segunda-feira, 1 de julho de 2024

A língua do nhem, Cecília Meireles


 

A LÍNGUA DO NHEM

 

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

 

Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo, 1964

 



Questionário 

Classifica as afirmações em falsas (F) ou verdadeiras (V). Corrige as falsas. 

1. O poema "A Língua do Nhem" é predominantemente descritivo.

2. As primeiras estrofes do poema apresentam a solidão como um problema sem solução.

3. A partir da terceira estrofe, os animais começam a imitar a velhinha, modificando o cenário de solidão.

4. A velhinha permanece triste mesmo com a companhia dos animais.

5. O poema é composto por seis quadras com versos de sete sílabas métricas.

6. A onomatopeia "nhem" é repetida seis vezes em várias estrofes do poema.

7. O uso de diminutivos como “gatinho” no poema expressa afetividade e intimidade.

8. Os artigos definidos e os diminutivos no poema indicam a proximidade e importância da relação entre a velhinha e o gato.

9. A onomatopeia “nhem” no poema representa a fala dos jovens.

10. Cecília Meireles utiliza os animais no poema para destacar a falta de comunicação e o descaso com os idosos.

11. Termos como “aborrecida”, “sozinha” e “ninguém” no poema reforçam a temática da solidão.

12. O poema não utiliza a personificação como recurso estilístico.

13. A repetição de sons e rimas no poema não tem importância estilística.

14. O poema apresenta influências da literatura oral.

15. O final do poema, com a velhinha contente, se assemelha ao "final feliz" dos contos de fada.

16. "A Língua do Nhem" é um poema que não se relaciona com o público juvenil.

 

Correção do questionário

1. Falso. O poema é narrativo, embora o título sugira uma ênfase descritiva.

2. Verdadeiro.

3. Verdadeiro.

4. Falso. A velhinha fica contente porque os animais a acompanham no "nhem-nhem-nhem".

5. Falso. O poema é composto por oito quadras com versos de seis sílabas métricas.

6. Verdadeiro.

7. Verdadeiro.

8. Verdadeiro.

9. Falso. “Nhem” representa a fala dos idosos e a solidão resultante da falta de interação.

10. Verdadeiro.

11. Verdadeiro.

12. Falso. A personificação é um dos expoentes do texto poético, mudando a língua dos animais.

13. Falso. A repetição é um recurso estilístico utilizado para criar ritmo e reforçar o tema.

14. Verdadeiro.

15. Verdadeiro.

16. Falso. A temática e a forma do poema capturam o interesse do público jovem, ligando-se a tradições populares.

 


Texto de apoio - análise literária do poema “A língua do nhem”

O poema intitulado “A língua do nhem” versa sobre a solidão e, simultaneamente, sobre a necessidade inerente ao ser humano de relacionar-se com outro ser vivo.

Trata-se de um poema narrativo, embora o título sugira que a ênfase se dará no plano descritivo. Portador de uma estrutura do tipo começo-meio-fim, a história apresenta uma sucessão de momentos encadeados entre si, deixando-nos informados do passado, do presente e do futuro. E, segundo Tavares (2005, p. 65), essa é uma das estruturas mais elementares que aprendemos na infância, e é de acordo com ela que interpretamos nossa vida e tudo que acontece à nossa volta.

A problemática da solidão é apresentada nas duas primeiras estrofes, como se não houvesse solução. Entretanto, na terceira estrofe, o quadro começa a se modificar. O gato começa a imitar a velhinha e os demais animais da história fazem o mesmo.

Embora a rotina se instale novamente, minimizando, de certa forma, a solidão, a velhinha fica contente por que todos os a acompanham no “nhem-nhem-nhem” (na última estrofe).

“A língua do nhem” se constitui de oito quartetos constituídos por versos com seis sílabas métricas. O número de sílabas, coincidentemente ou não, corresponde a seis vozes expressas em uma linguagem onomatopaica “nhem” (reiterada também seis vezes) por todos os seres animados no texto. A velhinha, o gato e os outros animais como cachorro, pato, cabra e galinha interagem por meio do monossílabo “nhem” que finaliza quatro estrofes, alternando com os oxítonos terminados em “ém” – “alguém”, “também”, “além”, “ninguém”.

Essa seqüência dos animais talvez represente uma gradação no tocante ao grau de aproximação existente entre o ser humano e os bichos mencionados.

O uso dos artigos definidos a em “a boa da velhinha” (segundo verso da segunda estrofe) e o em “ O gato que dormia” (primeiro verso da terceira estrofe) e “ o gatinho a acompanhava” (terceiro verso da quarta estrofe) denotam o facto de que a velhinha e o gato pareciam se mais próximos ou então considerados os sujeitos mais importantes na comunicação que se estabeleceu.

O diminutivo em “gatinho” expressa a afetividade e a intimidade que se desenvolveu na relação velhinha-gatinho. Acrescenta-se o respeito às pessoas de maior idade se expressa no uso do diminutivo “velhinha” na primeira, segunda, terceira e sétima estrofes.

O “nhem”, onomatopéia bastante utilizada pelos idosos, resultante, biologicamente explicitando, de uma espécie de destruição progressiva e contínua dos neurônios, compõe o título como uma constatação de uma seqüela dos vários anos vividos e da ausência de maior interação humana.

Impressiona-nos a maneira em que Cecília desnuda essa realidade dessa fase da vida, a gravada pelo desuso da fala ou por não ter com quem falar, ou por ter sua fala ignorada ou reprimida pelos mais jovens.

A autora envolve os animais (os bichos) na “comunicação” com a velhinha, na tentativa, talvez, de minimizar o estado de aborrecimento desta e de, ao mesmo tempo, protestar contra o descaso ao idoso, que se inicia no âmbito familiar.

A solidão em que se encontra a velhinha vai sendo descrita através da relação paradigmática marcada pela associação semântica entre a temática solidão e termos presentes no poema que denotam esse estado. Vocábulos como “aborrecida” (primeira estrofe), “resmungando” e “sozinha” (segunda estrofe), “canto” (terceira estrofe), “resmungava” (quarta estrofe), “padecia” e “ninguém” (sétima estrofe).

Os termos em destaque associados à situação de solidão são representados por noções de estado como em “aborrecida”, “sozinha”, de ação como em de companhia, no caso de “ninguém”.

Estilisticamente, a personificação é um dos expoentes desse texto poético, chegando a mudar a língua dos animais. Como se tivessem se divertindo com a nova língua – “a do nhem” – o gato, o cachorro, o pato, a cabra e a galinha passaram “noite e dia/naquela melodia/nhem, nhem, nhem, nhem, nhem, nhem”.

Excetuando o gato, os outros bichos vieram “de cá, de lá, de além” (último verso da quinta estrofe), do mesmo modo que vêm nossos costumes, tradições, comportamentos, por meio, também, da literatura oral a qual tem como significativo elemento a memória, que vai sendo preservada pelo recontar o que ouviu – agregar histórias de outros – considerada uma das necessidades do ser humano por Araújo (2005).

Para evidenciar a relevância da memória, Tavares (2005, p.106) traça um paralelo entre o mundo da cultura escrita e o mundo da cultura oral, ao qual vai ao encontro da permanência da Literatura Oral. Cecília, em Problemas da literatura infantil, afirma: (...) é a Literatura Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais carecidos de letras.

Se visualizando de fora se vê “mesmice”, reprodução, repetição, de dentro (como se fôssemos um deles) parecia haver prazer naquele comportamento reiterado.

A repetição é um outro recurso estilístico utilizado por Cecília. Essa, por sua vez, neste contexto se dá no plano sonoro e vocabular. Os sons das rimas aborrecida/vida (primeira estrofe), velhinha/sozinha (segunda estrofe), cozinha/velhinha (terceira estrofe), resmungava/acompanhava (quarta estrofe), vizinha/galinha (quinta estrofe), dia/melodia (sexta estrofe), padecia/companhia (sétima estrofe), abria/respondia (oitava estrofe) e em estrofes, a partir de palavras que estão na mesma estrofe e em estrofes diferentes (último verso de todas as estrofes) “alguém / nhem / também / nhem / além / nhem / ninguém / nhem” somado ao termo “nhem” repetido seis vezes consecutivas em quatro dos oito versos, de forma alternada.

O tempo passado típico das narrativas, tendo o imperfeito do indicativo do verbo haver” no início do poema indica uma situação que se sustenta há certo tempo e nos remete a “Era uma vez...”, “Há muito tempo atrás...” Esse brincar com outros tipos de texto promove o diálogo entre os tempos e conseqüentemente com o sócio-cultural. A brincadeira com a linguagem associada ao se evidencia em outros textos Especificamente, é possível estabelecer uma relação entre “A língua do nhem” e a história “Os músicos de Bremen” e a canção “ A velha debaixo da cama” do cancioneiro popular.

Os músicos de Bremen, do original The Bremen Town – Musicians, dos Irmãos Grim, Jacob e Wilhelm, trata da desvalorização de um asno, quando este chega à velhice. Seu dono o destrata e o animal resolve abandonar a casa, em busca de dignidade, por meio da sua liberdade.

Talvez o nome dado pelos autores a esse clássico da literatura infantil “Bremen” seja atribuído à Cidade Hanseática Livre de Bremen, cidade alemã, localizada após San Marino, sendo a mais antiga cidade-república do mundo. Conquistou sua emancipação política em 1646, por ter demonstrado já em 1405 sua pretensão de autonomia.

Assim como os animais chegaram à casa da “velhinha do nhem”, com exceção do gato por que já vivia com ela, talvez por não forem respeitados e amados em suas próprias casas, os animais (o asno, o cão, o gato e o galo) também buscaram um ao outro, como forma de combaterem o desrespeito, a ingratidão e a solidão.

O enredo dessa estória estrangeira é semelhante ao poema nacional – “A língua do nhem” e que merece um estudo comparativo mais aprofundado.

O final do poema, assemelhando-se ao clássico “final feliz” dos contos de fada, só aparece depois de um certo suspense na penúltima estrofe com o uso do conectivo com a idéia de consecução “De modo que...”, iniciando a estrofe, põe em dúvida o desfecho do que está sendo narrado poeticamente, como um tom de ameaça. Esse suspense é explicitado por Tavares (2005, p.67) ao discorrer sobre poema narrativo.

O diálogo entre esses dois gêneros literários – o conto e o poema – um europeu e o outro nacional serve para ilustrar, talvez, a influência européia que Cecília Meireles recebeu, já mencionada no Capítulo II deste texto.

“A Língua do Nhem” remete também ao cancioneiro popular “A velha a fiar” – um dos maiores clássicos que retrata, de forma simples e recreativa, o interminável ciclo vicioso no qual estamos presos. Ele funciona bem como jogo de memória.

Segundo o blog de Juliana (www. Marmota.org/blog/2005/07/01/1315), surgiu a primeira vez em 1964, em um curta metragem dirigido pelo cineasta Humberto Mauro. No blog há menção de ter sido veiculado no programa Rá-Tim-Bum (TV cultura) e no Programa Os Trapalhões, com outra versão e intitulado “A velha debaixo da cama”.

Tais ligações a essas raízes foram possíveis devido a memória e a oportunidade que tivemos de nos depararmos, quando criança, dessas criações.

Esses dois veículos midiáticos, portanto, já revelam a viabilidade de poemas com a temática e a forma de “A Língua do Nhem” interessarem ao público juvenil.

 

A ludicidade em Cecília Meireles como sensibilização para a leitura na educação fundamental, Walkíria Carvalho. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006



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