Sobre literatura, compromisso e
transformação social
José Saramago
Repito
estas palavras lentamente – literatura, compromisso, transformação
social –,
pronuncio-lhes as sílabas como se, em cada uma delas, se escondesse ainda um significado
secreto à espera de ser revelado ou simplesmente reconhecido, procuro reencaminhá-las
para a integralidade de um sentido primeiro, restauradas do desgaste do uso, purificadas
das vulgaridades da rotina – e encontro-me, sem surpresa, perante
duas vias de reflexão, quem sabe se as únicas possíveis, percorridas mil vezes
já, é certo, mas a que é nosso inelutável destino regressar sempre, quando a
crise contínua em que vivem os seres humanos – seres em
crise, por excelência, e humanos talvez por isso mesmo – deixou
de ser crónica, habitual, para tornar-se aguda e, ao cabo de um tempo, culturalmente
insustentável. Como parece ser a situação deste homem que hoje somos e deste
tempo em que vivemos.
À
primeira via de reflexão, que desde já, e pedindo perdão a quem o contrário pense,
me atreveria a qualificar de ingénua, seria a de uma tendência muito corrente
que consiste em incluir a literatura entre os agentes de transformação social,
entendendo-se tal denominação, neste caso, não tanto como referida às
consequências sociais decorrentes dos factores estéticos, mas sim a supostas
determinantes influências, na ordem ética e na ordem axiológica,
independentemente do carácter positivo ou negativo das suas manifestações. De
acordo com tal maneira de pensar, e extrapolando, em benefício do raciocínio,
conteúdos e formas historicamente diferenciados, para assim podermos abranger
numa única visão o ensino, a literatura e a cultura em geral, haveríamos de
coincidir, hoje, e apesar dos trágicos desmentidos da realidade, com a panglossiana
convicção dos nossos oitocentistas e optimistas avós, para quem abrir uma escola
equivalia a fechar uma prisão. Que venham as estatísticas escolares e judiciárias
dizer-nos se a massificação do ensino se tem configurado, de facto, como
prevenção bastante ou como antídoto eficaz contra a massificação da
criminalidade, que é, sem dúvida, uma das características deste nosso final de
século...
Deixemos,
porém, as escolas de lado, deixemos de lado a cultura em geral, deixemos a
arte, a filosofia e a ciência, para cuja adequada ponderação me faltariam o saber
e a autoridade, e tornemos à literatura e à sua relação com a sociedade. Mantenhamo-nos
discretamente nos domínios do ético e do axiológico (sem os quais, há que
reconhecê-lo, qualquer exame de uma transformação social determinada, fosse
qual fosse a sua época, teria de satisfazer-se com pouco mais do que uma tabela
de pesos e medidas), e reconheçamos, por muito que essa verificação castigue a
nossa confiança, que as obras dos grandes criadores literários do passado, de
Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camões a Dostoievski, apesar da
excelência de pensamento e fortuna de beleza que diversamente nos propuseram,
não parecem ter originado, em sentido pleno, nenhuma efectiva transformação
social, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em
comportamentos individuais e de geração. No plano da ética, dos valores, do
respeito humano, apetece dizer, sem cinismo, que a humanidade (estou a
referir-me, claro está, ao que costumamos designar por mundo ocidental) seria exactamente
o que hoje é se Goethe não tivesse vindo ao mundo. E que, em reforço desta ideia,
não consta que a leitura dos Fioretti de S. Francisco de Assis tivesse
salvado a vida a uma só das vítimas da Inquisição...
Admissível
é, pois, afirmar que a literatura, mesmo quando, por razões religiosas ou
políticas, se dedicou a um missionarismo de bons conselhos e a uma engenharia
de almas novas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva
e duradoura das sociedades, como provocou, muitas vezes, insanáveis sentimentos
de frustração individual e colectiva, resultantes de um balanço negativo entre
as teorias e as práticas, entre o dito e o feito, entre uma letra que
proclamava um espírito e um espírito que não se reconhecia na letra. Bem mais
fácil seria, para quem faça questão de descobrir em todas as coisas mútuas
relações de causa e efeito, reunir provas da influência maléfica da literatura
(de uma parte dela, pelo menos) nos costumes e na moral, e portanto na sociedade,
tarefa, aliás, bastante favorecida pela presença obsessiva de algumas dessas obras
e alguns desses autores, por exemplo, no imaginário sexual de milhões de
pessoas, alimentando fantasmas e fantasias a que, de outro modo, ficariam
faltando referências, abonações, modelos, por outras palavras, uma completa
filosofia de vida... Entendidas assim tais relações, e adoptando a atitude,
mais comum do que se imagina, daqueles que crêem que algo só tem existência
verdadeira a partir do momento em que existe a palavra que o nomeará, o Sadismo
ter-se-ia revelado ao mundo quando o marquês de Sade, ainda criança, arrancou,
pela primeira vez, as asas a uma mosca, e o Masoquismo, também ele, teve de
aguardar o dia em que a pequena alma de Sacher-Masoch, talvez por aquela mesma
idade, e imitando, sem o saber, o exemplo dos místicos de todas as religiões, percebeu
que era, primeiro, possível, depois, desejável, passar do sofrimento no prazer
ao prazer no sofrimento. Ao cabo de milénios, depois de uma longuíssima espera,
de tanto tempo perdido, o sádico e o masoquista puderam finalmente
encontrar-se, reconhecer-se como complementares e, desta maneira, inaugurar a
felicidade...
Este
percurso, tão breve, pela primeira das vias de reflexão que se nos apresentaram,
aquela que assentava no pressuposto de que a literatura, independentemente do
significado moral ou imoral das suas expressões, teria exercido ou exerceria
ainda influência nas sociedades, ao ponto de constituir-se como um dos seus agentes
transformadores, conduziu-nos, creio, a uma conclusão pessimista e aparentemente
intransponível: a da sua irresponsabilidade essencial. Irresponsabilidade, digo
eu, no sentido restrito de que não será legítimo atribuir ao ciclo da Guerra
das Duas Rosas de Shakespeare, tomemos este outro exemplo, a culpa de um
eventual aumento, em número e em gravidade, dos crimes públicos ou privados em
geral, como igualmente não teremos o direito de acusar o autor de Ricardo
III de não haver podido lograr, graças ao que se espera ser a lição
admoestadora e edificante de toda a tragédia, que os reis e os presidentes
passassem a matar-se menos e os particulares a respeitar-se mais. Uns aos outros
e a si mesmos, faltou dizer.
Se
a literatura é de facto irresponsável, na dupla acepção de não poderem ser-lhe imputados,
mesmo que só parcialmente, nem o bem nem o mal da humanidade, e portanto não
estar obrigada, quer para penitenciar-se quer para felicitar-se, a prestar
contas em nenhum tribunal de opinião; se, pelo contrário, actua, no seu
fazer-se, como um reflexo mais ou menos imediato do estado mental das
sociedades e das suas sucessivas transformações – então, a
segunda via de reflexão proposta, aquela que, talvez com excessivo radicalismo,
precisamente acabaria por mostrar a literatura como mero e obediente sujeito,
mesmo nas suas aparentes rebeliões, essa via interrompe-se quando ainda mal
tínhamos dado os primeiros passos, assim nos reconduzindo ironicamente ao ponto
de partida, à bifurcação dos caminhos, à eterna interrogação sobre o que deve
ser e para que deve servir a literatura quando, na vida cultural dos povos, se
instala o sentimento inquietante de que, não tendo aparentemente deixado de
ser, manifestamente deixou de servir.
Mesmo
que o determinismo da conclusão possa humilhar certas vaidades literárias, mais
inclinadas do que aconselharia a modéstia a magnificar o seu papel na repúblicas
das letras e na sociedade em geral, penso que não teremos mais remédio do que
reconhecer que a literatura não transformou nem transforma socialmente o mundo
e que o mundo é que transformou e vai transformando, e não apenas socialmente,
a literatura. Posta a questão assim, em termos simples, objectar-se-á que
depois de nos terem fechado os caminhos, agora nos vêm fechar as portas, e que,
encerrado neste círculo, sobre todos vicioso e perverso, nada mais restará ao
escritor, enquanto tal, que trabalhar sem esperança de vir realmente a influir
na vida da sua época, limitado a produzir os livros que a necessidade de
divertimento da sociedade, sem o parecer, lhe vai encomendando, e com os quais
se satisfarão ela e ele, ou, no caso de ter sido contemplado com uma porção
suficiente de génio quando da sua distribuição pelo cosmo, escrever obras que o
seu tempo compreenderá mal ou a que será hostil, deixando ao futuro a responsabilidade
de um julgamento definitivo que, eventualmente seguro e justo nesse caso
específico, reincorrerá, infalivelmente, em erros de apreciação quando, já
tornado presente, for chamado a pronunciar-se sobre obras contemporâneas. Em
verdade, o escritor, quando escreve, não está apenas só, está também rodeado de
escuridão, e creio que não abusarei da minha limitada faculdade de imaginar se
disser que até a própria luz da obra – pouca ou
muita, todas a têm –
o cega. Dessa particular cegueira não o poderão curar
nenhuma crítica, nenhum juízo, nenhuma opinião, por mais fundamentados, e úteis
em alguns planos, que se lhe apresentem, porquanto são emitidos, todos eles, de
um outro lugar.
Em
que ficamos, então? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura,
ainda que esta, numa ou noutra ocasiões, possa ter tido nas sociedades alguma superficial
influência, se, pelo contrário, é a literatura a que se encontra
permanentemente assediada por sociedades, como são estas de hoje, que não lhe
exigem mais do que as fáceis variantes duma mesma anestesia do espírito que se
chamam frivolidade e brutalidade – como
poderemos nós, sem esquecer as lições do passado e as insuficiências de uma
reflexão dicotómica que se limitaria a fazer-nos viajar entre a hipótese, nunca
satisfatoriamente verificada, de uma literatura agente de transformações
sociais, e a evidência de uma literatura, outra, esta, que parece não ser capaz
de fazer mais do que recolher os destroços e enterrar as vítimas das batalhas
sociais –,
como poderemos nós, insisto, ainda que provocando a troça das futilidades
mundanas e o escárnio do senhores do mundo, voltar a um debate sobre literatura
e compromisso, sem parecer que estamos falando de restos fósseis?
Espero
que no futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que cada
uma delas, ou todas juntas, possam fazer-nos sair da dolorosa e resignada
paralisia de pensamento e acção em que parecemos comprazer-nos. Por minha
parte, limito-me a propor, sem mais rodeios, que regressemos rapidamente ao
Autor, a essa concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos
livros e sem a qual a literatura seria coisa nenhuma, não para que ele ou ela
nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais
certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem e guiem com as
suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas simplesmente
para que nos digam quem são, na sociedade que, eles e nós, somos, para que se
mostrem todos os dias como cidadãos deste presente, mesmo que, como escritores,
creiam estar trabalhando para o futuro. O problema não está em, supostamente,
se terem extinguido as razões e causas de ordem social, ideológica ou política
que, com resultados estéticos tão variáveis quanto as intenções, levaram ao que
se chamou literatura de compromisso, no sentido moderno da expressão; o
problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de
comprometer-se, e em que muitas das teorizações em que hoje nos deixamos
envolver não têm outra finalidade que constituir-se como escapatórias
intelectuais, modos de ocultar, aos nossos próprios olhos, a má consciência e o
mal-estar de um grupo de pessoas – os
escritores –
que, depois de se terem olhado a si mesmos, durante muito
tempo, como luz divina e farol do mundo, acrescentam agora, à escuridão
intrínseca do acto criador, as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.
Depois
de morto, o escritor será julgado segundo aquilo que fez.
Reivindiquemos, enquanto ele estiver vivo, o direito a julgá-lo também por
aquilo que é.
José
Saramago, Colóquio em Málaga, publicado na revista Quimera
Disponível em: Saramago:
Escrever, Interromper. Narrativas breves de José Saramago: problemáticas de um
lugar discursivo. Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2016
https://www.josesaramago.org/produto/literatura-compromisso/ |
Literatura de Compromisso
L’égalité fait effet dans le corps social sous forme d’existences suspensives, qui peuvent
s’appeller littérature ou prolétariat…1
Literatura de compromisso, expressão que emoldura o presente trabalho,
remete-nos para uma imensa área da reflexão e produção científica, que abarca, entre outros, os binómios literatura-sociedade, literatura-política, literatura-ética, os quais se encontram, por seu turno, relacionados com a problemática
dos
intelectuais da escrita, esses “homens de letras”, assim designados desde o
affaire
Dreyfus2, e cujo silêncio ou intervenção suscitam, até hoje, as mais variadas
discussões quanto àquilo que “deve ser” a sua atitude face à escrita e ao contexto em que se integram.
Não pretende este trabalho
focar-se na questão dos intelectuais, à qual nos dedicámos já, no âmbito do Seminário
de Metodologias em Estudos Portugueses (trabalho intitulado: “O Intelectual e a Pós-Modernidade: que lugar, que tarefa? Uma reflexão em torno dos legados de Sartre, Foucault e Lyotard”,
janeiro de 2011), mas não podemos deixar de os referir, dado ser nosso
entendimento que o intelectual-escritor é o autor por detrás
de uma literatura do compromisso (e não comprometida, no sentido de militante), uma literatura cuja “missão” é por ele encarada enquanto
portadora de um sistema de valores éticos
e de conceitos “universais”, mais precisamente, os “seus” valores
e conceitos, enformados esteticamente pelas palavras, essa ferramenta – a única – de que sabe dispor de uma forma (por vezes)
quase “mágica”, que abre novas paisagens no espírito
do leitor. É quase possível
dizer-se que toda a obra literária é uma obra de compromisso, o compromisso de dar forma e sentido ao real.3
Falamos, pois, de um trabalho, o trabalho
de escrita e de “uma escrita cuja função já não é apenas comunicar ou exprimir, mas impor um além da linguagem que é ao mesmo tempo
a História e o partido que nela se toma”4, i.e., que é também um projeto
de vida, no sentido de colagem e consistência de um conjunto
de temas (em entrevista a Leneide Duarte-Plon5, Jacques Rancière formula
a opinião de que “não há temas, uma vez que o estilo é [citando Flaubert] ‘uma maneira
absoluta de ver as coisas’”)
que o autor
transpõe para a sua obra, seja de modo ficcional ou nas múltiplas
facetas da sua intervenção pública,
numa autoridade que outros lhe conferem enquanto
figura das letras com obra reconhecida e por si tida como responsabilidade. A nosso ver, é, precisamente, na multiplicidade de papéis assumidos
pelo escritor cuja obra é recebida como objeto de relevo (e graças a ela), que reside a adequação da designação de “intelectual”. O escritor intelectual é, parece-nos, o escritor que subverte, com a sua obra e com as suas ações,
convenções, códigos e tradições, não com a pretensão de instituir novos, mas sim de fundar um novo espaço junto da comunidade de cidadãos do seu
tempo: o espaço para um novo olhar sobre o real, para uma nova visão do
mundo.6
Uma literatura de compromisso apenas pode, por isso e a nosso ver, ser encontrada no conjunto
que compõe a obra e o percurso de vida de
determinado escritor, no sentido em que, uma e outra, devem figurar-se como os dois lados de um espelho: a personalidade (o eu interior)
e aquilo que esta conseguiu
criar, dar ao mundo. Homem e autor caminhando a par, refletindo sobre o seu tempo, interrogando-o e interrogando-se, forçando
brechas onde deteta clausuras, estrategicamente investindo em objetos
literários direcionados a um mesmo
público, a uma mesma finalidade, ainda que, aparentemente, neles se reproduzam
as suas várias vozes. Homem e autor presentes na matéria
discursiva com a qual é construído um romance, um conto, um poema, uma crónica, até mesmo um diário ou uma intervenção pública. Homem e autor, por último, para quem a literatura e a palavra, são a urgência do seu tempo.
Ideologia7 e política são fatores
indissociáveis deste tipo de problemática. O autor comprometido com o seu tempo e com a sua obra, não pode deixar de expressar os seus sentimentos, os seus ideais,
as suas posições políticas, no sentido daquilo que considera
ser a melhor forma de organizar
uma comunidade, uma sociedade. Não se trata aqui de uma questão
de militância em determinado partido
político (essa será a postura
do escritor militante, que consideramos poder encarar como autor de textos de menor
qualidade literária, por se guindarem em regras rígidas
e enformadas de determinados postulados partidários). Mais do que falar de ideologias8 ou de modelos organizativos que hoje se reconhecem fracassados ou por acontecer
(como o comunismo), destituídos de sentido pelo horror e pelo mal que induziram
(como todos os nacionalismos), esgotados (como o imperialismo), ou sem alternativa (como o neoliberalismo), importa-nos situar o escritor-intelectual numa teia de relações na qual nada do que lhe é
passado, história, património
constitutivo do seu ser e do seu tempo, é deixado de lado, antes aposto num dos pratos
da balança como contrapeso aos dados que vai lançando
para o outro prato: os dados da atualidade, ponto de partida
para a construção de uma narrativa estética
do real.
“Se a ideologia
– como
diz Macherey – pode
ser apresentada como um conjunto de significações, um conjunto não sistemático,
a
obra
propõe
uma
‘leitura’
dessas
significações”, embora essa leitura… nunca esgote a obra, pois esta, não se bastando a si mesma, abre-se para “a ‘presença’ do não dito”. E o que significa
esse “não dito”?
Significa que na obra de arte a ideologia
não se apresenta
propriamente como conteúdo.
A ideologia é apenas a matéria prima para a construção ou apresentação do imaginário… (Fernando Guimarães,
Linguagem e Ideologia, p. 27)
Fará hoje sentido falarmos
de uma literatura de compromisso? De uma literatura que alguns situaram/fixaram já num tempo
e espaço próprios
da História? Fará sentido
falarmos de escritores comprometidos com o seu tempo e com um determinado trabalho de escrita,
na linha do que Sartre
designou de escritor
engajado?9 Pensamos que sim, que continua a estar presente
esta necessidade e que a podemos encontrar na obra literária
de escritores portugueses contemporâneos, como é o caso de José Saramago e de outros
(refiram-se apenas os nomes de José Cardoso
Pires, Carlos de Oliveira
ou Vergílio Ferreira, com produções literárias diferenciadas que, em dado momento e contexto
histórico, se identificaram com um movimento
específico – o movimento neorrealista português – e que, apesar
das opções estéticas
posteriores de cada um, mantiveram um registo a que chamaremos ético, traduzido num compromisso com a palavra,
com a literatura e com o seu tempo). E, se esta escrita é necessária (“As
feridas, como mostram os escritores, ainda
sangram…”, recorda-nos Walter
Jens10) e útil,
é porque tem um público
leitor específico, que a “interpreta” como tal. Este público é, também, o Outro que testemunha. E a literatura é sempre, a cada palavra
escrita, um ato público, uma tomada de posição.
L’’espace des possibles’ dans lequel se meut l’écrivain n’est pas
identique à chaque époque; il est en constante
mutation et ne cesse de se reconfigurer, donnant à chaque période de l’histoire littéraire son profil
singulier. Aussi la définition de ce qu’est
la littérature engagée se singularise-t-elle du même pas que l’espace
des possibles dans lequel elle s’inscrit. (Benoît Denis, Littérature
et engagement, de Pascal à Sartre, p. 27).
A comunidade dos singulares
O escritor-intelectual é um homem comprometido com o seu tempo, preocupado
com o sentido da verdade,
com as dissonâncias e os desequilíbrios, com a linguagem
e com a palavra. O escritor-intelectual é, assim o entendemos, ele mesmo, um “político”, porque busca incessantemente, através da palavra,
fazer eclodir gritos onde apenas há silêncio,
porque denuncia e alerta, ficcional
ou diretamente, as falsidades de convenções impostas pelo poder e assumidas
por uma comunidade como verdadeiras, ao ponto de se tornarem
consensuais, patrimoniais. O escritor-intelectual aponta a dedo as diferenças numa sociedade (retórica
e demagogicamente) pintada de igual. O escritor-intelectual é muitas vezes um escritor-maldito, porque nomeia o mal, o erro, a contradição, a rejeição
do Outro; ele sabe que o próprio
tempo
é uma utopia – a nova utopia, o remédio
para todos os males, tal como refere Jacques Rancière11 (“Le temps devient
alors, dans une fuite en avant, la matière de la dernière
utopie.”) – e tem a coragem
de assinar por baixo.
Uma das questões que nos parecem pertinentes no quadro do relacionamento da literatura com a política, é a questão
do Outro. Se à democracia tem sido conferido o mérito e a responsabilidade de se edificar enquanto
o único regime político capaz de promover
uma sociedade de iguais, a reflexão levada a efeito
por parte de alguns autores
contemporâneos (como Jacques
Rancière), conduz-nos à interrogação quanto
à sua própria existência, bem como ao tipo de organização a que deu origem. Talvez
esteja, então, aí, a verdadeira razão de ser do escritor-intelectual: aquele que enuncia a “paixão pelo Um que exclui” (Rancière, Aux bords du politique, p. 66).
É, aliás, significativa a chamada de atenção
do autor de Aux bords du politique, para esta questão:
La démocratie n’est ni l’autorégulation consensuelle des passions plurielles de la multitude des individus ni le règne de la collectivité unifiée
par la loi à l’ombre
des déclarations des Droits…
Il n’y a pas démocratie simplement parce que la loi déclare
les individus égaux et
la collectivité maîtresse
d’elle même. Il y faut encore cette puissance du ‘démos’12 qui n’est ni l’addition des partenaires sociaux
ni la collection des différences mais tout au contraire le pouvoir
de défaire les partenariats, les collections
et les ordinations. (Rancière, Aux bords du politique, p. 67)
Parece-nos como que um tiro certeiro,
esta afirmação de Rancière: a democracia, sistema
a que o homem almejou ao longo de tantas épocas, pelo qual se fizeram guerras,
o regime idealizado como o mais justo, não chegou, todavia, a consolidar-se. Não pode, como refere o autor, decretar-se a democracia, é preciso potenciar o ‘démos’ que, ao contrário do que se pensa, não se traduz numa mera soma das partes sociais nem numa colecção das diferenças, mas no seu oposto, ou seja, o desfazer
de partenariados, colecções e ordenações. Certamente não seria necessária a tradução, no entanto, julgamos
relevante, frisar, reforçar, fixar na nossa língua
de origem, estas palavras
esclarecedoras do tempo político
que vivemos e no qual se inscreve
a narrativa, o corpus literário, que pretendemos aprofundar e que tem sempre presente
a “tensão do Outro” (Rancière, Aux bords du politique,
p. 158). Este tempo democrático, o tempo da instauração de uma suposta “comunidade de iguais”, que mais não é do que uma comunidade restrita, uma comunidade do consenso, polida
ao ponto de resplandecer, com o número adequado de seres, de conceitos
e de palavras, uma comunidade e uma sociedade saturadas de significantes, como bem nos recorda Rancière,
para quem a literatura nada tem a ver com o poder, mas sim com o consenso:
Elle défait le consensus
en faisant traverser
le je qui consent, convient et contracte
par un il. L’instance de cet il… qui traverse
le rapport d’un ”je” à lui-même, ne releve pás d’un être du langage.
Il relève plutôt de la confrontation entre la puissance
du langage et l’experience de la singularité du corps qui objecte… (Rancière, Aux bords du politique,
p. 195)
A literatura expõe, propõe,
então, a experiência do múltiplo e do dissenso
e instaura a comunidade
dos singulares, a única capaz da infinita possibilidade do múltiplo.
Cela veut dire prendre la mesure de l´égalité, cette mesure qui est l’art de régler
la proximité et la distance…
Cela veut dire apprendre sans cesse à mesurer et à estimer, à recréer à chaque instant ce proche et ce distant qui définissent les intervalles de la communauté
égalitaire. (Rancière, Aux bords
du politique, p. 199-200)
In Crónica: Literatura de Compromisso ou a Urgência da Palavra,
Maria de Fátima Palmela de Faria Roque.
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
2011
____________
Notas:
1
In Rancière, Jacques, Aux bords du politique, Collection Folio Essais, Gallimard, septembre 2007, p. 194.
2 …ce
nom dérisoire…, como aponta Maurice Blanchot
(Les intellectuels en question, Ébauche
d’une réflexion, Éditions Farrago,
décembre 2000, p. 17).
3 Cf. Denis, Benoît,
Littérature et engagement, de Pascal à Sartre, Éditions
du Seuil, février
2000, p. 10.
4 In Barthes,
Roland, O Grau Zero da Escrita, Edições 70, Lda., novembro de 2006, p. 7. Roland
Barthes afirma (e nós concordamos) que a escrita é pois essencialmente a moral da forma, é a escolha da área social no seio da qual o escritor decide
situar a Natureza
da sua linguagem… a sua escolha é uma escolha de consciência, não de eficácia… a escolha, e depois a responsabilidade de uma escrita, designam uma liberdade…
É sobre a pressão da História e da tradição
que se estabelecem as escritas possíveis de um determinado escritor…
A escrita é precisamente esse compromisso
entre
uma liberdade e uma recordação, é a liberdade recordadora que só é liberdade
no gesto da escolha,
e não na sua duração. (O Grau Zero da Escrita,
p. 18-19).
5 In A democracia literária, Por Leneide Duarte-Plon (http://pphp.uol.com.br).
6 Et si l’on nous dit que nous faisons bien les importants et que nous sommes bien puérils d’espérer
que nous changerons le cours du monde, nous répondrons
que nous n’avons aucune
illusion, mais qu’il convient pourtant que certaines choses soient dites… nous n’avons
pas la folle ambition
d’influencer le State Department, mais celle – un peu moins folle – d’agir sur l’opinion
de nos concitoyens. Jean-Paul Sartre, In Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948,
p. 283.
7 No Ensaio Sobre a Literatura como Forma Ideológica (in Literatura,
Significação e Ideologia, Colecção Práticas de Leitura, dirigida
por Maria Alzira Seixo, Editora
Arcádia S.A.R.L., 2.ª edição, Fevereiro de 1979, p. 33), Étienne Balibar e Pierre Macherey
`vão ao encontro do nosso entendimento desta questão:
Reconhecer na literatura uma determinada forma ideológica não é, já não pode ser, ‘reduzir’ a literatura às ideologias morais,
políticas, religiosas e até estéticas
que são definíveis fora dela. Também não é fazer destas ideologias… o ‘conteúdo’ ao qual ela viria dar uma ‘forma’
especial… Determinar
a literatura como formação
ideológica particular, é levantar
um problema completamente diferente: o da ‘especificidade dos efeitos ideológicos’ produzidos pela literatura e do modo (mecanismo) segundo o qual ela os produz.
Sartre
vai mais longe (in Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948, p. 288), quando afirma que, em cada época, é a literatura toda que é a ideologia.
Uma abordagem histórica e estrutural pode ainda ser encontrada no artigo de António Lopes sobre Ideologia,
in http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl.
8 Étienne Balibar
e Pierre Macherey
(este último citado
por Fernando Guimarães, acima, no texto), afirmam que: A experiência prova, de facto, que é perfeitamente possível
‘substituir’ os termos ideológicos que reinam na “vida cultural”, temas de origem burguesa ou pequeno-burguesa, por novos temas “marxistas”, sem que por isso se modifique realmente
o lugar da arte e da literatura na prática social, nem por conseguinte, a ‘relação prática’
dos indivíduos e das classes
sociais com as obras de arte
que eles produzem
ou consomem. Pelo contrário,
esta produção e este consumo continuam a ser concebidos e praticados
sob a modalidade da “arte” em geral
(quer seja “comprometida”, “socialista”, “proletária”, etc.). (Ensaio Sobre a Literatura como Forma Ideológica, p. 24-25).
9 Je dirai
qu’un écrivain est engagé
lorsqu’il tâche à prendre
la conscience la plus lucide,
et la plus entière d’être embarqué, c’est à dire lorsqu’il
fait passer pour lui et pour les autres l’engagement de la spontanéité immédiate au réfléchi.
L’écrivain est médiateur par excellence et son engagement c’est la mediation. In Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948,
p. 84.
10 In Literatura
e Política: possibilidades e limites,
in Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 33, Set. 1976, p. 5-18.
11 In Rancière, Jacques, Aux bords du politique, Collection
Folio Essais, Gallimard, septembre 2007, p. 56.
12 Na terceira
parte da obra Aux bords du politique, Jacques Rancière esclarece
o que entende por démos: Avant d’être le nom de la communauté, ‘démos’ este le nom d’une
partie de la communauté: les pauvres. Mais précisément ‘les pauvres’ ne désigne pas la partie économiquement défavorisée de la population. Cela désigne simplement les gens qui ne comptent
pas, ceux qui n’ont pas de titre à exercer la puissance de l´’arkhé’, pas de titre à être comptés.
(p. 232-233)
Também
na obra Estética e Política, a Partilha do Sensível, o autor aponta para o facto de que: O cidadão, segundo Aristóteles, é aquele que ‘toma parte’ no acto de governar
e de ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede este ‘tomar parte’: a que determina quem vai tomar parte. (Estética e Política,
a Partilha do Sensível,
Dafne Editora, Colecção
Imago, Porto, 2010, p. 13).
CARREIRO, José. “Literatura de Compromisso”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/literatura-de-compromisso.html