Almanaque, abril 1960, p. 69 |
«E NO SEU
NOME ESPERARÃO AS GENTES»
(S.
Mateus, XII-21)
No ar azul da madrugada
Virias logo, se eu chamasse?
Encostarias Tua Face
À minha face enregelada?
Apagaria a Tua Mão
As cicatrizes que deixaram
Esses fantasmas que habitaram
A minha fruste solidão?
Quando notasses ao entrar,
Que tanto sofro por um nada,
No ar azul da madrugada
Sarar-me-ia o Teu Olhar?
Se eu Te contasse o meu desgosto
De quando a Infância me vem ver,
Ter de expulsá-la, pra viver,
Afagarias o meu rosto?
Vendo-me a alma condenada
A esta alheia expiação,
Virias dar-me o Teu perdão
No ar. azul da madrugada?
As minhas pobres confidências,
Olhos nos olhos, ouvirias?
Com Teu sorriso acalmarias
Minhas febris impaciências?
E se, com esta voz insone,
Jurasse que não creio em nada,
No ar azul da madrugada
Escreverias o Teu Nome?
CARLOS
QUEIRÓS
“6 poemas
religiosos: E no seu nome esperarão as gentes, por Carlos Queirós. Pudor, por
Miguel Torga. Ressurreição, por Francisco Bugalho”, in Almanaque, abril
1960. Diretor: J.A. de Figueiredo Magalhães. Orientador gráfico: Sebastião
Rodrigues. Disponível em: https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Almanaque/1960/Abr/Abr_item1/P69.html
Texto de apoio
Carlos
Queirós foi um poeta português do segundo modernismo, que se identificou com a
revista Presença e que teve uma relação de amizade e admiração com Fernando
Pessoa. Ele publicou dois livros em vida: Desaparecido (1935) e Breve
Tratado de Não Versificação (1941). Morreu em Paris em 1949, aos 42
anos¹²³.
O poema aqui
reproduzido faz parte do livro Desaparecido, que foi elogiado por Pessoa
na Revista de Portugal. O título do livro sugere uma sensação de
ausência, de perda, de vazio, que se reflete na temática dos poemas. O poema «E
NO SEU NOME ESPERARÃO AS GENTES» é um exemplo disso. Ele é inspirado num
versículo do Evangelho de São Mateus, que diz: «E no seu nome esperarão as
gentes» (Mateus 12:21). Esse versículo refere-se a Jesus Cristo, como o Messias
esperado pelos povos.
O sujeito
poético usa esse versículo como mote para expressar o seu anseio por uma
presença divina que o console, que o cure, que o perdoe, que o escute, que o
acalme e que escreva o seu nome no ar azul da madrugada. A madrugada é um
símbolo de esperança, de renovação, de luz. A
imagem do ar azul da madrugada que o poema evoca sugere um momento de silêncio
e paz, uma calma que permite que a voz do poeta se eleve para encontrar Deus. O
eu lírico suplica por uma conexão, um toque que possa sarar as cicatrizes
deixadas pelas experiências que o trouxeram até esse momento.
O poema é
escrito em forma de perguntas retóricas, dirigidas a Jesus Cristo, mas sem
esperar uma resposta. O sujeito poético questiona se ele viria logo se ele
chamasse, se ele apagaria as cicatrizes que deixaram os fantasmas da sua
solidão, se ele sararia o seu olhar quando notasse o seu sofrimento por um
nada, se ele afagaria o seu rosto quando ele contasse o seu desgosto de
expulsar a infância para viver, se ele lhe daria o perdão por ter a alma
condenada a uma expiação alheia e se ele escreveria o seu nome no ar azul da
madrugada.
Essas
perguntas revelam a angústia existencial do sujeito poético, a sua carência
afetiva, a sua nostalgia da infância, a sua culpa por não crer em nada e a sua
busca por um sentido para a vida.
Em suma,
este é um poema que expressa a angústia existencial de um poeta modernista que
se sente desaparecido no mundo e que busca uma presença divina que lhe dê
conforto e esperança. É um poema que combina simplicidade e profundidade,
emoção e razão, fé e dúvida.
Adaptado da conversação com o Bing, 31/03/2023
(1) Carlos Queirós Ribeiro – Wikipédia, a enciclopédia livre.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Queir%C3%B3s_Ribeiro Acedido 31/03/2023.
(2) Carlos Queirós (PT 1907-04-05) Poemas selecionados -
Escritas.org. https://www.escritas.org/pt/carlos-queiros Acedido 31/03/2023.
(3) DIA CARLOS QUEIROZ – Centro Nacional de Cultura.
https://www.cnc.pt/dia-carlos-queiroz/ Acedido 31/03/2023.
***
Intertextualidade: crónica de António
Lobo Antunes
Ilustração de Susa Monteiro |
E no Seu
Nome esperarão as gentes
Quando me
sinto desinfeliz vem-me sempre à cabeça o poema de Carlos Queiroz chamado
“E no Seu
Nome esperarão as gentes”, que é uma citação de São Mateus. Isto dura desde os treze ou catorze
anos, quando li o livro de poemas Desaparecido que descobri na biblioteca
do meu pai. E no meio da desinfelicidade
aparece-me logo a primeira quadra
No ar azul da madrugada
virias logo se eu chamasse?
Encostarias Tua face
à minha face enregelada?
Porque é
que isto sempre me
comoveu e
ajudou tanto? Porque
volto a
ser logo o menino que fui e que o poema torna mais forte no meio da grande
solidão que todos temos às vezes:
Se Te contasse o meu desgosto
de quando a angústia me vem ver
ter de expulsá-la pra viver
afagarias o meu rosto?
Esta é
uma pergunta minha também. O meu desejo. E aqui, sentado a esta mesa cheia de
papéis, escrevo isto comovidamente. Estes versos acompanham-me sempre no ar
azul da madrugada, quando tudo me parece irremediável, sem qualquer solução. O
que farei de mim, o que farei comigo? E depois, felizmente, voltam a paz e a
esperança. Porque carga de água tudo me toca, uma voz, um olhar, um sorriso às
vezes, uma senhora de idade a afastar-se de mim a remar com a bengala porque o
passeio se transformou numa espécie de mar? Quando eu era pequeno tinha a Gija,
uma camponesa galega que me deu tanto amor. Ajudava-me a despir, vestia-me o
pijama, ficava ao pé de mim até eu adormecer. Desapareceu da minha vida de
repente, não sei porquê, e durante anos e anos não a vi. Quatro meses antes de
embarcar para a guerra casei-me, havia pessoas no adro da igreja a olharem, eu
não via a Gija
(chamava-se
Alice, eu não sabia dizer Alice)
não via a
Gija desde os cinco anos, portanto há cerca de vinte e de súbito ela estava
ali, no meio das tais pessoas a olharem, gorda, de cabelos brancos e
(como se
explica isto?)
soube
logo que aquela pessoa era ela. Larguei a noiva, corri para aquela senhora e
abracei-a de uma maneira como nunca abracei ninguém. Tinha o mesmo cheiro,
a mesma forma de me tocar
(posso
estar a ser injusto mas acho que nunca
ninguém me
tocou como ela)
os mesmos
olhos transbordantes de ternura. E ali ficámos, agarrados, comigo de novo tão
pequeno, tão feliz. Gija. Gija Gija Gija. Os convidados do casamento
espantados, as pessoas que olhavam espantadas e eu, muito maior do que ela, de
repente pequeno, ao seu colo. Ao seu colo. Tinha um senhor ao lado, que era o
marido que eu não conhecia, mas eu queria lá saber do marido. Éramos um do
outro, Gija, e voltei a ser o menino de alguém. Voltei, com tanta força, a ser
o menino de alguém. A ternura dela era a mesma, o amor por mim era o mesmo, só
que estava cheia de lágrimas. Lembro-me tão bem de dizer-lhe
– Gija
nunca deixei de ser o teu menino
e depois
voltei para o casamento, para Tomar onde tinha sido colocado antes de ir para
Angola, para longe de ti, eu que nunca devia ter saído do teu colo, tu que me
amaste sempre incondicionalmente, com tanta pureza, tanta simplicidade, tanta,
meu Deus, alegria. E eu que continuo a amar-te de uma paixão tão linda, eu que
sempre, ao acontecer-me um desses problemas gravíssimos da infância, uma queda,
a perda de um brinquedo, dizia logo
– Quero a
Gija
e tudo se
compunha outra vez.
Foi a última ocasião que te
vi, embora continue sempre a ver-te
E se com
esta voz de insone
dissesse
que não creio em nada
no ar
azul da madrugada
escreverias
o Teu nome?
embora
continue sempre a ver-te, Gija. Não vais acreditar na quantidade de vezes em
que penso em ti. Onde quer que estejas, que estupidez dizer isto, estás no Céu
de certeza, o teu menino pensa em ti. Há uns anos fui a Compostela receber um
prémio, ou seja à tua terra na Galiza. E no discurso de agradecimento, com o
Presidente do governo lá deles
(isto
passava-se na Catedral e era solene) dediquei-te o prémio e disse o teu nome.
Tenho a certeza que estavas lá, com o meu pijama de menino na mão
– Temos
que vestir o pijama, Toino
e que te
sentia tão orgulhosa de mim. Quando um
dia morrer vais vestir-mo outra vez, porque não posso aparecer nu diante do Senhor, ordenas
a Deus
– Tome
bem conta do meu menino, ouviu?
e esperas
que Ele te garanta
– Claro
que tomo, Gija
antes de
te afastares e que, de vez em quando, virás espiar-me no medo que eu tenha
desarrumado o cobertor e espirre, ordenando a São Pedro que ponha o olho em
mim, porque o meu menino, você é Santo e percebe, não veio aqui para se
constipar.
António Lobo Antunes, «E
no Seu Nome esperarão as gentes», Visão, n.º 1331, de 6/9 a 12/9/2018,
p. 7. Crónica disponível em: https://visao.sapo.pt/opiniao/ponto-de-vista/2018-09-13-e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes/
Questionário sobre o excerto
da crónica de António Lobo Antunes (desde “Quando me sinto desinfeliz (…)” até “(…)
e tudo se compunha outra vez.”).
1. Em
momentos de infelicidade, o autor lembra-se dos versos de um poema de Carlos
Queiroz, pois
(A) produzem nele,
simbolicamente, o mesmo efeito que Gija na sua infância.
(B) correspondem às perguntas que
costumava colocar a Gija.
(C) proporcionam o mesmo conforto
que a leitura dos textos sagrados.
(D) despertam nele emoções que
transpõe, inevitavelmente, para a escrita.
2. No
contexto desta memória de Lobo Antunes, entre outros aspetos, a evocação de
Gija associa-se cumulativamente às ideias
(A) de honestidade e de
subserviência.
(B) de proteção e de perdão.
(C) de amor e de compaixão.
(D) de segurança e de harmonia.
3. O
advérbio «lá», utilizado na linha 35, apresenta uma ideia de
(A) desaprovação.
(B) indecisão.
(C) negação.
(D) indignação.
4. A partir
da linha 41, o autor usa a segunda pessoa, quando se refere a Gija, para
(A) reproduzir, no seu discurso,
as palavras que lhe dirigiu no dia do casamento.
(B) renovar os laços de união que
foram perdidos após ter sido colocado em Angola.
(C) exprimir a convivência que
com ela manteve de forma regular ao longo da vida.
(D) expressar a profunda comunhão
com alguém que continua vivo na sua memória.
5. Nas
orações «que nunca ninguém me tocou como ela» (linha 31) e «que eu não
conhecia» (linha 35), as palavras sublinhadas são
(A) um pronome, no primeiro caso,
e uma conjunção, no segundo caso.
(B) uma conjunção, no primeiro caso,
e um pronome, no segundo caso.
(C) pronomes em ambos os casos.
(D) conjunções em ambos os casos.
6. Identifique
as funções sintáticas desempenhadas pelas expressões:
a) «de papéis» (linha 16);
b) «que aquela pessoa era ela»
(linha 29).
7. Indique o
valor aspetual veiculado por cada uma das expressões seguintes:
a) «Quando eu era pequeno tinha a
Gija» (linhas 20 e 21);
b) «Desapareceu da minha vida de
repente» (linhas 22 e 23).
Chave de correção:
1-A; 2-D; 3-C; 4-D; 5-B. 6. a) Complemento do adjetivo; b) Complemento direto. 7. a) (valor aspetual) imperfetivo; b) (valor aspetual) perfetivo.
Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º
Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). República
Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2019, 2.ª Fase (versão 1)
CARREIRO, José. “E no seu nome esperarão as gentes (S. Mateus/Carlos Queirós)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 04-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes-s.html