quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Em Petiz I - De tarde, Cesário Verde

Moinho de água, Azenhas de Antas - Esposende Portugal, Conceição Vidal

 

Em Petiz

 

I

 

De tarde

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

 

20

Mais morta do que viva, a minha companheira

Nem força teve em si para soltar um grito;

E eu, nesse tempo, um destro1 e bravo rapazito,

Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

 

Em meio de arvoredo, azenhas2 e ruínas,

Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;

E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,

Desciam mais atrás, malhadas e turinas.3

 

Do seio do lugar – casitas com postigos4

Vem-nos o leite. Mas baptizam-no5 primeiro.

Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,

Cujo pregão6 vos tira ao vosso sono, amigos!

 

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:

Várzeas, povoações, pegos7, silêncios vastos!

E os fartos animais, ao recolher dos pastos,

Roçavam pelo teu «costume de percale».8

 

Já não receias tu essa vaquita preta,

Que eu segurei, prendi por um chavelho9? Juro

Que estavas a tremer, cosida com o muro,

Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

Cesário Verde

________

[1] Ágil; hábil.

[2] Moinho, atafona.

[3] Diz-se de uma raça de gado bovino.

[4] Portas ou janelas pequenas.

[5] Adicionaram-lhe água.

[6] Anúncio público feito em voz alta.

[7] Os sítios mais fundos dos rios.

[8] (expressão francesa) fato de percal (tecido de algodão fino e liso).

[9] Chifre.

 

O texto apresentado pertence a um longo poema intitulado Em Petiz, constituído por três partes, das quais se transcreve integralmente a primeira (De tarde).

 

I - Leia atentamente e responda ao questionário.

1. Resuma o pequeno episódio no poema.

2. Indique os traços que caracterizam o espaço representado.

3. Compare os retratos das personagens que protagonizam o referido episódio.

4. Interprete, no contexto do poema, a invocação aos «amigos» (3.ª estrofe).

5. Analise a relação que se estabelece no texto entre o presente e o passado.

6. Faça um levantamento das sensações que predominam no poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Certa tarde, um «rapazito» e a sua «companheira» passeavam pelo campo. No momento em que o gado recolhia aos estábulos, ao lado deles, uma «vaquita preta» assustou a rapariga. Mas o rapaz agarrou o animal, de modo a que a «companheira» se sentisse segura.

2. O cenário evocado é o espaço aberto do campo, um «vale», com referência a elementos da paisagem vistos de perto - «arvoredo», uma «fonte», «pastos», «azenhas e ruínas» -, alguns dos quais marcam a presença do homem.

Veem-se também, ao longe, «Várzeas, povoações, pegos».

Há, ainda, a referência a uma povoação, «casitas com postigos», onde vivem os camponeses.

Os «silêncios vastos» da paisagem indicam a largueza das vistas e a paz que a inunda, ajudando a descrever o passeio no campo tal como dois citadinos, habituados ao ruído, o sentem.

O muro é um elemento do espaço que tem uma função precisa na história: contra ele se cose a figura assustada da jovem «companheira».

3. A «companheira» é «fina», veste um «costume de percale» e usa «luneta»: é um retrato que compõe um tipo de personagem urbana. A situação em que se encontra provoca nela uma reacção de pessoa «medrosa», traço que é reiterado no poema (e acentuado pelo facto de se encontrar fora do seu meio, num ambiente que não domina): «Mais morta do que viva», «Nem força teve em si para soltar um grito», «estavas a tremer, cosida com o muro, / Ombros em pé».

Em contrapartida, o «eu» que se autorretrata, no episódio recordado, como um «rapazito» «destro» e «bravo» (com alguma ironia, pois, naquele caso, o perigo era mais imaginário do que real), parece conhecer melhor o meio em que se encontra, a real mansidão da «vaquita preta» e dos restantes «fartos animais», revelando uma maior sintonia com o ambiente campestre e uma maior capacidade de adaptação a esse mesmo ambiente Assim, ele age naquela circunstância «Como um homenzarrão» (designação em que se lê, de novo, ironia).

4. Os «amigos» invocados, neste contexto, podem ser os que, na cidade, recebem o leite que é no campo produzido e a partir do campo distribuído. É de madrugada que os leiteiros fazem o transporte do leite, chegando ainda cedo aos locais onde o vão vender, lançando pregões que acordam os citadinos.

A invocação aos «amigos» (que também podem ser uma imagem do público do poeta, ou dos leitores do poema) coloca em contraposição aqueles que produzem e os que consomem.

5. O poema está construído em dois tempos diferentes, o da escrita poética e o da história. O presente é o da escrita, o momento em que o «eu» recorda um episódio situado «nesse tempo», aquele em que ele, ainda «rapazito», protege a «companheira» do seu próprio susto.

São duas as imagens principais que recorda e que sintetizam o episódio: a dela, «cosida com o muro», «a tremer» de susto; e a dele, a segurar «por um chavelho» uma «vaquita preta».

No presente da rememoração, o sujeito poético pergunta à «companheira» se ainda receia uma «vaquita preta» como aquela, o que parece indicar que o tempo em que a história se passou é o da infância, sendo ambos muito novos (o que também é induzido pelo título genérico do poema de que esta é a primeira parte: Em Petiz).

Na estrofe medial, por seu turno, o «eu», ao fazer a invocação aos «amigos», está a ligar esse passado da sua memória com o presente da sua experiência.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1999, 1.ª fase, 1.ª chamada

6. Sensações que predominam no poema:

Há um claro domínio das sensações visuais, ligadas ao visualismo dado pela abundância de nomes concretos e pelas sugestões de cor e de movimento (cf. 2ª e 4ª estrofes, por exemplo):

Cor: brancas (6); malhadas e turinas (8); preta (17).

Movimento: pulavam (6); tetas a abanar (7); desciam (8); um giro pelo vale (13).

Forma: largas ancas; casitas com postigos; ombros em pé.

 ***

 

II - Comentário de texto

O texto transcrito pertence ao único livro publicado após a morte de Cesário Verde. Reúne um conjunto de poemas cujo principal tema é o da oposição cidade / campo.

O poema “De tarde” deixa transparecer a preferência de Cesário Verde pelo campo, espaço de vivências infantis, de vida rural e salutar.

Estas cinco estrofes têm uma regularidade métrica (alexandrinos), estrófica (quadras), rimática (cruzada e emparelhada – ABBA) e de ritmo (binário), o que denota uma preocupação pela perfeição formal, própria do Parnasianismo.

A primeira quadra começa, inesperadamente, por nos dar o estado de espírito de duas personagens – o sujeito poético e a sua companheira – que foram protagonistas de um episódio, já passado, (“Nesse tempo”) e de que só, na última quadra, nos é dito qual a sua causa.

Deste modo, o poeta parece querer pôr em evidência a reação que ambos tiveram perante a situação descrita, começando e acabando o poema com este mesmo assunto.

A reação é precisamente a oposta entre eles. Esta oposição é sublinhada pelas antíteses entre os adjetivos que qualificam as duas personagens: ela “mais morta do que viva”, ele “destro e bravo” e, na última estrofe, entre as formas verbais dos verbos recear e tremer, referidas a ela e dos verbos segurar e prender que denotam a força e valentia dela.

Esta valentia é também dada logo na primeira estrofe e do mesmo modo através da comparação entre dois termos antitéticos (“rapazito” / “homenzarrão”), de que os sufixos (diminutivo –ito e aumentativo –arrão) fazem sobressair o contraste entre o aspeto físico, exterior e o psicológico.

A antítese presente em “mais morta do que viva”, posta em evidência pela inversão verificada neste primeiro verso do poema, sublinha o medo hiperbólico que a companheira do poeta sentiu, o que é confirmado no último verso do poema com o adjetivo “medrosa”.

Este adjetivo, por sua vez, entra em contraste com “fina, de luneta”, o que realça, de igual modo, a oposição entre o aspeto exterior e o seu estado psicológico.

É, sobretudo, nestes contrastes que nos apercebemos da clara dicotomia que o poeta faz entre a cidade e o campo: a cidade produz pessoas apenas preocupadas com a aparência (“costume de percale”; “fina, de luneta”) e que já não se sentem bem em contacto com a natureza.

Na terceira estrofe, além da referência realista ao trabalho duro do leiteiro (verso 11), o vocativo “amigos!” carrega alguma ironia crítica aos citadinos que, além de não darem valor a esse trabalho duro, ainda se sentem incomodados com quem os serve (verso 12).

Além desta marca realista, é de notar o carácter naturalista com que o poeta descreve o campo: os substantivos concretos apenas são adjetivados para descrever com maior precisão e objetividade o que vê (bezerrinhas brancas”; “largas ancas”), conforme vai deambulando, dando “um giro pelo vale”.

Mas a realidade chega ao sujeito poético também através doutros sentidos, a revelar a influência do impressionismo na poesia de Cesário: “pregão”; silêncios vastos”; “roçavam”.

Por fim, é de notar o tom prosaico e até coloquial deste poema mas que nos transmite uma reflexão mais profunda sobre duas realidades opostas (cidade / campo) e que se mantiveram ao longo da vida do poeta. Nesta composição, esta duração no tempo é dada pelo presente do indicativo da última estrofe, que situa o sujeito poético no presente, com a mesma opinião sobre o acontecimento relatado.

A. Soares A., Comentário de Texto Poético, 2017-03-04 <http://comentariodepoesia.blogspot.com/>

 

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CARREIRO, José. “Em Petiz I - De tarde, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 24-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/em-petiz-i-de-tarde-cesario-verde.html


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