sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Esplêndida, Cesário Verde


 

ESPLÊNDIDA






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Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico1 Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol2
     Em sedas multicores.

Deita-se com languor3 no azul celeste
Do seu landau4 forrado de cetim;
E os seus negros corcéis5 que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
     Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas6
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
     Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsemou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
     Um amante, em Bengala.

É ducalmente7 esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
     Atrai, como a voragem!

Os lacaios8, vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés9
     De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir10, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões11,
     Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
     Teu pobre trintanário12.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões13 de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
     Formosa aristocrata!

 

Cesário Verde

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de março de 1874

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983

____________

[1] Sensual; luxurioso.

[2] Cor de fogo que às vezes o horizonte toma ao nascer e ao pôr do Sol; arrebique, artifício, adorno.

[3] Langor: estado de lânguido; definhamento; moleza; doçura; desfalecimento.

[4] Antiga carruagem de tração animal, de quatro rodas, com dois bancos frente a frente.

[5] Cavalos velozes.

[6] Incensar: Defumar com incenso; (fig.) adular, enganar.

[7] De duque ou a ele referente.

[8] Criados que acompanhavam o amo nos seus passeios ou viagens.

[9] Espécie de uniformes de lacaios e cocheiros de casa rica.

[10] Passeio (de rua).

[11] Truão: bobo; palhaço; saltimbanco.

[12] Lacaio que se senta ao lado do cocheiro, na almofada da carruagem.

[13] Marca; distintivo; emblema; tira, fita, linha, faixa.

 

 

I - Das hipóteses apresentadas (A, B, C e D), sobre o poema "Esplêndida", assinala a correta.

1 - De que movimento literário está Cesário Verde mais próximo?

A) Do Romantismo.

B) Do Neoclassicismo.

C) Do Parnasianismo.

D) Do Ultrarromantismo.

 

2 - A modernidade na poesia começa com Cesário. Porquê?

A) Porque valoriza os sentimentos.

B) Porque endeusa a Razão.

C) Porque o eu dá lugar aos outros.

D) Porque rejeita a rima.

 

3 - Na obra poética deste autor, qual o binómio que ressalta?

A) Terra/Céu.

B) Sentimento/Razão.

C) Corpo/Alma.

D) Cidade/Campo.

 

4 - No poema transcrito, que atitude manifesta o sujeito lírico em relação ao tu?

A) Reconhecimento.

B) Desprezo.

C) Aceitação.

D) Fascínio.

 

5 - Do ponto de vista psicológico, como poderemos caracterizar o tu?

A) Sedutor.

B) Frágil.

C) Sentimental.

D) Racional.

 

6 - "Ei-la!" A interjeição a itálico o que traduz?

A) Receio.

B) Inquietação.

C) Admiração.

D) Dúvida.

 

7 - Qual o processo de formação presente na palavra Rei-Sol?

A) Conversão (ou derivação imprópria).

B) Composição morfológica (ou composição por radicais).

C) Composição morfossintática (ou composição por palavras).

D) Derivação não-afixal.

 

8 - O que significa a palavra arrebol?

A) Estrela.

B) Pedra preciosa.

C) Diamante.

D) Nascer do sol.

 

9 - A caracterização da velocidade do landau é dada através de que recurso de estilo?

A) Hipérbole.

B) Perífrase.

C) Comparação.

D) Personificação.

 

10 - Na 3.ª estrofe, o movimento da carruagem é traduzido pela expressão verbal vai subindo. A que tipo de conjugação pertence essa expressão verbal?

A) Conjugação passiva.

B) Conjugação ativa.

C) Conjugação simples.

D) Conjugação perifrástica.

 

11 - A mulher retratada torna-se, na 3.ª estrofe, ainda mais distante. Porquê?

A) Porque é ducalmente esplêndida.

B) Porque se distingue no brilhantismo da equipagem.

C) Porque vai de olhos cerrados a cismar.

D) Porque atrai como a voragem.

 

12 - Qual o recurso de estilo presente no 2.º verso da 4.ª estrofe?

A) Hipérbole.

B) Sinestesia.

C) Perífrase.

D) Personificação.

 

13 - Na 5.ª estrofe, o sujeito poético exprime de forma patética os seus sentimentos. Porquê?

A) Porque se enaltece.

B) Porque se arrepende.

C) Porque se desespera.

D) Porque implora.

 

14 - "E eu vou acompanhando-a ..." Indique a função sintática da forma pronominal sublinhada.

A) Sujeito.

B) Complemento indireto.

C) Modificador.

D) Complemento direto.

 

15 - "Para ser, ó princesa sem sorrir,". Que função sintática exerce a expressão sublinhada?

A) Sujeito.

B) Vocativo.

C) Modificador.

D) Complemento direto.

 

16 - Que processo de formação está presente na palavra sorrir? (Ver, p.f., expressão sublinhada na questão anterior).

A) Conversão (ou derivação imprópria).

B) Neologismo.

C) Afixação.

D) Derivação não-afixal.

 

17 - Na penúltima estrofe, o sujeito poético reforça o seu desejo de dependência em relação ao tu através de que recurso de estilo?

A) Metáfora.

B) Apóstrofe.

C) Sinédoque.

D) Anáfora.

 

18 - O que é um trintanário?

A) Namorado.

B) Pretendente.

C) Amo.

D) Lacaio.

 

19 - A referência aos galões de velha prata que poderá querer significar?

A) A superioridade do eu.

B) A sua riqueza.

C) O seu passado ilustre.

D) A sua tentativa de aproximação.

 

20 - Que sentido expressa a exclamação final?

A) Cansaço.

B) Desapontamento.

C) Desespero.

D) Admiração.

 

Chave de correção: 1-C; 2-C; 3-D; 4-D; 5-A; 6-C; 7-C; 8-D; 9-C; 10-D; 11-C; 12-B; 13-C; 14-D; 15-B; 16-A; 17-D; 18-D; 19-D; 20-D.

Questionário com itens de seleção adaptado de: http://www.profareal.pt/testes/doc.asp?tema_id=775 (consultado em 2006-05-10).

***




 

II – Questionário sobre as estrofes 1-2 e 5-9 do poema “Esplêndida”, de Cesário Verde:

1. «Esplêndida» é como que um monólogo dramático, no qual o eu lírico manifesta uma certa atitude perante uma figura feminina.

1.1. Faça o levantamento de expressões que revelam a artificialidade deste tipo citadino de mulher.

1.2. Enuncie as características gerais da figura feminina descrita no poema.

1.3. Analise a imagem que o sujeito poético dá de si próprio, fundamentando com expressões do texto.

1.4. Caracterize a relação que se estabelece entre o sujeito poético e a «esplêndida».

2. Proceda ao levantamento dos recursos estilísticos mais sugestivos do poema.

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 537. Cursos Complementares Noturnos - Liceal e Técnicos. Prova Escrita de Português (Índole Científica). Portugal, 1997, 2.ª fase)

 ***



 

III - Elabore um comentário do poema, integrando o tratamento dos seguintes tópicos:

- tema e seu desenvolvimento;

- imagem da figura feminina;

- imagem do sujeito poético;

- relação entre o sujeito poético e a «esplêndida»;

- linguagem e recursos estéticos que servem a mensagem poética.

 

Explicitação de cenários de resposta:

INTRODUÇÃO:

ENQUADRAMENTO DO POEMA NA OBRA E ÉPOCA A QUE PERTENCE

  • Trata-se de um poema da primeira fase (1873-74) de Cesário verde (1855-1886) caracterizada por um idealismo romântico (com o tema da mulher e do amor) moderado, senão anulado, pela ironia. 
  • Na sua obra encontram-se não só elementos característicos do realismo e parnasianismo, como também do impressionismo.

A ESTRUTURA EXTERNA:

  • 7 quintilhas. 
  • Os 4 primeiros versos de cada estrofe são decassílabos e o último é hexassílabo. 
  • Esquema rimático: ababa – rima cruzada.

 

TRATAMENTO DOS TÓPICOS DE ANÁLISE

O TEMA

  • A humilhação sentimental do sujeito poético tentando aproximar-se da figura feminina.

DESENVOLVIMENTO DO TEMA / ESTRUTURA INTERNA

Há dois momentos no poema:

  • 1.º momento - vv. 1-20: parece haver um desdém no modo como se pinta o «langor» e altivez com que a mulher se reclina no seu «landau», a lentidão solene da carruagem e os lacaios vestidos a rigor. Assim, a temática da humilhação do sujeito (poeta solitário) perante a «formosa aristocrata» determina que, nesta 1ª parte, se procure acentuar os elementos caracterizadores da mulher «esplêndida» que serão factor de opressão. 
  • 2.º momento - vv. 21-35: o sujeito está disposto a renunciar à sua «independência» e ao seu «porvir» para conseguir aproximar-se da «formosa aristocrata». Humilhação do sujeito face ao esplendor daquela deusa distante e altiva. 

A IMAGEM DA FIGURA FEMININA

  • Trata-se da caracterização da mulher fatal da época, citadina, autêntica personagem plana artificial.
  • Expressões que revelam a artificialidade deste tipo citadino de mulher: «os esplendores do lúbrico Versailles do rei-Sol», «retoques sedutores», «ducalmente esplêndida», «refulgir dum arrebol / em sedas multicolores», «altivez magnética e bom tom», «clara como os pés à marechala» (IV)
  • Características gerais da figura feminina: bela, sedutora, esplêndida, atraente, formosa, aristocrática.

A IMAGEM DO SUJEITO POÉTICO

  • Sinistro e mal trajado, solitário (VIII), corcovado, doido, febril, de colarinho amarrotado. Desejo de ser, pobre trintanário, seu criado de mesa – auto-humilhação, sente-se inferiorizado.

A RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO POÉTICO E A «ESPLÊNDIDA»

  • Não há relação social entre ambos; tudo se passa na mente do sujeito que chega ao ponto de querer ser criado de mesa, mas «de costas viradas para ti» – desprezo pela sua aristocracia. O sujeito encara a «esplêndida» de forma violentamente irónica.

A LINGUAGEM E OS RECURSOS ESTÉTICOS QUE SERVEM A MENSAGEM POÉTICA

  • Marcas de narratividade: espaço – rua do Alecrim; personagens…
  • Função expressiva da linguagem: o sujeito traduz a sua admiração pela interjeição «eis», pelas frases do tipo exclamativo, pelas formas verbais de 1.ª pessoa e pela caracterização do Eu com expressivos adjetivos.

1.ª parte:

  • A 1ª estrofe abre com 2 exclamações («Ei-la! Como vai bela!»), que imediatamente nos dão conta da postura extasiada do sujeito. 
  • Hipérbole encomiástica  em que se salientam as referências à luz e cor e, sobretudo, as sugestões de sensualidade («altivez magnética», «lúbrico Versailles», « retoques sedutores», «sedas multicores»).
  • Sinestesia: «sedas multicores».
  • Adjetivação expressiva: «sedutores», «esplêndida». 
  • Comparação: «É como o refulgir dum arrebol», «velozes como a peste» (o poeta vale-se do fenómeno da peste que progride vertiginosamente no meio das pessoas, manifestando assim a velocidade dos corcéis), «atrai como a voragem». 
  • Uso expressivo do advérbio: «ducalmente esplêndida» 
  • Anáfora: vv. 13-14: «Ela» 
  • Sinestesia: «a doce brisa».

2.ª Parte:

  • Valor expressivo do Vocativo («a princesa sem sorrir», «formosa aristocrata») respeitante a uma atitude que implica ainda desmesurado enaltecimento da mulher. 
  • Adjetivação cuidada de conotação negativa: «corcovado», «febril», «amarrotado», «sinistro e mal trajado», «contente e voluntário», «solitário», «pobre» -
  • Comparação: «como um doido».
  • Anáfora: vv. 28-29: «Para ser» .
  • A exclamação da última estrofe serve para criar o clima de sofisticação mundana que atrai o sujeito.

CONCLUSÃO

Atração, humilhação e repulsa que a mulher fatal, aristocrática e citadina provoca no sujeito poético.

 ***



IV – Texto expositivo

Leia atentamente a afirmação seguinte: 

Na história da poesia da cidade os poemas típicos de Cesário Verde são algo inteiramente novo, pelo amor juvenil e constante à realidade concreta, vista com olhos de artista plástico, transposta em séries de instantâneos claros, exatos, flagrantes. Em «Cristalizações», «Num Bairro Moderno», «O Sentimento dum Ocidental» descobrimos a figura integral de Lisboa.

Jacinto do Prado Coelho, Problemática da História Literária. Lisboa, Ed. Ática, 1961

 

Elabore um texto expositivo-argumentativo em que aborde de forma fundamentada as afirmações sobre a poesia de Cesário Verde acima transcritas.

 

Tópicos de correção:

  • Em «Num Bairro Moderno», «Cristalizações» e «O Sentimento dum Ocidental» há o gosto pelo exterior, nomeadamente pela cidade, por Lisboa, em que o Eu poético deambula.

  • Nestes poemas há o aprofundamento da oposição entre a cidade e o campo, sendo este um contraste idealizado daquela.

  • O flagrante realismo incorporando nos poemas:

- realidade concreta: cenas de exterior, quadros e figuras citadinos;

- prosaísmo poético.


  • Há uma obsessão pelas sensações físicas e psíquicas que Lisboa provoca transmitidas através de uma visão plástica – visão do real de modo impressionista e, por vezes, quase surrealista (fuga ao realismo):

- a recriação poética com grande nitidez, numa atitude de captação do real pelos sentidos, com predominância dos dados da visão (a cor, a luz, o recorte, o movimento);

- os processos estilísticos utilizados, como a sinestesia e a harmonia imitativa, que tornam a palavra matéria plástica da transposição poética do real concreto.


  • O poema «Num Bairro Moderno» dramatiza a invasão simbólica da cidade pelo campo, através de uma vendedeira de frutas e legumes. A transfiguração surrealística dos frutos e legumes num «ser humano» vem emprestar ao campo, que representam, uma maior profundidade.

  • O narrador observa incomodado o «conchego e vida fácil» do «bairro moderno», em contrates com a luz e o calor da «larga rua macadamizada» e a azáfama da vendedeira de hortaliça que tenta sobreviver.


  • Linguagem nova de raiz burguesa e popular, rica em termos concretos a sugerir mistura de sensações, impressões físicas e anímicas. Linguagem impressionista e fantasista.

 

  • No poema «Cristalizações» o sujeito é um burguês que se move na cidade e tudo encontra «alegremente exato» até que a tomada de consciência da dureza da vida dos calceteiros e dos trabalhadores de um modo geral o surpreende e fere, a ponto de denunciar a injustiça de que são vítimas. E a sua vida dura, a sua crucifixão diária ao serviço da cidade, merecem a simpatia do sujeito: o campo seria a vítima da exploração da cidade.


  • Poema prosaico pelo uso de termos concretos. O poeta visiona a realidade nua e crua, mas visioná-la é vê-la à sua maneira, é elevá-la ao campo da fantasia, é criar relações mentais entre essas realidades.

 

  • No poema «O Sentimento dum Ocidental» há a revolta perante as desigualdades sociais e um desencanto para com a cidade-prisão. A cidade, neste poema, é um pretexto para se fugir dela. Tudo se apresenta nitidamente nestas imagens: as ruas, a iluminação a gás, os quartéis, as tipoias, os militares, as peixeiras, os padeiros e os dentistas

 



 V - Texto de apoio

[Receção do poema “Esplêndida” pelos coetâneos de Cesário Verde]

Ao publicar o poema “Esplêndida”, em 22 de março de 1874, no Diário de Notícias, de Lisboa, Cesário talvez não tenha (ou tenha?) se dado conta de que o seu estado agônico e experiência trágica naquele momento se iniciavam. A incompreensão de seus pares evidencia-se na crítica de Ramalho Ortigão, que acusa o poeta de imitar Baudelaire naquilo que ele tem de satânico, também na de Teófilo Braga15, ao não compreender a irónica  sensualidade do poema, e por isso o censura com severas reprimendas, quando diz “que um homem para captar as simpatias de uma mulher desça ao lugar dos lacaios: um poeta amante e moderno devia ser trabalhador, forte e digno, e não se devia rebaixar assim” (Apud Helder Macedo, em O Romântico e o Feroz, 1988, p. 16).

A publicação de “Esplêndida”, em verdade, instaura conflito entre o Poeta e seus contemporâneos, talvez porque apresenta o novo que incomoda, rompe e desconstrói. O poema dá a lume uma nova representação da mulher citadina, agora com características de “mulher fatal”, que o sujeito encara de forma veementemente irônica. Trata-se de retrato de mulher “ducalmente esplêndida” que esmaga e fascina o sujeito, e que também carrega consigo toda a artificialidade e violência da vida urbana, podendo conduzi-lo à alienação e à perda da identidade de cidadão. É percetível, nos versos que se seguem, o conflito entre Mulher (“Esplêndida”) e Homem (“poeta solitário”), numa clara demonstração a partir do binómio Opressão-Humilhação:

E eu vou acompanhando-a, corcovado,

No trottoir, como um doido, em convulsões,

Febril, de colarinho amarrotado,

Desejando o lugar dos seus truões,

Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,

A minha independência e o meu porvir,

Para ser, eu poeta solitário,

Para ser, ó princesa sem sorrir,

Teu pobre trintanário

A temática da humilhação do sujeito ou de sua humilhação sentimental (“poeta solitário”) ganha relevo em “Esplêndida”, na medida em que apresenta dois polos que se contradizem, e por isso mesmo provocam, nesse “poeta solitário”, a agonia trágica, i.e., um conflito decorrente da opressão: de um lado, a existência de um clima de sofisticação mundana que atrai o sujeito; de outro, a humilhação que o faz passar como seu “pobre trintanário”. Janet E. Carter (1989, p. 151), ao empreender análise do poema sob a ótica da variação pessoal entre o “Eu” e sua relação diádica com a figura feminina, tece o seguinte comentário: «Em contraste com o esplendor do retrato de “ela”, o retrato do “eu” é um de miséria e abatimento, visível até fisicamente, pois ele vai “corcovado”. Esta posição indica homenagem perante a dama que o excita e perturba de tal maneira que ela fica exaltada, tal “como um doido, em convulsões, / Febril”».

Valci Santos, Tragicidade nas poéticas de Cesário Verde e Cruz e Sousa. Niterói – RJ, UFF, 2013

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15 De acordo com informação de Joel Serrão (1999, p. 201), Cesário teria mostrado estranheza pelo comentário de Teófilo: “Que diabo!, logo o Teófilo e o Ramalho que tanto considerava...” E pede ao seu mais dileto amigo, que também o é de Teófilo, que lhe explique este paradoxo: esperava aplauso dos revolucionários e, afinal, pedradas é que recebe...


Vogue britânica de janeiro de 1927


Poderá também gostar de:

 

 


CARREIRO, José. “Esplêndida, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 25-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/esplendida-cesario-verde.html


 

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Em Petiz I - De tarde, Cesário Verde

Moinho de água, Azenhas de Antas - Esposende Portugal, Conceição Vidal

 

Em Petiz

 

I

 

De tarde

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

 

20

Mais morta do que viva, a minha companheira

Nem força teve em si para soltar um grito;

E eu, nesse tempo, um destro1 e bravo rapazito,

Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

 

Em meio de arvoredo, azenhas2 e ruínas,

Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;

E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,

Desciam mais atrás, malhadas e turinas.3

 

Do seio do lugar – casitas com postigos4

Vem-nos o leite. Mas baptizam-no5 primeiro.

Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,

Cujo pregão6 vos tira ao vosso sono, amigos!

 

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:

Várzeas, povoações, pegos7, silêncios vastos!

E os fartos animais, ao recolher dos pastos,

Roçavam pelo teu «costume de percale».8

 

Já não receias tu essa vaquita preta,

Que eu segurei, prendi por um chavelho9? Juro

Que estavas a tremer, cosida com o muro,

Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

Cesário Verde

________

[1] Ágil; hábil.

[2] Moinho, atafona.

[3] Diz-se de uma raça de gado bovino.

[4] Portas ou janelas pequenas.

[5] Adicionaram-lhe água.

[6] Anúncio público feito em voz alta.

[7] Os sítios mais fundos dos rios.

[8] (expressão francesa) fato de percal (tecido de algodão fino e liso).

[9] Chifre.

 

O texto apresentado pertence a um longo poema intitulado Em Petiz, constituído por três partes, das quais se transcreve integralmente a primeira (De tarde).

 

I - Leia atentamente e responda ao questionário.

1. Resuma o pequeno episódio no poema.

2. Indique os traços que caracterizam o espaço representado.

3. Compare os retratos das personagens que protagonizam o referido episódio.

4. Interprete, no contexto do poema, a invocação aos «amigos» (3.ª estrofe).

5. Analise a relação que se estabelece no texto entre o presente e o passado.

6. Faça um levantamento das sensações que predominam no poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Certa tarde, um «rapazito» e a sua «companheira» passeavam pelo campo. No momento em que o gado recolhia aos estábulos, ao lado deles, uma «vaquita preta» assustou a rapariga. Mas o rapaz agarrou o animal, de modo a que a «companheira» se sentisse segura.

2. O cenário evocado é o espaço aberto do campo, um «vale», com referência a elementos da paisagem vistos de perto - «arvoredo», uma «fonte», «pastos», «azenhas e ruínas» -, alguns dos quais marcam a presença do homem.

Veem-se também, ao longe, «Várzeas, povoações, pegos».

Há, ainda, a referência a uma povoação, «casitas com postigos», onde vivem os camponeses.

Os «silêncios vastos» da paisagem indicam a largueza das vistas e a paz que a inunda, ajudando a descrever o passeio no campo tal como dois citadinos, habituados ao ruído, o sentem.

O muro é um elemento do espaço que tem uma função precisa na história: contra ele se cose a figura assustada da jovem «companheira».

3. A «companheira» é «fina», veste um «costume de percale» e usa «luneta»: é um retrato que compõe um tipo de personagem urbana. A situação em que se encontra provoca nela uma reacção de pessoa «medrosa», traço que é reiterado no poema (e acentuado pelo facto de se encontrar fora do seu meio, num ambiente que não domina): «Mais morta do que viva», «Nem força teve em si para soltar um grito», «estavas a tremer, cosida com o muro, / Ombros em pé».

Em contrapartida, o «eu» que se autorretrata, no episódio recordado, como um «rapazito» «destro» e «bravo» (com alguma ironia, pois, naquele caso, o perigo era mais imaginário do que real), parece conhecer melhor o meio em que se encontra, a real mansidão da «vaquita preta» e dos restantes «fartos animais», revelando uma maior sintonia com o ambiente campestre e uma maior capacidade de adaptação a esse mesmo ambiente Assim, ele age naquela circunstância «Como um homenzarrão» (designação em que se lê, de novo, ironia).

4. Os «amigos» invocados, neste contexto, podem ser os que, na cidade, recebem o leite que é no campo produzido e a partir do campo distribuído. É de madrugada que os leiteiros fazem o transporte do leite, chegando ainda cedo aos locais onde o vão vender, lançando pregões que acordam os citadinos.

A invocação aos «amigos» (que também podem ser uma imagem do público do poeta, ou dos leitores do poema) coloca em contraposição aqueles que produzem e os que consomem.

5. O poema está construído em dois tempos diferentes, o da escrita poética e o da história. O presente é o da escrita, o momento em que o «eu» recorda um episódio situado «nesse tempo», aquele em que ele, ainda «rapazito», protege a «companheira» do seu próprio susto.

São duas as imagens principais que recorda e que sintetizam o episódio: a dela, «cosida com o muro», «a tremer» de susto; e a dele, a segurar «por um chavelho» uma «vaquita preta».

No presente da rememoração, o sujeito poético pergunta à «companheira» se ainda receia uma «vaquita preta» como aquela, o que parece indicar que o tempo em que a história se passou é o da infância, sendo ambos muito novos (o que também é induzido pelo título genérico do poema de que esta é a primeira parte: Em Petiz).

Na estrofe medial, por seu turno, o «eu», ao fazer a invocação aos «amigos», está a ligar esse passado da sua memória com o presente da sua experiência.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1999, 1.ª fase, 1.ª chamada

6. Sensações que predominam no poema:

Há um claro domínio das sensações visuais, ligadas ao visualismo dado pela abundância de nomes concretos e pelas sugestões de cor e de movimento (cf. 2ª e 4ª estrofes, por exemplo):

Cor: brancas (6); malhadas e turinas (8); preta (17).

Movimento: pulavam (6); tetas a abanar (7); desciam (8); um giro pelo vale (13).

Forma: largas ancas; casitas com postigos; ombros em pé.

 ***

 

II - Comentário de texto

O texto transcrito pertence ao único livro publicado após a morte de Cesário Verde. Reúne um conjunto de poemas cujo principal tema é o da oposição cidade / campo.

O poema “De tarde” deixa transparecer a preferência de Cesário Verde pelo campo, espaço de vivências infantis, de vida rural e salutar.

Estas cinco estrofes têm uma regularidade métrica (alexandrinos), estrófica (quadras), rimática (cruzada e emparelhada – ABBA) e de ritmo (binário), o que denota uma preocupação pela perfeição formal, própria do Parnasianismo.

A primeira quadra começa, inesperadamente, por nos dar o estado de espírito de duas personagens – o sujeito poético e a sua companheira – que foram protagonistas de um episódio, já passado, (“Nesse tempo”) e de que só, na última quadra, nos é dito qual a sua causa.

Deste modo, o poeta parece querer pôr em evidência a reação que ambos tiveram perante a situação descrita, começando e acabando o poema com este mesmo assunto.

A reação é precisamente a oposta entre eles. Esta oposição é sublinhada pelas antíteses entre os adjetivos que qualificam as duas personagens: ela “mais morta do que viva”, ele “destro e bravo” e, na última estrofe, entre as formas verbais dos verbos recear e tremer, referidas a ela e dos verbos segurar e prender que denotam a força e valentia dela.

Esta valentia é também dada logo na primeira estrofe e do mesmo modo através da comparação entre dois termos antitéticos (“rapazito” / “homenzarrão”), de que os sufixos (diminutivo –ito e aumentativo –arrão) fazem sobressair o contraste entre o aspeto físico, exterior e o psicológico.

A antítese presente em “mais morta do que viva”, posta em evidência pela inversão verificada neste primeiro verso do poema, sublinha o medo hiperbólico que a companheira do poeta sentiu, o que é confirmado no último verso do poema com o adjetivo “medrosa”.

Este adjetivo, por sua vez, entra em contraste com “fina, de luneta”, o que realça, de igual modo, a oposição entre o aspeto exterior e o seu estado psicológico.

É, sobretudo, nestes contrastes que nos apercebemos da clara dicotomia que o poeta faz entre a cidade e o campo: a cidade produz pessoas apenas preocupadas com a aparência (“costume de percale”; “fina, de luneta”) e que já não se sentem bem em contacto com a natureza.

Na terceira estrofe, além da referência realista ao trabalho duro do leiteiro (verso 11), o vocativo “amigos!” carrega alguma ironia crítica aos citadinos que, além de não darem valor a esse trabalho duro, ainda se sentem incomodados com quem os serve (verso 12).

Além desta marca realista, é de notar o carácter naturalista com que o poeta descreve o campo: os substantivos concretos apenas são adjetivados para descrever com maior precisão e objetividade o que vê (bezerrinhas brancas”; “largas ancas”), conforme vai deambulando, dando “um giro pelo vale”.

Mas a realidade chega ao sujeito poético também através doutros sentidos, a revelar a influência do impressionismo na poesia de Cesário: “pregão”; silêncios vastos”; “roçavam”.

Por fim, é de notar o tom prosaico e até coloquial deste poema mas que nos transmite uma reflexão mais profunda sobre duas realidades opostas (cidade / campo) e que se mantiveram ao longo da vida do poeta. Nesta composição, esta duração no tempo é dada pelo presente do indicativo da última estrofe, que situa o sujeito poético no presente, com a mesma opinião sobre o acontecimento relatado.

A. Soares A., Comentário de Texto Poético, 2017-03-04 <http://comentariodepoesia.blogspot.com/>

 

Poderá também gostar de:

 


CARREIRO, José. “Em Petiz I - De tarde, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 24-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/em-petiz-i-de-tarde-cesario-verde.html


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

E por vezes, David Mourão-Ferreira

“E por vezes” dito por Beatriz Batarda. Produções Fictícias, 2005

 

E por vezes

 

E por vezes as noites duram meses

E por vezes os meses oceanos

E por vezes os braços que apertamos

nunca mais são os mesmos        E por vezes

 

encontramos de nós em poucos meses

o que a noite nos fez em muitos anos

E por vezes fingimos que lembramos

E por vezes lembramos que por vezes

 

ao tomarmos o gosto aos oceanos

só o sarro das noites não dos meses

lá no fundo dos copos encontramos

 

E por vezes sorrimos ou choramos

E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se evolam tantos anos

 

David Mourão-Ferreira, Matura idade [1966-1972]. Lisboa, Arcádia, 1973



 

 

Questionário sobre o poema “E por vezes”, de David Mourão-Ferreira

1. Destaca a anáfora presente no poema.

1.1. Explicita os valores dessa anáfora.

2. Indica a ideia transmitida pelo sujeito poético neste poema.

3. Identifica o tempo verbal que predomina no poema.

3.1. Explicita o valor expressivo desse tempo verbal.

4. Identifica os recursos expressivos presentes nos versos seguintes.

a) "E por vezes sorrimos ou choramos"

b) "ao tomarmos o gosto aos oceanos"

5. Explica o sentido dos dois últimos versos do soneto.

6. Completa o texto lacunar acerca do poema "E por vezes".

choro   devagar,   espírito   experienciada   mudança   tempo

 

Neste poema, o sujeito poético reflete acerca da vivencia humana do ___. Assim, a passagem do tempo é ____ por cada pessoa consoante o seu estado de ____ - ora passa muito ____, ora passa depressa. Provocando em nós a ____ e o esquecimento. A consciência de que o tempo passa provoca em nós sentimentos fortes, que no levam ao ___ e ao riso.

 



Proposta de correção:

1. Repetição da expressão “E por vezes” no início de vários versos sucessivos.

1.1. A repetição da expressão "e por vezes" relaciona-se com a temática do poema: o tempo e a forma como o vivemos.

Por um lado, realça como ele nos surpreende e como parece extinguir-se ou prolongar-se, conforme o nosso estado de espírito; por outro, destaca a sucessão ininterrupta de vivencias que se convertem em memórias.

2. O sujeito poético transmite a ideia de que a perceção do tempo varia conforme o seu estado de espírito e o momento que está a viver.

3. O tempo verbal predominante é o presente do indicativo.

3.1. O presente do indicativo sublinha que essa ideia de que a perceção do tempo depende de cada indivíduo é uma verdade intemporal.

4. a) Antítese

b) Metáfora

5. Os dois últimos versos do soneto encerram-no transmitindo de forma muito clara a ideia que o atravessa.

De facto, o tempo é sentido psicologicamente, isto é, horas, minutos e segundos condensam-se ou diluem-se em função da importância e do significado de cada momento.

6. Neste poema, o sujeito poético reflete acerca da vivencia humana do tempo. Assim, a passagem do tempo é experienciada por cada pessoa consoante o seu estado de espírito - ora passa muito devagar, ora passa depressa. Provocando em nós a mudança e o esquecimento. A consciência de que o tempo passa provoca em nós sentimentos fortes, que no levam ao choro e ao riso.

 

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 62 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "Impressão digital" (António Gedeão), "E por vezes" (David Mourão-Ferreira), 2021-06-25.

Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e553778/portugues-7-e-8-anos - inicia ao minuto 14’29’’

 







 


CARREIRO, José. “E por vezes, David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 23-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/e-por-vezes-david-mourao-ferreira.html