Mensagem, de Fernando Pessoa
Primeira Parte – Brasão
II - Os Castelos
Sexto
D. DINIS
Na
noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
9-2-1934
Mensagem. Fernando
Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
____________
1 Arroio: regato.
2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas
Leitura orientada do poema “D. Dinis”, de Fernando Pessoa:
Camões consagrara a D. Dinis três estrofes
do canto III, em que pusera em relevo a sua faceta de povoador, de reconstrutor
de cidades e fortalezas, de fundador da universidade, esquecendo, curiosamente,
a sua faceta de poeta. (Amélia Pinto Pais, Para
compreender Fernando Pessoa, Porto, Areal Editores, 1999).
Nada do que foi o reinado sereno e de
consolidação nacional de D. Dinis merece referência na Mensagem.
Privilegia-se antes o seu gesto criador que, investido de intuição poética
(“instinto”), preparou as condições para as navegações.
Elementos
textuais que identificam D. Dinis: o Cantar de Amigo; o plantador de naus.
Caracterizado, portanto, como poeta e como lavrador.
Como
poeta, D. Dinis é o visionário de um futuro brilhante, isto é, do destino
mítico de Portugal: no silêncio da noite, ouve, na imaginação, o ruído dos
pinhais. Como lavrador, age impulsionado pelo futuro.
noite ↓ |
|
presente |
futuro |
plantador |
naus a haver |
rumor
dos pinhais |
trigo/de
Império |
Arroio |
Oceano |
fala
dos pinhais |
marulho
obscuro |
som presente |
mar futuro |
voz
da terra |
ânsia
do mar |
Cantar de Amigo ↑ gesto criador |
Tudo ainda é baixo, infante, nascituro,
tudo ainda não é: a noite ainda não é dia; os pinhais ainda não são naus; a
messe3 ainda não é imperial; o arroio ainda não é oceano; o marulho
ainda não é o som; a terra ainda não é o mar e, no entanto, em movimento
refluente4, tudo já foi: as naus já foram pinheiros; o oceano já foi
arroio; o mar já foi terra, porque em D. Dinis estão, de forma clarividente, o
antes e o depois. Esta visão transcendental da História apresenta-nos a figura
histórica como a potencial capaz de escutar a voz dos deuses.
A noite e o dia estão em D. Dinis. D.
Dinis, à noite, escreve e, no silêncio da noite, ouve o significado das acções
do dia futuro. (Mª Almira Soares, Para uma leitura de MENSAGEM de Fernando
Pessoa. Lisboa, Editorial Presença, 2000).
Há o apelo às forças do inconsciente, numa
recriação que privilegia o mito em detrimento do dado histórico concreto. A noite,
o ondular invisível dos pinhais, o «marulho obscuro» da sua fala,
a voz da terra são forças primeiras e impalpáveis de um passado que já
foi futuro no mar que se cumpriu e que pode voltar a sê-lo no Portugal
imperial a haver. (Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores,
2000, p. 33)
______________
3 seara madura; colheita; ceifa.
4 que reflui; que volta ao seu ponto
de origem; que corre para trás.
Questionário sobre o poema “D. Dinis”, de Fernando Pessoa:
1. O poema que
acaba de ler é dedicado a D. Dinis.
1.1. Que
elementos nos permitem identificar que o eu poético se refere a essa figura
histórica?
1.2. Explique a
utilização de cada um desses elementos caracterizadores.
2. Explicite o
valor simbólico dos seguintes elementos de valor profético: noite, pinheiro, trigo,
vento.
3.O poeta,
imbuído de espírito épico, reflete a
posteriori sobre a empresa dos Descobrimentos.
Identifique
e exemplifique duas figuras de estilo diferentes cujo significado remete para o
cumprimento desse destino.
4. No texto, D. Dinis é um herói voluntário ou involuntário? Justifique.
Adaptado do Exame Nacional do
Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de
29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português
B. Portugal, GAVE, 1996, 2.ª fase
Sugestão de correção:
1.1.
Elementos textuais que identificam D. Dinis: o Cantar de Amigo; o plantador de
naus.
1.2.
O primeiro elemento caracterizador (o Cantar de Amigo) reporta-se ao Rei
trovador/poeta que compôs Cantigas de Amigo e de Amor, na época trovadoresca.
Quanto ao segundo elemento, permite caracterizar o sujeito poético como
lavrador.
2. Explicitação do valor simbólico dos seguintes
elementos de valor profético:
NOITE: símbolo
da preparação do dia e da fermentação do futuro, a noite é o tempo da
purificação do intelecto. É o reino do inconsciente que, no sono e no sonho, se
liberta.
PINHEIRO – na
mitologia grega, o pinheiro surge como um símbolo da exaltação da força vital e
da glorificação da fecundidade. Para os japoneses é, tradicionalmente, um sinal
de bom augúrio e, na literatura, a sua presença evoca a espera.
TRIGO –
prenúncio de felicidade e de abundância.
VENTO («rumor
dos pinhais»; «fala dos pinhais»; «voz da terra») – na sua figuração positiva,
o vento é o sopro espiritual de origem celeste, um instrumento do poder divino.
É, como os anjos, um portador de mensagens: nos sonhos, prediz a mudança. É, em
suma, a presença silenciosa e invisível de Deus.
3. O poeta, imbuído de espírito épico, reflete a
posteriori sobre a empresa dos Descobrimentos.
Identificação e exemplificação de
duas figuras de estilo diferentes cujo significado remete para o cumprimento da
empresa expansionista:
ANIMISMO: «E a
fala dos pinhais»;
METÁFORA:
«marulho obscuro» e ««Arroio, esse cantar»;
COMPARAÇÃO:
«como um trigo / De Império».
4. No texto, D. Dinis integra a linha do herói
involuntário que age por instinto patriótico; é a eterna Pátria do dia antes, a
reserva da nacionalidade, que a alma recorda para (se) conhecer. É, pois, como
Castelo da alma coletiva que D. Dinis habita o ainda não do Ser português (ou o
não-Ser) e, ao mesmo tempo, o no entanto já que deixa pressentir o futuro (ou o
Ser-em-promessa).
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia,
17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“D. Dinis, na noite escreve um seu Cantar de Amigo (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 12-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/d-dinis-na-noite-escreve-um-seu-cantar.html
Sem comentários:
Enviar um comentário