimas estrofes. Nas duas primeiras
quadras, todos os versos contêm quatorze sílabas métricas, e no refrão, podem variar entre quatro
e quatorze. As rimas são emparelhadas, sendo a primeira estrofe: AAAA, a
segunda BBBB, e, no refrão, segue a ordem: CDDD CEEE. As rimas das duas
primeiras quadras são graves, formadas apenas por paroxítonas, enquanto
as rimas do refrão são todas agudas, por serem oxítonas. Todas as rimas
são externas, por aparecerem ao fim de cada verso e perfeitas ou consoantes,
por apresentarem correspondência total de sons.
A canção
segue um estilo bem diferente dos estilos vistos em Zeca Afonso e Adriano
Correia de Oliveira, sendo esta com um ritmo mais acentuado para o rock e
folk, com o acompanhamento de viola, baixo, guitarra elétrica, bateria,
além de outras duas vozes. A letra serve como aviso tanto à população quanto
aos "militares' que tomaram o poder em abril de 1974, pois mostra um
conjunto de aspirações do povo que vivenciou uma repressão por mais de quarenta
anos e agora, diante da perspetiva da mudança, precisa rapidamente 'resolver'
as pendências acumuladas. Com a presença de antíteses, o cantautor mostra
situações vividas no país naquele período, como veremos estrofe por estrofe:
Viemos com o peso do
passado e da semente
Esperar tantos anos torna
tudo mais urgente
e a sede de uma espera só
se estanca na torrente
e a sede de uma espera só
se estanca na torrente
Já no
primeiro verso, ocorre uma antítese e um tipo de metáfora (catacrese) ao revelar
"o peso do passado e da semente". A antítese é descrita pelo tempo
"passado" e o substantivo "semente", que nesse caso, pode fazer alusão a algo
que ocorrerá no futuro. E o "peso'',
nesse caso, não se refere a um peso comum, volume, mas de uma
"força", "gravidade", provocando uma catacrese ao utilizar
uma palavra no lugar de outra mais adequada: o "peso'', nesse caso, pode
trazer dois sentidos: 1. o "peso" do país, que o próprio Salazar deu
à História portuguesa,
com toda a contribuição
de Portugal em relação às grandes navegações e conquistas do passado, e 2. faz
alusão ao "fardo" que Portugal carregou nos últimos quarenta anos de
opressão. Assim, tanto em um sentido como em outro, esse peso
"aumenta" em relação ao futuro, pois há a expectativa das pessoas de voltarem
à época dos grandes avanços, em
que a nação se mostrava próspera; ou ainda, quanto
a sentir uma necessidade de haver (finalmente) um presente ou futuro favorável às
pessoas, após mais de quarenta anos na opressão.
No
decorrer da canção, percebe-se que a leitura mais apropriada é em relação à segunda
hipótese, especialmente com o
segundo e terceiro versos. O segundo verso também apresenta uma antítese com a
"espera de tantos anos" e "urgente'', referindo ao tempo da
ditadura salazarista. Pela história portuguesa, desde
a queda da monarquia, em 1910, pode-se dizer que Portugal esteve sempre à
espera dessa mudança que parecia vir e não somente em relação ao período em que
Salazar esteve no poder. No terceiro e quarto versos (repetição) vemos outra
figura metonímica utilizada por Sérgio Godinho, ao
afirmar que a "sede de uma espera só se estanca na torrente".
Nesse
caso, a sede pode se referir a
um anseio de um povo, a uma série de expectativas que as pessoas têm em relação
a Portugal, que só será boa caso seja concretizada; e ao mesmo tempo, essa
"sede" também faz parte da necessidade de sobrevivência, pois, sem
"água" uma pessoa não sobrevive, e
no caso da canção, sem as necessidades básicas, também
não. Muitos que emigraram foram a procura de trabalho, liberdade e vida melhor
para a família, caso contrário, não viveriam. Essa sede, essa necessidade de sobrevivência só seria saciada com a melhoria em
todas as áreas, e na canção, a palavra "torrente", vem confirmar essa ideia,
pois, como uma "enxurrada
de água", mostra que
a melhoria não seria suficiente em apenas um ou outro setor, e sim, em muitos
setores, de tão atrasado que o país se encontrava.
Vivemos tantos anos a
falar pela calada
Só se pode querer tudo
quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem
teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem
teve a vida parada
Mais
algumas figuras de oposição são exploradas nessa estrofe, começando pelo paradoxo
logo no primeiro verso,
ao "falar pela calada". O
silêncio do povo reflete a censura, já que, na verdade o povo não esteve em
silêncio, mas sim, foi silenciado. Por meio da censura e do silêncio forçado, as pessoas exprimiam o
que de fato estava ocorrendo, e esse ato, por si só, já era uma forma de "denúncia" ao mundo. O segundo verso mostra novamente a
ansiedade das pessoas de desejarem tantas coisas (tudo), porque nada tiveram,
mostrando outra antítese. Assim, a vida cheia
- que antes não era, por falta de emprego, de voz, de saúde - hoje é uma vida
que se deseja plena, com trabalho, saúde, disposição e uma participação mais
efetiva na luta. A repetição dos dois últimos versos reforça a necessidade de
uma mudança, além da anáfora, que ocorre com a repetição das iniciais "só", em três dos quatro
versos.
Só há liberdade a sério
quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
A anáfora
continua no refrão iniciado com a partícula adverbial "Só". Nele, o poema traz o que
mais se exigia pelos portugueses quando do fim da ditadura: a "Liberdade".
A canção reforça que a liberdade real só existe mediante a existência de todos
os aspetos que não eram possíveis de se ter com o regime salazarista. Como exemplifica
a canção: a paz (alusão à guerra que ainda ocorria), o pão (metonímia para
alimentação, que ainda não era adequada para todos), a habitação (a moradia,
que também não era uma
realidade para todas as pessoas); a
saúde (melhoria no sistema de saúde, melhores
hospitais) e a educação (melhoria e reforma no sistema de ensino)
Só há liberdade a sério
quando houver
Liberdade de mudar e
decidir
quando pertencer ao povo
o que o povo produzir
quando pertencer ao povo
o que o povo produzir
Com a
imposição da censura durante o regime as pessoas não tinham o direito de intervir
e nem de reivindicar mudanças, após
o Golpe Militar, as pessoas esperavam que, com a instauração da democracia, passassem a ter o direito
de participar ativamente das mudanças. O último verso encerra o poema
referindo-se à injustiça da má distribuição de renda.
O
antagonismo presente na canção refere-se a uma gama de expectativas que não foram
concretizadas durante o salazarismo, e
pareciam não se concretizar após a queda do regime. Se a liberdade é tão
desejada pelo povo, significa que durante todo o regime salazarista as pessoas
não se sentiam livres:
se o regime acabou, a ideia, ou a expectativa, era de que a liberdade
fosse, enfim, conquistada também. Mas a
canção adverte que essa autonomia só seria conquistada de verdade, uma vez que
todos os percalços e problemas advindos com o salazarismo fossem igualmente
extintos. Além disso,
a liberdade não seria de
verdade: de que valeria uma liberdade com as expectativas
frustradas? O que seria a liberdade,
se, no fim, as pessoas teriam de
permanecer caladas e sem o poder de decisão? Ou, ainda, se não houvesse
investimentos nas áreas prioritárias, que
realmente seria a solução para as melhores condições de vida? Esse livramento
causaria a verdadeira rutura entre o passado e o presente, mas essa rutura só
seria quebrada quando todos os outros problemas citados na canção fossem
vencidos também.
Essa canção
foi uma forma de as pessoas perceberem que uma mudança não acontece
rapidamente, como todos esperam. Antes, é preciso que se lute para que ocorram de
maneira eficiente e gradativa, especialmente
com ação do povo. A letra dessa canção é ainda hoje recorrente em Portugal, não somente como uma
forma de protesto contra a desigualdade social, mas
também em ocasiões em que se exaltam a conquista da liberdade - ainda que parcial. A
seguir, uma imagem retirada de um muro comemorativo de Abril, que estampa as letras
mais conhecidas da canção de Sérgio Godinho:
Muro Liberdade. Coletivo PCP da
Figueira da Foz. "Paz, pão, habitação, saúde, educação". |
Canto de intervenção em Portugal: "O
povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.
São
Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016
CARREIRO, José. “Liberdade, Sérgio Godinho”. Portugal, Folha de Poesia, 19-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/liberdade-sergio-godinho.html