Os
pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1.ª ed., 1950,
Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália
Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de
José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
Intertextualidade
O poema “Praia”, de Sophia
Andresen, estabelece um diálogo intertextual com os poemas “Horizonte” e “D.Dinis”, de Fernando Pessoa, ambos presentes na Mensagem.
D.
DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio1, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho2 obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
9-2-1934 Mensagem.
Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
HORIZONTE
Ó
mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração3,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério4
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria5 do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos6 merecidos da Verdade7.
s.d. Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
(Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).- 58. Disponível
em: http://arquivopessoa.net/textos/2380
____________
Notas: 1 Arroio:
regato. 2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas. 3 Cerração: nevoeiro denso; escuridão; trevas. 4 Sidério:
sidéreo; sideral, astral, celeste. 5 “aquela fria / luz que precede
a madrugada, / E é já o ir a haver o dia / Na antemanhã, confuso nada” (in
“Viriato”) – fronteira entre o desconhecido e o conhecido. 6 Beijos
– recompensa. 7Verdade – conhecimento.
Para
identificar as imagens no poema “Praia” de Sophia de Mello Breyner Andresen que
parecem ter sido inspiradas pelos poemas “Horizonte” e “D. Dinis” de Fernando
Pessoa, é importante analisar os temas e as metáforas partilhadas entre os
textos.
A "antiquíssima nostalgia de ser mastro" (v.
11) que baloiça nos pinheiros sugere uma ligação com o passado marítimo de
Portugal, evocando a era dos Descobrimentos e a exploração dos mares. Esta
linha de pensamento liga-se com os poemas “D. Dinis” e “Horizonte”.
No poema “D. Dinis”, Pessoa explora a ligação entre a
terra e o mar, simbolizada pelos pinhais que "ondulam sem se poder
ver". A imagem dos pinhais, presente em ambos os poemas, serve como um
ponto de conexão. Em “Praia”, os pinheiros baloiçam com nostalgia, enquanto em
“D. Dinis”, eles são a voz da terra ansiando pelo mar. Ambos os textos utilizam
a natureza para meditar sobre a história e a identidade nacional, evocando um
sentimento de saudade em “Praia” e o desejo de exploração em “D. Dinis”.
“Horizonte” também reflete um desejo de descoberta e
transcendência. A ideia de um mar mítico e ancestral presente em
ambos os poemas sugere uma intertextualidade. Pessoa escreve sobre o mar como um espaço anterior a nós, cheio de medos e
mistérios que, uma vez desvendados, revelam uma beleza sublime. A descrição da linha
severa da costa que se revela em árvores, aves e flores quando a nau se
aproxima reflete um processo de revelação e desvendamento. Os
pássaros de Sophia, apesar de terem uma conotação mais trágica, ainda se
relacionam com a descoberta e a revelação, semelhante ao desembarque descrito
por Pessoa. As ondas de Sophia (vv. 9-10) quebram contra a luz, criando uma
imagem forte e arquitetónica, enquanto Pessoa descreve a revelação da paisagem
à medida que a nau se aproxima (vv. 8-10). Em ambos os casos, há uma
transformação visual da natureza com a proximidade e a luz.
Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.
Aguinaldo
Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de
Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de
1958
Análise literária do poema
O poema
"Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento
Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a
realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa
limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o
sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade
do espírito e da imaginação.
O poema
inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho
irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a
realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de
transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do
poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e
alcançar lugares além da sua prisão insular.
O sonho
do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando
pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos
vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”),
encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um
dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos
veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de
que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético
podem viajar e deixar uma marca.
A
impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição
socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas
circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as
oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a
liberdade imaginativa.
O poema
constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:
Presente/Futuro:
O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto
o futuro é sugerido pelo sonho que irá.
Realidade/Fantasia:
A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante,
capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.
Pobreza/Riqueza:
A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada
pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.
Prisão/Liberdade:
A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.
Infelicidade/Felicidade:
A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e
idealizada nos sonhos que se movem.
Estes
contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na
repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que
a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado
e a libertação futura.
O título
"Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a
expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração
de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a
voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem
sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este
sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida
por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas
pelo contexto colonial e geográfico.
Geração do Suplemento Cultural
A Geração
do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito
identificada com uma verdadeira postura de revolta.
O Suplemento
Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas
pela censura colonial da época.
A
situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à
volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de
tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana
Desta
forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou,
definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações
anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração
da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da
Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como
homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que
aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O
"eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um
"eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão
cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.
Do ponto
de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura
de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de
independência.
Fala do
homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares,
mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar
vida ao elemento "terra".
Os seus
textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a
revelar claramente as realidades.
A sua
principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua
terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às
últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do
enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior
intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente
combativa da problemática do ilhéu.
Consciencializar
o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico
geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do
Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Miguel Torga, Diário I, Coimbra, 1941. Poesia Completa, Círculo de Leitores, 2002
Comentário literário
Miguel
Torga, conhecido pela sua poesia ligada à terra, oferece-nos em "Bucólica"
uma reflexão sobre a essência da vida e os seus detalhes aparentemente
insignificantes. O poema, publicado no Diário I em 1941, convida-nos a
valorizar os pequenos momentos e a encontrar beleza nas coisas simples.
Desde o
início, o sujeito poético afirma que "A vida é feita de nadas" (v.
1), um verso que contém a filosofia subjacente ao poema. Os "nadas"
aos quais se refere são descritos ao longo das estrofes: as "grandes
serras paradas", as "searas onduladas pelo vento", as
"casas de moradia caídas", a "poeira", a "sombra de
uma figueira", e o momento sublime de "ver esta maravilha: / Meu pai
a erguer uma videira" (vv. 12-13). Estes elementos, aparentemente simples
e despretensiosos, ganham vida através da poesia de Torga, que os eleva à
condição de símbolos poéticos.
Os
"sinais/ De ninhos que outrora havia/ Nos beirais" (vv. 7-9) assumem
uma importância particular dentro do poema. Representam não apenas um passado
físico, mas também um passado emocional, relembrando espaços habitados e
memórias que persistem no presente do sujeito poético.
O clímax
emocional do poema surge no verso 13, onde o eu poético expressa admiração ao
observar o pai a cuidar da videira. Este momento é carregado de ternura e
reverência, destacando a figura paterna não apenas como um agricultor, mas como
um ser profundamente conectado à terra e à vida que ela sustenta.
A figura
de estilo presente no último verso, uma comparação entre o ato do pai e a ação
maternal de trançar o cabelo de uma filha, revela a habilidade de Torga em unir
o natural com o humano, sublinhando a relação íntima entre o homem e a
natureza. Esta comparação não só enriquece o poema com um sentido de
familiaridade e afeto, mas também ressalta a importância do trabalho árduo e do
amor no ciclo da vida.
Proposta
de escrita
Num texto
bem estruturado, reflete sobre os ‘nadas’ de que a tua vida é feita, ou seja,
os pequenos detalhes aparentemente insignificantes que carregam um significado profundo.
Poderá
também gostar de:
“A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões
para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha
de Poesia, 09-08-2013
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra.
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas;
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão, podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!
Cecília
Meireles (1901-1964), “Romance 53 ou Das Palavras Aéreas” in Romanceiro da Inconfidência, Parte 3. Rio de Janeiro: Livros
de Portugal, 1953
Análise dos principais aspetos do poema
O poema
“Romance LIII ou das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, faz parte do Romanceiro
da Inconfidência, uma coleção de poemas inspirada na Conjuração Mineira,
uma rebelião fracassada contra o domínio colonial português no Brasil no século
XVIII.
No poema é explorada a dualidade das palavras como instrumentos de criação e destruição, de
liberdade e opressão, refletindo-se sobre o seu impacto profundo e muitas vezes
imprevisível na vida e história humanas.
O sujeito
poético começa por enfatizar a natureza fugaz das palavras. Elas são comparadas
ao vento que não retorna, indicando a sua transitoriedade e a rapidez com que
tudo pode ser formado e transformado por elas.
Apesar da
sua fugacidade, as palavras possuem uma potência estranha. Elas são capazes de
iniciar e direcionar o sentido da vida, cristalizar emoções como o amor,
incitar sonhos e audácias, mas também disseminar calúnias e causar derrotas.
As
palavras são descritas como frágeis como o vidro, mas poderosas como o aço.
Elas têm o poder de mover reis, impérios e povos, moldando o curso da história
e influenciando destinos.
O poema
aborda também a responsabilidade que vem com o uso das palavras. Elas podem
acusar, vigiar, prender, julgar e condenar. Podem ser usadas como instrumentos
de opressão ou libertação, dependendo de como são utilizadas.
Há um
contraste entre a leveza aparente das palavras, como "tênue seda", e a
sua capacidade de serem instrumentos de poder e justiça. Elas são tanto
símbolos de liberdade quanto de opressão, dependendo do contexto e da intenção
de quem as usa.
O poema termina
com uma reflexão sobre a ironia das palavras. Onde poderia haver perdão, elas
se tornam instrumentos de punição e sofrimento, exemplificado na imagem final
de "um homem que se enforca", mostrando como palavras mal empregadas
podem ter consequências trágicas e irreversíveis.
Exploração
de um fragmento do poema
AI, PALAVRAS!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Cecília Meireles, Obra
Poética
O título
da poesia está plenamente justificado nos três versos em que o vocativo comandado
pela interjeição aparece seis vezes e isto na 1.ª parte da composição, antes da
autora se espraiar em imagens significantes deste extraordinário e indefinível
significado que ela tenta sugerir, desde que, na 1.ª estrofe, diz «sois de
vento» , tentando já objetivar o referido significado numa imagem - o vento -
que, como as palavras, não se pode agarrar, o que aponta já para a incontável e
variada gama de signos que podem ser transmitidos pelas palavras.
Em toda a
poesia é evidente um misto de censura, acusação, elogio e angústia em que a
autora envolve - as palavras - intensificando esses sentimentos com o
emprego da referida interjeição.
O ritmo
ligeiro da poesia em verso de redondilha maior, sem rima consoante, e apenas, aqui
e além, uma certa musicalidade dada pela rima toante em o aberto - vossa,
retorna, transforma, nova, vossa,
porta, rosa, derrota, elabora,
retorta, poderosa, rodam - que
aparece alternadamente ao longo da poesia, está ao serviço da ideia que a
poetisa desenvolve desde o 3.° verso - a palavra é incorpórea, não se apanha,
não se vê, é efémera, móvel, na sua pronunciação, leve como o vento. No
entanto, à medida que o pensamento se desentranha, a poetisa vai concretizando
a afirmação do 2.° verso do 1.º dístico - «que estranha potência a vossa!» - e,
daí, a sucessão de valores denotativos e conotativos contidos nas - palavras.
A
pontuação colabora com a linguagem para traduzir o pensamento. Abundam as frases
exclamativas e reticentes que apontam para a função emotiva da linguagem ao
serviço desta mensagem poética que está, de certo modo, empenhada numa subtil denúncia
- o que está sugerido principalmente no último conjunto de versos.
«A Liberdade das almas.
ai! com letras se elabora .. »
Predomina
no texto o tempo verbal presente, o qual aponta para a intemporalidade das
afirmações da autora: foi, é e será sempre «estranha a potência das palavras».
A poetisa
debruça-se sobre este sugestivo signo - a palavra - e vai desdobrar em sucessivos
versos aquilo que ela pensa, em linguagem direta. Daí, os vocativos, os verbos na
2.ª pessoa e o possessivo vossa também na 2.ª pessoa.
A
obsessão com que se debruça sobre o tema é marcada:
- pelo
paralelismo: sois de vento, ides no vento
- pelas
repetições: há um verso que se repete três vezes - «Ai, palavras, ai,
palavras,»; o 1.º dístico repete-se no começo da 3.ª estrofe; o 4.º verso da 1.ª
estrofe também se repete integralmente no dístico que constitui a 2.ª estrofe
um tanto desgarrada, só formada de dois versos, mas fortemente incisiva no
contexto. Estas repetições transmitem à poesia um acentuado paralelismo
ideológico e uma cadência rítmica sugestivos do assombro que a poetisa sente e
deixa transparecer.
Vejamos
como justifica Cecília Meireles a significativa afirmação que faz no dístico exclamativo
com que inicia a poesia.
Note-se
que a poetisa diz: «Que estranha potência, a vossa!» e nesta expressão o significante
potência já, por si, mais quantitativo e ressonante que - poder -
vem ampliado pela expressão quantitativa - que - e qualificado pelo adjetivo
- estranha - que também aponta para uma indefinição, alargando o seu
sentido; e, de certo modo, prepara o qualificante do 4.° verso - «Sois de
vento». No mesmo verso, transpõe o possessivo - vossa - para o fim, o
que, numa frase elíptica do predicado, e alargada pela anástrofe - pois a ordem
direta seria - «Que estranha é a vossa potência!» transpõe o pensamento mais
para o indefinido e alonga-o mais do que se o possessivo acompanhasse o
substantivo.
«Sois de
vento, ides no vento» - Primeira definição que contrasta com a afirmação do 2.°
verso e que sugere a vaga, rápida, duração da palavra, quando
emitida oralmente, embora o seu efeito seja violento, forte, potente,
e tanto, que condiciona a vida do mundo. Por meio dela «tudo se forma e
transforma».
Logo
nesta estrofe, pois, paradoxalmente, diz das palavras - «sois de vento, ides no
vento». Note-se que neste verso, nas duas frases marcadas pelo paralelismo já
sugerido, se aponta para a fluidez da palavra, o que é reforçado pela repetição
do signo – vento – em especial à maneira de leixa-pren do 4.º para o 5.º verso
- ides no vento / no vento que não retorna. E, no entanto, apesar
da fugacidade da sua existência, é à custa dela, palavra, já se disse, que
«tudo se forma e transforma». Note-se, nestes dois últimos versos, o contraste entre
rápido e tudo, o jogo etimológico – forma e transforma
– e a rima interna, a fazer incisão sobre o poder da palavra e, de raspão, a
apontar, mesmo aqui, para o tema da mudança e para a irreversibilidade - no
vento que não retorna. O tempo passa, as palavras ficam, mas ajustadas a
novas ideias. O que foi denotação pode vir a ser conotação, mas fica.
No
dístico que constitui a 2.ª estrofe, a autora leva-nos a constatar mais um
paradoxo que é vincado pelo emprego de um verbo de movimento - ides - em
antítese com um verbo de estabilidade - quedais. Afinal, a palavra é
frágil - «Sois de vento, ides no vento -» (verba volant - as
palavras voam, diziam os latinos) e (contudo) «quedais com sorte nova!» Vai,
mesmo, mais longe e o ponto de exclamação traduz o espanto experimentado: não
só quedam, como quedam com sorte nova - isto significa a possibilidade que a
mesma palavra tem de se aplicar a sentidos vários e renovados, e de passar de
elemento caduco a elemento renovado, sempre rico de seiva que queda teimosamente.
Alarga, pois, neste dístico, o pensamento que começou a desdobrar-se com o
mesmo verso na 1.ª estrofe.
Na 3.ª
estrofe só aparece um adjetivo - estranha - num verso de um dístico que
se repete como um refrão, obsessivamente. A justificação da afirmação feita no
1.° dístico é transmitida, aqui, por substantivos predominantemente abstratos -
amor, sonho, audácia, calúnia, fúria, derrota... e outros não expressos,
mas que as reticências deixam supor. Note-se que, nesta série de definições
sugestivas de palavras, umas apontam para o seu aspeto positivo - amor,
sonho, audácia; outras para o negativo – calúnia, fúria, derrota – os
dois primeiros com a tónica em u e terminados em ditongo decrescente
fazem rima e anotam o sinal negativo que transmitem, e marcam uma certa
gradação crescente pois a calúnia leva à fúria e sucessivamente à
derrota onde a tónica em o aberta aponta para o nada, a
destruição. Serve-se, assim, de várias conotações mais restritivas que
desdobram a 1.ª afirmação de sentido genérico, coisificando a palavra
quando a faz - porta de saída para a expressão do pensamento. Também,
nesta estrofe, coisifica o estranho poder das palavras com uma imagem
sinestésica - gustativa (mel) e olfativa (perfume), a exprimir o amor
que sugestivamente cristaliza na objetivação expressiva da metáfora - em
vossa rosa. Através desta sugestiva e poética perífrase, traduz
simplesmente a força expressiva do sentimento que a palavra amor
significa numa gama variada de sensações. Note-se a sugestão dada pelo verbo cristalizar
- o qual polariza a fina essência do sentimento amoroso.
Nesta
mesma estrofe merecem um comentário especial os dois últimos versos «Sois o
sonho e sois o audácia». É, aparentemente, um verso mais curto, a sugerir a
rapidez do sonho e a violência da audácia, é um verso copulado, marcado pelo
paralelismo em que o 2.º membro marca já a transição para a série de sugestões
expressivas do último verso, as quais se desbobinam em frase assindética,
dissociando os vários momentos negativos do emprego das palavras, numa
gradação crescente, como já sugerimos.
É, porém,
na última estrofe que o pensamento da poetisa se vai abrir definitivamente a
transmitir a mensagem poética que vem sendo anunciada desde o princípio. A
poesia é uma chamada de atenção para a estranha potência das palavras,
não empenhada, fundamentalmente, como Manuel Alegre no soneto intitulado - As
Palavras - que é poesia de combate, de denúncia, ou como Eugénio de Andrade
que, com a poesia, igualmente intitulada, se situa no cruzamento dos dois, numa
poesia carregada de conotação e, por isso, menos objetiva na sua mensagem, mais
próxima da pintura abstrata e mais pessoal. Também Ruy Belo em «Homens de
palavra(s)» e Egito Gonçalves no poema «Com palavras» põem à nossa
consideração a referida estranha potência das palavras que de cada um de
nós faz um dicionário (mais ou menos volumoso). como diz o prosador, ou um
arquivo, como sugere o segundo. O mesmo tema inspira, pois, cinco artistas que,
embora se toquem em alguns pontos, têm, contudo, uma marca própria.
Cecília
Meireles oferece ao nosso pensamento uma poesia, fruto de uma análise marcadamente
objetiva, alertando-nos, sem nos obrigar a esforços para descobrir o que ela não
teve interesse em esconder.
Por isso
a 4.ª estrofe é a cúpula e sugestivamente nela predomina a imagem concreta para
provar essa estranha potência das palavras. Novamente o contraste entre:
- o
valor positivo delas - pois que, com letras - com palavras - se dá
ou se tira a liberdade (note-se o seu quê de amargura que traduz a
interjeição ai! e a insegurança sugerida pejas reticências);
- e o
valor negativo - são fina retorta onde se contêm os venenos humanos. Na química,
é a retorta elemento de trabalho para o bem e para o mal. Pois a autora conota,
com este objeto. o poder destruidor, negativo das palavras. O seu aspeto
negativo é significado concretamente e conotativamente por uma retorta onde se
fabricam os venenos humanos - alguns dos quais já foram sugeridos no
último verso da estrofe anterior. E, novamente, a poetisa nos leva a constatar
essa estranha potência, nas duas comparações concretizantes e paradoxais
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
a primeira superlativada pela
repetição do adjetivo frágil onde a comparação é feita com o vidro,
estabelecendo o mesmo grau de fragilidade; a segunda, determinada pelo adjetivo
poderosa, faz-se com o aço (e aço, aqui, pode conotar, por sinédoque, armas)
e marca a superioridade das palavras em relação às armas. A exclamação que
fecha estes quatro versos vinca bem o assombro que tal paradoxo determina.
Assinale-se,
nestes dois versos comparativos, uma espécie de quiasmo: - os adjetivos estão
nos extremos e os substantivos no meio, obrigando o 2.º verso a uma anástrofe
um tanto violenta. Colocando os adjetivos em lugar de relevo, a nosso ver,
torna mais expressivo o paradoxo.
A poesia
termina com dois versos que polarizam o pensamento que, gradualmente, se foi
desentranhando - as palavras são o grande motor do mundo -, pensamento que é transmitido
num crescendo de valores que o penúltimo verso sugere: os Reis são superados pelos
impérios e tudo pelos tempos. Veja-se a ligação assindética destes quatro
elementos que, dissociados. marcam melhor os quatro valores.
Estes
dois versos são reticentes pois que o que foi enunciado no penúltimo verso não
abarca toda a incalculável missão das palavras. Muito mais situações poderiam
ser equacionadas, e, mesmo assim, nunca cobririam toda a estranha potência das
palavras. Até o verbo rodar indica essa gravitação do mundo rotativamente a
partir do centro vital que são as palavras.
Poucos
são os adjetivos no texto e os poucos que há são abstratizantes.
Predominam
os substantivos, marcadamente abstratos, ao serviço da mensagem poética que
roda em torno de uma definição, o que solicita, naturalmente, o predomínio do
substantivo.
Dois sons
têm um certo relevo na poesia: a sibilante e a labiovelar (f, v). Parece-nos que
eles poderão ajudar a sugerir a mobilidade e a fluidez das palavras e também a
sua potência, (f. v.) - o que é principalmente sensível nas duas primeiras
estrofes.
Cecília
Meireles foi, pois, muito feliz nesta poesia, quer pelo rico conteúdo
ideológico que encerra, quer pela leveza e naturalidade com que conseguiu
sugeri-lo.
Lilás
Carriço, “Exploração do poema – Ai, Palavras!” in Literatura Prática
11.º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4.ª ed.) (1.ª ed.: 1977)
Havia
uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Cecília Meireles,
Ou Isto ou Aquilo, 1964
Questionário
Classifica as afirmações em falsas (F) ou verdadeiras (V). Corrige as falsas.
1. O poema "A Língua do Nhem" é predominantemente descritivo.
2. As primeiras estrofes do poema apresentam a solidão como um problema sem solução.
3. A partir da terceira estrofe, os animais começam a imitar a velhinha, modificando o cenário de solidão.
4. A velhinha permanece triste mesmo com a companhia dos animais.
5. O poema é composto por seis quadras com versos de sete sílabas métricas.
6. A onomatopeia "nhem" é repetida seis vezes em várias estrofes do poema.
7. O uso de diminutivos como “gatinho” no poema expressa afetividade e intimidade.
8. Os artigos definidos e os diminutivos no poema indicam a proximidade e importância da relação entre a velhinha e o gato.
9. A onomatopeia “nhem” no poema representa a fala dos jovens.
10. Cecília Meireles utiliza os animais no poema para destacar a falta de comunicação e o descaso com os idosos.
11. Termos como “aborrecida”, “sozinha” e “ninguém” no poema reforçam a temática da solidão.
12. O poema não utiliza a personificação como recurso estilístico.
13. A repetição de sons e rimas no poema não tem importância estilística.
14. O poema apresenta influências da literatura oral.
15. O final do poema, com a velhinha contente, se assemelha ao "final feliz" dos contos de fada.
16. "A Língua do Nhem" é um poema que não se relaciona com o público juvenil.
Correção do questionário
1. Falso. O poema é narrativo, embora o título sugira uma ênfase descritiva.
2. Verdadeiro.
3. Verdadeiro.
4. Falso. A velhinha fica contente porque os animais a acompanham no "nhem-nhem-nhem".
5. Falso. O poema é composto por oito quadras com versos de seis sílabas métricas.
6. Verdadeiro.
7. Verdadeiro.
8. Verdadeiro.
9. Falso. “Nhem” representa a fala dos idosos e a solidão resultante da falta de interação.
10. Verdadeiro.
11. Verdadeiro.
12. Falso. A personificação é um dos expoentes do texto poético, mudando a língua dos animais.
13. Falso. A repetição é um recurso estilístico utilizado para criar ritmo e reforçar o tema.
14. Verdadeiro.
15. Verdadeiro.
16. Falso. A temática e a forma do poema capturam o interesse do público jovem, ligando-se a tradições populares.
Texto de apoio - análise
literária do poema “A língua do nhem”
O poema intitulado “A língua do
nhem” versa sobre a solidão e, simultaneamente, sobre a necessidade inerente ao
ser humano de relacionar-se com outro ser vivo.
Trata-se de um poema narrativo,
embora o título sugira que a ênfase se dará no plano descritivo. Portador de
uma estrutura do tipo começo-meio-fim, a história apresenta uma sucessão de
momentos encadeados entre si, deixando-nos informados do passado, do presente e
do futuro. E, segundo Tavares (2005, p. 65), essa
é uma das estruturas mais elementares que aprendemos na infância, e é de acordo
com ela que interpretamos nossa vida e tudo que acontece à nossa volta.
A problemática da solidão é
apresentada nas duas primeiras estrofes, como se não houvesse solução.
Entretanto, na terceira estrofe, o quadro começa a se modificar. O gato começa
a imitar a velhinha e os demais animais da história fazem o mesmo.
Embora a rotina se instale
novamente, minimizando, de certa forma, a solidão, a velhinha fica contente por
que todos os a acompanham no “nhem-nhem-nhem” (na última estrofe).
“A língua do nhem” se constitui de
oito quartetos constituídos por versos com seis sílabas métricas. O número de
sílabas, coincidentemente ou não, corresponde a seis vozes expressas em uma
linguagem onomatopaica “nhem” (reiterada também seis vezes) por todos os seres
animados no texto. A velhinha, o gato e os outros animais como cachorro, pato,
cabra e galinha interagem por meio do monossílabo “nhem” que finaliza quatro
estrofes, alternando com os oxítonos terminados em “ém” – “alguém”, “também”,
“além”, “ninguém”.
Essa seqüência dos animais talvez
represente uma gradação no tocante ao grau de aproximação existente entre o ser
humano e os bichos mencionados.
O uso dos artigos definidos a em
“a boa da velhinha” (segundo verso da segunda estrofe) e o em “ O gato que dormia”
(primeiro verso da terceira estrofe) e “ o gatinho a acompanhava” (terceiro
verso da quarta estrofe) denotam o facto de que a velhinha e o gato pareciam se
mais próximos ou então considerados os sujeitos mais importantes na comunicação
que se estabeleceu.
O diminutivo em “gatinho” expressa
a afetividade e a intimidade que se desenvolveu na relação velhinha-gatinho.
Acrescenta-se o respeito às pessoas de maior idade se expressa no uso do
diminutivo “velhinha” na primeira, segunda, terceira e sétima estrofes.
O “nhem”, onomatopéia bastante
utilizada pelos idosos, resultante, biologicamente explicitando, de uma espécie
de destruição progressiva e contínua dos neurônios, compõe o título como uma
constatação de uma seqüela dos vários anos vividos e da ausência de maior interação
humana.
Impressiona-nos a maneira em que
Cecília desnuda essa realidade dessa fase da vida, a gravada pelo desuso da
fala ou por não ter com quem falar, ou por ter sua fala ignorada ou reprimida
pelos mais jovens.
A autora envolve os animais (os
bichos) na “comunicação” com a velhinha, na tentativa, talvez, de minimizar o
estado de aborrecimento desta e de, ao mesmo tempo, protestar contra o descaso
ao idoso, que se inicia no âmbito familiar.
A solidão em que se encontra a
velhinha vai sendo descrita através da relação paradigmática marcada pela
associação semântica entre a temática solidão e termos presentes no poema que
denotam esse estado. Vocábulos como “aborrecida” (primeira estrofe), “resmungando”
e “sozinha” (segunda estrofe), “canto” (terceira estrofe), “resmungava” (quarta
estrofe), “padecia” e “ninguém” (sétima estrofe).
Os termos em destaque associados à
situação de solidão são representados por noções de estado
como em “aborrecida”, “sozinha”,
de ação como
em de companhia,
no caso de “ninguém”.
Estilisticamente, a personificação
é um dos expoentes desse texto poético, chegando a mudar a língua dos animais.
Como se tivessem se divertindo com a nova língua – “a do nhem” – o gato, o
cachorro, o pato, a cabra e a galinha passaram “noite e dia/naquela melodia/nhem,
nhem, nhem, nhem, nhem, nhem”.
Excetuando o gato, os outros
bichos vieram “de cá, de lá, de além” (último verso da quinta estrofe), do
mesmo modo que vêm nossos costumes, tradições, comportamentos, por meio,
também, da literatura oral a qual tem como significativo elemento a memória,
que vai sendo preservada pelo recontar o que ouviu – agregar
histórias de outros – considerada uma das necessidades
do ser humano por Araújo (2005).
Para evidenciar a relevância da
memória, Tavares (2005, p.106) traça um paralelo entre o mundo da cultura
escrita e o mundo da cultura oral, ao qual vai ao encontro da permanência da
Literatura Oral. Cecília, em Problemas
da literatura infantil, afirma: (...) é a Literatura
Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o
seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais
carecidos de letras.
Se visualizando de fora se vê
“mesmice”, reprodução, repetição, de dentro (como se fôssemos um deles) parecia
haver prazer naquele comportamento reiterado.
A repetição é um outro recurso
estilístico utilizado por Cecília. Essa, por sua vez, neste contexto se dá no
plano sonoro e vocabular. Os sons das rimas aborrecida/vida
(primeira estrofe), velhinha/sozinha
(segunda estrofe), cozinha/velhinha
(terceira estrofe), resmungava/acompanhava
(quarta estrofe), vizinha/galinha
(quinta estrofe), dia/melodia
(sexta estrofe), padecia/companhia
(sétima estrofe), abria/respondia
(oitava estrofe) e em estrofes, a
partir de palavras que estão na mesma estrofe e em estrofes diferentes (último verso
de todas as estrofes) “alguém / nhem / também / nhem / além / nhem / ninguém / nhem”
somado ao termo “nhem” repetido seis vezes consecutivas em quatro dos oito
versos, de forma alternada.
O tempo passado típico das narrativas,
tendo o imperfeito do indicativo do verbo “haver”
no início do poema indica uma situação que se sustenta há certo tempo e nos
remete a “Era uma vez...”, “Há muito tempo atrás...” Esse brincar com outros
tipos de texto promove o diálogo entre os tempos e conseqüentemente com o
sócio-cultural. A brincadeira com a linguagem associada ao se evidencia em
outros textos Especificamente, é possível estabelecer uma relação entre “A
língua do nhem” e a história “Os músicos de Bremen” e a canção “ A velha debaixo
da cama” do cancioneiro popular.
Os músicos de Bremen, do original
The Bremen Town – Musicians, dos Irmãos Grim, Jacob e Wilhelm, trata da
desvalorização de um asno, quando este chega à velhice. Seu dono o destrata e o
animal resolve abandonar a casa, em busca de dignidade, por meio da sua liberdade.
Talvez o nome dado pelos autores a
esse clássico da literatura infantil “Bremen” seja atribuído à Cidade
Hanseática Livre de Bremen, cidade alemã, localizada após San Marino, sendo a
mais antiga cidade-república do mundo. Conquistou sua emancipação política em 1646,
por ter demonstrado já em 1405 sua pretensão de autonomia.
Assim como os animais chegaram à
casa da “velhinha do nhem”, com exceção do gato por que já vivia com ela,
talvez por não forem respeitados e amados em suas próprias casas, os animais (o
asno, o cão, o gato e o galo) também buscaram um ao outro, como forma de combaterem
o desrespeito, a ingratidão e a solidão.
O enredo dessa estória estrangeira
é semelhante ao poema nacional – “A língua do nhem” e que merece um estudo
comparativo mais aprofundado.
O final do poema, assemelhando-se
ao clássico “final feliz” dos contos de fada, só aparece depois de um certo
suspense na penúltima estrofe com o uso do conectivo com a idéia de consecução
“De modo que...”, iniciando a estrofe, põe em dúvida o desfecho do que está sendo
narrado poeticamente, como um tom de ameaça. Esse suspense é explicitado por Tavares
(2005, p.67) ao discorrer sobre poema narrativo.
O diálogo entre esses dois gêneros
literários – o conto e o poema – um europeu e o outro nacional serve para
ilustrar, talvez, a influência européia que Cecília Meireles recebeu, já
mencionada no Capítulo II deste texto.
“A Língua do Nhem” remete também
ao cancioneiro popular “A velha a fiar” – um dos maiores clássicos que retrata,
de forma simples e recreativa, o interminável ciclo vicioso no qual estamos
presos. Ele funciona bem como jogo de memória.
Segundo o blog de Juliana (www.
Marmota.org/blog/2005/07/01/1315), surgiu a primeira vez em 1964, em um curta
metragem dirigido pelo cineasta Humberto Mauro. No blog há menção de ter sido
veiculado no programa Rá-Tim-Bum (TV cultura) e no Programa Os Trapalhões, com
outra versão e intitulado “A velha debaixo da cama”.
Tais ligações a essas raízes foram
possíveis devido a memória e a oportunidade que tivemos de nos depararmos,
quando criança, dessas criações.
Esses dois veículos midiáticos,
portanto, já revelam a viabilidade de poemas com a temática e a forma de “A
Língua do Nhem” interessarem ao público juvenil.