sexta-feira, 21 de abril de 2023

O tempo e a paciência - crónica de José Saramago

Eme Line, tremor de terra em Itália, 2012

 

O tempo e a paciência

Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndula, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. Só o que o tempo faz.

Que me sejam perdoadas estas falsas profundezas. Nada em mim se dispunha a coxear atrás do Einstein se não fosse aquela notícia de França: no rio Saône toda a fauna se extinguiu por ação de produtos tóxicos acidentalmente derramados nele, e cinco anos serão necessários para que essa fauna se reconstitua. O mesmo tempo que envelhece, gasta, destrói e mata (boas noites, espelho), vai purificar as águas, povoá-las pouco a pouco de criaturas, até que cinco anos passados o rio ressuscite da fossa comum dos rios mortos, para glória e triunfo da vida. (E depois casaram, e tiveram muitos afluentes.)

Não iria longe esta crónica se não fosse a providência dos cronistas, a qual é (aqui o confesso) a associação de ideias. Vai levando o rio Saône a sua corrente envenenada, e é neste momento que uma gota de água se me desenha na memória, como uma enorme pérola suspensa, que devagar vai engrossando e tarda tanto a cair, e não cai enquanto a olho fascinado. Rodeia-me um fantástico amontoado de rochas. Estou no interior do mundo, cercado de estalactites, de brancas toalhas de pedra, de formações calcárias que têm a aparência de animais, de cabeças humanas, de secretos órgãos do corpo – mergulhado numa luz que do verde ao amarelo se degrada infinitamente.

A gota de água recebe a luz de um foco lateral e é transparente como o ar, ali suspensa sobre uma forma redonda que lembra um bolbo vegetal. Cairá não sei quando, da altura de seis centímetros, e vai escorregar na superfície lisa, deixando uma infinitesimal película calcária que tornará mais breve a próxima queda. E porque nós parámos a olhar a gota de água, o guarda de Aracena disse: «Daqui a duzentos anos as duas pedras estarão juntas.»

É esta a paciência do tempo. Na gruta imensa, o tempo está aproximando duas pedras insignificantes e promete a silenciosa união para daqui a duzentos anos. À hora a que escrevo, pela noite dentro, a caverna está decerto em escuridão profunda. Ouve-se o pingar das águas soltas sobre os lagos sem peixes – enquanto em silêncio a montanha verte a gota vagarosa da promessa.

A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.

Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceite e recusada – duzentos anos, se assim tiver de ser.

José Saramago, A Bagagem do Viajante, 8.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2010, pp. 223-225


A Bagagem do Viajante, Crónicas (Lisboa, Futura, 1973, 1.ª edição)


I – Texto de apoio: Crónicas de José Saramago

On n’est pás écrivain pour avoir choisi de dire certaines choses mais pour avoir choisi de les dire d’une certaine façon. (Jean-Paul Sartre)

As crónicas dizem tudo (e provavelmente mais do que a obra que veio depois). (José Saramago)

 

As publicações, Deste Mundo e do Outro26 e A Bagagem do Viajante27, reúnem as crónicas escritas por José Saramago para os jornais A Capital (1968/1969) e Jornal do Fundão (1971/1972), num total de 120 textos. O autor havia escrito e publicado o romance Terra do Pecado (Lisboa, Minerva, 1947) e os livros de poemas, Os Poemas Possíveis (Lisboa, Portugália, 1966) e Provavelmente Alegria (Lisboa, Horizonte, 1970). Seguiu-se a publicação dos editoriais escritos para o Diário de Lisboa, As opiniões que o DL teve (Lisboa, Seara Nova/Futura, 1974), do conto/poema O Ano de 1993 (Lisboa, Futura, 1975) e dOs Apontamentos (Lisboa, Seara Nova, 1976), mais uma compilação de editoriais, estes escritos para o Diário de Notícias.28 Parece-nos importante situar, no vasto panorama da obra de Saramago, a publicação das suas crónicas, que esta será uma forma de melhor entendermos a sua escrita e o seu processo evolutivo. Consideramos significativo, o facto das crónicas surgirem (publicadas em livro e não apenas nos jornais a que se destinaram) logo após a publicação do 1.º romance de Saramago (Terra do Pecado, que o autor sempre considerou uma experiência menor, mas onde é possível encontrar apesar de traços que revelam uma forte influência das leituras dos românticos laivos do que viria a constituir o tom único de Saramago29) e de dois livros de poemas (também aqui, Saramago desvalorizou sempre as suas “qualidades poéticas”; no entanto, no conjunto da sua obra, esta sua “experiência” não pode ser menosprezada, não cabendo, porém, neste espaço, uma sua análise), para logo se lhes seguir O Ano de 1993, objeto literário de difícil classificação no quadro dos cânones teóricos, misto de conto e fábula assente numa estrutura poética. Porque o nosso objetivo é a análise das crónicas de Saramago, não nos alongaremos sobre este aspeto da sua obra, mas não deixamos de apontar, para além do fator evolução, a perceção de uma vontade do autor em experienciar diferentes modos narrativos, como que colocando-se a si mesmo (e à sua criatividade) à prova, bem como a constância temática bem vincada nestes primeiros momentos do seu trabalho e que, ao longo dos anos de produção literária, irá transformar-se e consolidar o estilo de José Saramago.

Regressemos pois às crónicas. Estamos em finais da década de 60, inícios da de 70, do séc. XX. Vive-se ainda, em Portugal, o período do Estado Novo e, se desde o salientamos, é unicamente para situarmos autor e obra, uma vez que, destas crónicas, parece-nos afastada a vertente política, ou melhor, Saramago não deixa de aludir (pela ironia e com recurso a metáforas) a determinadas situações que são o reflexo de um regime ditatorial, mas interessa-lhe muito mais contar uma história, fixar um detalhe importante do que o rodeia, chamar a atenção do leitor para uma matéria específica, dar-lhe a conhecer quem é, do que, propriamente, usar este espaço para uma crítica política sistemática. Dir-se-á que não poderia tê-lo feito, dada a existência da censura30, fator, certamente, de peso. Todavia, é nossa opinião que, para Saramago, a crónica representava antes um espaço privilegiado de estabelecimento de fortes laços com o leitor, um caminho de preparação dos seus romances (se quisermos, uma história com romances dentro), i.e., um pré-texto e, simultaneamente um pretexto para o testemunho (veja-se a epígrafe em Deste Mundo e do Outro, Crónicas, que são? Pretextos ou testemunhos?), um dever para com a sociedade que é a sua e para consigo mesmo, uma noção muito lúcida acerca do tempo (repare-se na epígrafe d’A Bagagem do Viajante, Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas). Seria, aliás, interessante e contribuiria, certamente, para uma análise mais profunda ao nível da relação da crónica com o real confrontar o texto de cada crónica com os acontecimentos que o jornal onde a mesma foi publicada noticiou nesse dia. Tendo em conta que Saramago não datou nenhum dos textos individualmente, podemos também pensar se tal não terá sido intencional: o tempo das crónicas nem sempre terá sido o tempo do jornal, como se comprova através da leitura das mesmas que, muitas vezes, são claras ao identificar o momento (tempo) que o autor a elas dedicou e porquê (Às vezes a manhã ajuda, Três horas da madrugada, Noite de Veo, etc).

Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante, aqui foi referido, têm como subtítulo Crónicas. Não pois que duvidar: a intenção do autor é clara quanto ao modo como estes textos devem ser lidos e apreendidos31. Também os títulos comportam informação importante: Deste Mundo e do Outro leva-nos a intuir um conjunto de textos que tanto podem ter como referente a realidade que cerca o autor, como transportar-nos para um outro tipo de mundo; que mundo será esse? a leitura o trará consigo. com A Bagagem do Viajante, intuímos não a temática da viagem, cara a Saramago, como tudo aquilo que ela acarreta se do ponto de vista da viagem/vida. A bagagem será, então, aquilo que o autor transporta consigo, os seus traços de personalidade, aqui revelados ao leitor: este sou eu, aquele que escreve sobre o seu tempo para dele prestar testemunho. Várias são, aliás, as crónicas de forte pendor autobiográfico, o que evidencia a relação homem-escritor de que falávamos anteriormente O diálogo, a memória, a leitura da atualidade, a interpelação do leitor, a interrogação face à existência humana, mas também face ao próprio ato da escrita e à palavra, a intertextualidade (diálogo com autores e suas obras, sobretudo portugueses), a crítica,32 são constantes nas crónicas de Saramago. É como se, no momento em que escreve, o Outro também ali estivesse, apenas um pouco mais distraído do que o autor que, por isso mesmo, o faz atentar em pormenores da realidade que lhe poderiam, doutro modo, passar distantes. Por outro lado, esta é também uma forma de estabelecer uma relação próximo com um leitor específico, o seu leitor.

Constantes são ainda alguns dos temas que, na obra literária de Saramago, virão a ser desenvolvidos e objeto de pensamento aprofundado: muros e muralhas, portas e portões, solidão e silêncio, o deserto na cidade, na terra, a vida, o pensamento e o tempo, a humanidade, as palavras, o autor, o passado, a literatura portuguesa, o mundo, o ceticismo e a verdade. As crónicas de Saramago são fragmentos dos seus romances e apelos à reflexão. Constantes, por último, ao nível da linguagem, são o recurso à ironia, à sátira, à alegoria e à metáfora, que encontraremos sabiamente aplicados nos seus romances.

[…]

Arrisquemos agora um salto no tempo do autor, no tempo das crónicas, para uma abordagem a uma das últimas crónicas (estamos certos de que a seleção e fixação dos textos teve o seu grau cronológico e de intencionalidade) de A Bagagem do Viajante: O tempo e a paciência34.

Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndula, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou quem era um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. o que o tempo faz.

Assim tem início a crónica. Aqui, aparentemente, não se vai contar uma história, mas refletir em torno do tempo, assumindo o autor um modo narrativo na primeira pessoa, ou seja, este sou eu e as minhas preocupações, que desejo partilhar convosco. Dizemos aparentemente porque, no desenrolar da escrita e desenrolar parece-nos o termo adequado à escrita da crónica, que o próprio Saramago encara como “associação de ideias” constatamos que esta é também uma história: a história do tempo e dos homens, afinal, as grandes colunas da arquitetura literária de Saramago. O tempo que mata e destrói, o tempo que envelhece os homens, o tempo necessário para criar vida, o tempo da memória, “como uma enorme pérola suspensa, que devagar vai engrossando e tarda tanto a cair, e não cai enquanto a olho fascinado.”

A memória que “tarda tanto a cair”, a evocação do passado, daquilo que o autor foi e viu. Mas será que “foi e viu”? De repente, somos levados para um mundo fantástico, entramos com o autor num espaço que, pela descrição, se assemelha a uma gruta (ou caverna, outro dos temas centrais em Saramago), na qual paira ainda a gota de água da memória, que lhe abriu o espaço da imaginação. Mas falamos de imaginação ou de memória? Que memória é esta, afinal, onde nos levam as palavras do autor?

Ao tempo e à sua paciência, nome que vulgarmente classifica uma atitude humana e que Saramago empresta ao tempo e à memória, graças à qual lhe chega o que um dia ouviu dentro de uma gruta: “Daqui a duzentos anos as duas pedras estarão juntas.” longe, bem distante da secretária do escritor e, no entanto, tão próximo da sua memória, duas rochas vão caminhando uma em direção à outra, pacientemente.

A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra no chão. Duzentos anos assim, porque assim tem de ser.

Paciente, pois, mas também fatal, indiferente e soberbo.

Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceite e recusada duzentos anos, se assim tiver de ser.

A gruta pode até existir, o autor pode ter estado e ouvido a frase acerca do tempo, cada um interpretará a seu modo e acreditará se quiser; mas tudo isto pode não passar também de uma alegoria que transporta uma elegia ao homem e um aviso: vocês homens são pacientes e corajosos, sabem esperar mas, se assim tiver de ser”, não esqueçam aquelas duas pedras que, no silêncio escuridão da gruta, se vão aproximando ao longo de duzentos anos. Quantos levará a humanidade a (re)aproximar-se daquele tempo que a memória nos diz ter sido um tempo de paciência? Tempo da infância do homem ou da infância da História, será sempre um tempo purificador.

Recordando o que apresentámos atrás, se se pretender fazer uma leitura ideológica destas crónicas de Saramago, poderá ser, a nosso ver, uma leitura do “não dito”, ou seja, a existir algum tipo de ideologia nas palavras do autor, ela ter-lhe-á servido como matéria-prima desencadeadora da imaginação e não como conteúdo. Nas palavras do próprio José Saramago:

Claro que eu penso aquilo que penso e sou aquilo que sou e do ponto de vista político, ideológico e filosófico isso está muito claro nos meus livros. Mas sem que eu tivesse de preocupar-me com uma frase do Engels e o Engels não era qualquer pessoa! uma carta em que ele responde a uma jovem escritora que lhe pedia conselhos e em que diz: ‘Quanto menos se notar a ideologia melhor’. Essa frase podia-me ser aplicada.[…]

A questão tem de estar lá, no poder de sugestão que a história tenha, que permita ao leitor ir mais além do que aquilo que parece estar dito, porque naquilo que está escrito implícito uma quantidade de coisas a que o leitor, que é inteligente, é capaz de chegar por sua própria conta. (Entrevista a João Céu e Silva, Uma Longa Viagem com José Saramago35, p.53)

 

Sobre as crónicas de José Saramago, ler mais em: Crónica: Literatura de Compromisso ou a Urgência da Palavra, Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011

 

_____________

Notas:

26 Saramago, José, Deste Mundo e do Outro, Crónicas, Editorial Caminho S.A., Lisboa, janeiro de 1999. A 1.ª edição data de 1971 (Lisboa, Arcádia).

27 Saramago, José, A Bagagem do Viajante, Crónicas, 6.ª edição, Editorial Caminho S.A., Lisboa, janeiro de 1999. A 1.ª edição data de 1973 (Lisboa, Futura).

28 De acordo com a cronologia bibliográfica publicada na obra de João Marques Lopes, Biografia, José Saramago, 1.ª edição, Autor, Guerra e Paz, Editores S.A. e Edições Pluma Unipessoal, Lda., Janeiro de 2010.

29 A matriz da ‘Terra do Pecado’ reside muito mais na versão lusa do naturalismo zoleano… do que nos lineamentos do romance praticado no século XX seja o que levou ao desenvolvimento do neorrealismo, seja aquele vinculado às derivas do experimentalismo literário do modernismo internacional. Se tudo isto torna transparente o anacronismo do Saramago estreante, também não deixa de, por si, evidenciar a independência do escritor em relação ao contexto literário português. In Costa, Horácio, A construção da personagem de ficção em Saramago: da ‘Terra do Pecado’ ao ‘Memorial do Convento. In Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 151/152, janeiro 1999, p. 205-217.

30 Segundo João Marques Lopes, autor de José Saramago, Biografia (1.ª edição, Autor, Guerra e Paz, Editores S.A. e Edições Pluma Unipessoal, Lda., janeiro de 2010, p. 46), José Saramago também viu textos seus serem censurados. Assim a crónica ‘As Palavras’, escrita para o número de 17 de maio de 1968 de ‘A Capital’, foi truncada, pois os censores terão considerado que frases como ‘Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar’ seriam uma crítica velada ao cerceamento da liberdade de expressão então imperante entre nós… o mesmo aconteceu com o texto ‘Esta palavra esperança’…

31 Para Carlos Reis, O título funciona, aliás, em José Saramago, como afirmação de um paradigma discursivo, ou até, nalguns casos, como explícita regência de género… A dominância do título trabalhado como alusão paradigmática não significa, contudo, uma sujeição passiva a géneros pré- estabelecidos;  ela  pode trazer  consigo  (e  é  isso  que  normalmente  ocorre)  a  revisão  ou  mesmo a subversão dos géneros e dos campos institucionais… In Reis, Carlos, Diálogos com José Saramago, Editorial Caminho, Lisboa, 1988, s.p., texto disponível na página da Internet da Fundação Saramago, em  www.josesaramago.org.

32 Diz Maria Alzira Seixo: Porque uma certa distensão epidérmica no modo de narrar ou de descrever de José Saramago não consegue esconder a violência da crítica (a sua crónica é quase sempre crítica), reflexiva, moralista ou satírica (campos do registo discursivo por onde se expande). Com uma agravante: a da integração e ‘exposição’ do sujeito da escrita em muitos dos seus textos, integrando-o nesses raciocínios e tensões, englobando-o em todos esses mundos… e fazendo mesmo dele matéria discursiva primeira. In Seixo, Maria Alzira, O essencial sobre José Saramago, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, novembro, 1987, p. 18.

34 In Saramago, José, A Bagagem do Viajante, Crónicas, 6.ª edição, Editorial Caminho S.A., Lisboa, Janeiro de 1999, p. 221.

35 Silva, João Céu e, Uma Longa Viagem com José Saramago, 1.ª edição, Porto Editora, Lda., Março de 2009.

 

Salvador Dali, A Persistência da Memória (1931)

 

II - Releia a crónica de José Saramago e responda ao questionário. (As linhas encontram-se numeradas no texto que se segue).



1. As referências ao relógio parado e à imagem refletida no espelho (linhas 1 a 5)

(A) aludem a formas de medição do tempo.

(B) exemplificam efeitos da passagem do tempo.

(C) esclarecem as dúvidas do autor sobre o tempo.

(D) revelam o significado intrínseco do tempo.

2. Através do recurso à palavra «coxear» na expressão «coxear atrás do Einstein» (linhas 6 e 7), o autor alude à

(A) necessidade imperiosa de aproximação à ciência.

(B) dificuldade em estudar o efeito do tempo no Saône.

(C) distância que separa o seu pensamento do de Einstein.

(D) intenção inequívoca de seguir os passos de Einstein.

3. A associação de ideias estabelecida, a partir da linha 13, entre a água do rio Saône e a gota de água da gruta evidencia

(A) o ciclo natural da água existente no planeta.

(B) o ritmo do tempo ao transformar o mundo.

(C) a beleza das formas que a água proporciona.

(D) a efemeridade da vida humana no planeta.

4. No último parágrafo do texto, o autor acentua

(A) a lentidão que caracteriza a evolução da humanidade.

(B) a beleza dos processos naturais de criação das rochas.

(C) a insignificância do homem face à imensidão da natureza.

(D) a morosidade na formação de novas pedras calcárias.

5. Nas linhas 13 e 15, a palavra «se» é

(A) uma conjunção em ambos os casos.

(B) um pronome em ambos os casos.

(C) um pronome e uma conjunção, respetivamente.

(D) uma conjunção e um pronome, respetivamente.

6. O complexo verbal «está aproximando» (linha 26) tem um valor aspetual

(A) genérico.

(B) pontual.

(C) iterativo.

(D) durativo.

7. No último parágrafo, são utilizados vários recursos estilísticos, entre os quais

(A) a sinestesia e a anáfora.

(B) a ironia e a sinestesia.

(C) a anáfora e a hipérbole.

(D) a hipérbole e a ironia.

8. Identifique a função sintática desempenhada pela expressão «o rio Saône» (linha 14).

9. Indique o valor da oração subordinada adjetiva relativa presente na linha 16.

10. Classifique a oração introduzida por «em que» (linha 32).

 

Chave de correção:

1. (B); 2. (C); 3. (B); 4. (A); 5. (D); 6. (D); 7. (C).

8. Sujeito.

9. (Valor) explicativo.

Nota: Além da resposta (valor) explicativo, admitem-se as respostas em que:

– se classifica a oração como explicativa;

– se refere, claramente, a existência de uma explicação;

– se substitui o termo explicativo por apositivo ou não restritivo.)

10. (Oração) subordinada (adjetiva) relativa (restritiva)

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. República Portuguesa-Educação/IAVE- Instituto de Avaliação Educacional, 2016, 2.ª Fase (versão 1)

     

Salvador Dali, "A Desintegração da Persistência da Memória" (1952-1954)
Salvador Dali, A Desintegração da Persistência da Memória (1952-1954)


 


CARREIRO, José. “O tempo e a paciência - crónica de José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-tempo-e-paciencia-cronica-de-jose.html


quinta-feira, 20 de abril de 2023

A cidade - crónica de José Saramago

 

A cidade

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. Se cometera algum crime, se pagava culpas de antepassados, ou se apenas se retirara por indiferença ou vergonha – não se sabe. Talvez um pouco de tudo isto, tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência. Vivia o homem fora dos muros da cidade, e dessa segregação deliberada ou imposta acabou por fazer um pequeno título de glória. Mas não podia evitar (isso não podia) que nos olhos lhe pairasse a névoa melancólica que envolve todo o ser desterrado.

Algumas vezes tentou entrar. Fê-lo não por um desejo irreprimível, nem sequer por cansaço da situação, mas por mero instinto de mudança ou desconforto inconsciente. Escolheu sempre as portas erradas, se portas havia. E se lhe aconteceu julgar que entrara na cidade, talvez sim, mas era como se a par da cidade real houvesse imagens dela, inconsistentes como a sombra que nos olhos se tornava mais e mais densa. E quando essas imagens se desvaneciam, como o nevoeiro que das águas se desprende ao toque luminoso do sol, era o deserto que o rodeava, e ao longe, brancos e altos, com árvores plantadas nas torres e jardins suspensos nas varandas, os muros da cidade brilhavam outra vez inacessíveis.

De dentro vinham rumores de festa. Assim lho dizia, mais do que os sentidos, a imaginação. Rumores de vida seriam, pelo menos. Não a morte solitária que é a contemplação obstinada da própria sombra. Não o desespero surdo da palavra definitiva que se escapa no momento em que seria, melhor que uma palavra, uma chave. E então o homem rodeava as longas muralhas, tateando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.

Porque o homem acreditava na predestinação. Estar fora da cidade (se disso tinha real consciência) era para ele uma situação acidental e provisória. Um dia, no dia exato, nem antes, nem depois, entraria na cidade. Melhor dizendo: entraria em qualquer parte, que a isto se resumia o seu esperar. Que a névoa da melancolia se tornasse noite, seria um mal necessário, mas também provisório, porque o dia predestinado traria uma explicação. Ou nem isso, sequer. Um fim, um simples fim. Uma abdicação já serviria.

O homem não sabia que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da ação em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.

Veio a batalha. Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram nela. Combateram a favor e contra, algumas vezes uns contra os outros. O homem que lutava para viver dentro dos muros da cidade cruzou espada e palavras com os deuses que estavam do seu lado. Feriu e foi ferido. E a luta durou longos e longos dias, semanas, meses, sem tréguas nem repouso, ora junto às muralhas, ora tão longe delas que nem a cidade se via, nem se sabia bem já que prémio estaria no fim do combate. Foi outra forma de desespero.

Até que um dia o terreno da luta ficou livre e desimpedido, como um estuário onde as águas descansam. Sangrando, o homem e o deus que lhe ficara olharam de frente as portas, abertas de par em par. Havia um grande silêncio na cidade. Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus. Entraram – e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.

José Saramago, Deste mundo e do outro
Porto Editora, 2018. Recurso disponível em: https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=17681323

 

Deste Mundo e do Outro reúne, em 1971, através da Editorial Arcádia, 61 crónicas que haviam sido publicadas entre 1968 e 1969 no jornal A Capital.

Nos anos 90, José Saramago, na conferência intitulada “A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal”, afirma: “Vários pontos, nessas crónicas, poderão ser retidos se se quiser caracterizar, no seu autor, tanto uma forma de escrever como um modo de sentir: em primeiro lugar, certa coincidência de atitude entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido); em segundo lugar, a prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no escritor um treino dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia expressivas; em terceiro lugar, o hábito de colocar em conjunção de interesses a dinâmica do tempo que se vive, a sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão.”

Ler mais em: https://www.josesaramago.org/conferencia/a-cronica-como-aprendizagem-uma-experiencia-pessoal/

 



Do livro Deste Mundo e do Outro, selecionámos a primeira crónica (possivelmente na esperança de ter sido esta a 1.ª crónica escrita pelo autor, mas sem dados que nos permitam tal afirmação). “A cidade”, é o seu nome. Uma qualquer cidade, uma crónica que começa como uma história para crianças, com “Era uma vez…”, levando-nos pois, por ora, para um universo ficcional. Esta cidade sem nome (para já), é rodeada por muros e, fora deles, vive um homem. Não se sabe porquê, adiantando o autor algumas hipóteses e admitindo, desde logo, que “tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência.” Uma primeira lição, um primeiro alerta para uma ética que paira sobre os que vivem dentro dos muros da cidade e que lhes impede uma visão clara. Este homem, que é o protagonista da história, não consegue, ele próprio, discernir acerca do que é real ou não, tantas são as imagens ensombradas que se adensam ao seu redor sempre que tenta entrar na cidade/no real, afinal tão longe do seu alcance, tão longe do deserto em que se encontra, tão inacessível. Este homem imagina uma cidade em festa, uma cidade plena de vida e vai “tacteando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.” Ele acredita estar predestinado a entrar, “Um dia, no dia exacto, nem antes, nem depois….”, como acredita que, nesse dia, lhe chegará a explicação de tudo. Mas o homem não sabe

…que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor. (sublinhado nosso).

Segundo alerta do autor: o primeiro combate do homem deve ser consigo próprio, de nada lhe adiantando querer forçar uma batalha, querer entrar num real que lhe é exterior, quando não se empenhou ainda o suficiente na acção que é o conhecer-se a si mesmo. Está o autor a dirigir-se ao leitor ou a si próprio? Cremos que a ambos. A advertência apela, sobretudo, ao cuidado a ter com “as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores)”, ou seja, cuidado com o que nos é dado como “natural” e verdadeiro.

Depois de uma batalha em que “Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram…”, as portas estão, finalmente, “abertas de par em par” e paira “um grande silêncio na cidade.” Homem e deus entram na cidade, “e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.”

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.

Assim termina a crónica. “Cidade de José…”, cidade de José Saramago, dizemos nós, a cidade na qual o autor entra após uma batalha consigo próprio, a batalha do conhecimento interior, a batalha a que incita os outros homens, se assim quiserem derrubar os muros que não lhes deixam ver dentro de si. Numa palavra: a cidade da consciência.

Sobre as crónicas de José Saramago, ler mais em: Crónica: Literatura de Compromisso ou a Urgência da Palavra, Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011

 

 


CARREIRO, José. “A cidade - crónica de José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 20-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/a-cidade-cronica-de-jose-saramago.html