segunda-feira, 23 de junho de 2025

María Gómez Lara

María Gómez Lara © Daniel Mordzinski
https://www.blogfundacionloewe.es/2015/04/maria-gomez-lara-poetry-playing/

 

 

AMANHÃ

 

terás tempo de recuperar a cara que te pões

recolherás do chão os gestos cordiais bom dia obrigada
podias ser amável e passar-me o sal

e acomodá-los-ás onde sempre
por favor com muito gosto deixa-me ajudar-te está pesado
         hoje esquecê-los-ás
sem ter para onde correr carregas contigo com a tua sombra

dobram-se-te os joelhos
as tuas costas torcem-se

fogem-te as palavras
e é melhor calar fechar a porta

já amanhã
aprenderás de novo a falar
primeiro tartamudeando depois sílabas frases
bons dias muito obrigado que tal a noite
e outra vez
irás moldando as feições com as mãos
caminharás quase gatinhando se fosses tão amável não te apresses
irás sobrevivendo

hoje podes enrolar-te aninhar-te
falar sozinha com ele que já amanhã

 

María Gómez Lara, “I – Nó de sombras”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 



 

MUDANÇA

 

Raras as vezes em que ajuda
nas tarefas pesadas
como mudar os móveis,
carregar as malas,
ou percorrer caminhos com sapatos apertados
WISLAWA SZYMBORSKA, «Algo sobre a alma»

 

Diz Szymborska que a alma
se aborrece com as azáfamas
não percorre armários
não empurra caixas

Oxalá seja esta vez a rara vez

Agora
que mudei cidades
e livros
e maletas

e atravessei a terra
carregada de bagagem

e cheguei a este país de estrangeiros

não seria demais
uma alma
que me deitasse uma mão
levando algumas coisas

A minha alma
             se a tenho
             se a tive

está perdida nestes ossos fracos
que não levantam
nem uma mesa         nem uma cadeira
está atolada neste corpo adoentado e distraído

que        pouco sabe
               pouco entende
pouco carrega

e até se leva a si mesmo com duras penas:

um dia
por exemplo
sobram-lhe as mãos
não vê onde pô-las

outro
em troca
tem uns pés
que acordam
estranhos à terra

crêem-se asas
mas não voam
tentam e tropeçam

e no outro
as costas deslocam-se
embora não levem nada
                                       talvez lhes pese o ar

talvez nesses dias
a alma apareça:

endireita-lhe as costas
cruza-lhe as mãos
empurra-lhe os pés para que avancem

Conviria
então
mudar-me
num dia desses

(não antes
nem depois)

quando possa caminhar
com os sapatos apertados

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 


 

FUGAS

 

para correr
escolhes ser de vento ser uma árvore talvez
fixar raízes
                             no ar

decides ancorar-te precisamente
longe da areia ao mar sem fundo a umas ondas que não deixem
           de cair
não se detêm

vejo no ar as tuas raízes
enquanto foges imóvel ainda

e invento uma maneira de ficar

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 

***

 

EMILY DICKINSON

 

Nasci no mesmo dia que Emily Dickinson
quase dois séculos depois
e as coisas mudaram um pouco
desde então

não tive
a sua integridade perante a dor
nem o seu ouvido subtil para as revelações

vivo num prédio alto
onde não chegam os pássaros
só um ruído de sirenes
que não canta

é uma cidade imensa
aqui todos somos Ninguém
mas não aprendemos
a guardar o segredo:

ao caminhar regamos
o nosso nada nas esquinas

Nasci com a pele escura
de um país do trópico
e vim procurá-la neste tumulto
tão distante da sua voz
que se enredava nos prados

imagino-a calando-se nos ladrilhos
vejo os seus manuscritos de letras estreitas

como ramos de tinta negra
que se quebram
em qualquer capa
na lista das compras
e se voltam a enlaçar
para inventar o mundo

Nasci num dez de dezembro como ela
e não trouxe esse silêncio

não obstante

graças ao esconjuro
de repetir os seus versos
enquanto mudam os semáforos

estou a flutuar

ainda

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 

***

 

PREOCUPAÇÕES

 

preocupa-me sempre a matéria:

a poesia que se completa aos pedacinhos

golpeando pedras
agarrando-se à terra
escrita com os ossos com o sangue

preocupam-me os cotovelos os joelhos
os lugares onde nos vamos quebrar
onde estamos

frágeis
             e inteiros

preocupa-me a dor e os calcanhares
caminhar em bicos dos pés não fazer ruído

e tapar a cabeça
ou desandar

preocupam-me os dedos sobretudo
quando ficam dormentes com o frio

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 

***

 

TRANSFORMAÇÕES

 

e a dor mudou-me outra vez
fiz-me forte pus velas rearmei a casa
a dor foi-me empurrando para a frente

agora cozinho verduras arrumo em prioridade os papéis
urgente apura-te apura-te pode esperar ainda mas corre
importante

importante foi curar-me com palavras
importante foi fugir de ti
ir ganhando com a pena as batalhas

ser logo pontual
entregar a tempo os ensaios ir ao banco
fazer café pela manhã

esquecer num passo hesitante com as mãos como se gatinhasse

trabalhar na biblioteca
sair tão tarde que vamos fechar menina

e não me deter a chorar
comer lentilhas cenouras reinventar-me

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 

***

 

LEMBRAS COMO ERAS QUANDO

TE PARECIAS COM O FOGO

 

então levava-te empurrava-te fazia-te cair

uma força enorme que não entendias como nem porquê nem até quando nem onde desembocava o precipício

 

logo aprendeste:

pouco a pouco estudaste as minúcias de como lançar raízes

para que não te tirassem da terra

 

ensinaste os teus ossos a converterem-se em ramos

fizeste-te sentir madeira

 

e que a pele remendada de tantas cicatrizes

se estirasse se alargasse se dobrasse mas não

 

nunca quebrar-te outra vez

agarrar-te à tua casca

 

não te desdizer             não ter

que afastar os teus passos não gritar

 

melhor

 

ficar-te quieta

e lembrar agora

 

quase de longe

quase olhando a outra

e não obstante tu

 

que estás a salvo no fim

 

embora arrastes ainda

o fogo nas cinzas

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 

***

 

AGORA A TEMPO

 

ia chorar por ele e por mim e por todos os que andamos perdidos sem retorno

mas desta vez não me· vou abaixo estou a tempo

desta vez já sei e ainda não é tarde embora pareça que ele vai correr que não está que nunca esteve que os seus passos são pegadas que foi que não pode ficar

porque não porque não porque não quer

 

embora sim queira embora às vezes mo diga e me olhe de certa maneira

como se eu carregasse o mundo para o ajudar por um instante com o seu peso com a sua própria sombra

 

como se eu também fosse um pouco tonta como da outra vez como antes com o outro ele que não era ele mas o mesmo sentido de estar a fugir perpetuamente a fugir como quem fica e não há quem possa perseguir atalhar rastrear semelhante              vontade de fuga

 

volto a ele que me olha às vezes como o outro ele como se eu fosse um pouco tonta outra vez retrocedendo sem ter aprendido nada da última queda de ter que derrubar-me e reerguer-me com cinzas e gritar e procurar-me entre o nada e reconstruir-me como pude enquanto o tempo lá fora não passava

 

como se eu fosse outra vez suspender-me para querer ficar nos seus braços para sempre

 

mas mas mas

 

aqui há um mas e três e quatro aqui salvo-me porque desta vez embora não pareça embora queira chorar por ele e por mim e por todos os que andamos perdidos sem retorno desta vez

 

não quebro não me engano estou alerta que se vá e não volte nunca mais

 

que se vá que se vá antes de me quebrar desta vez não quebro que se vá se a história é igual e já sabemos algo se aprende dos golpes já sabemos desde antes que não vai abrir a porta não me vai deixar chegar

 

María Gómez Lara, “II – Mover cidades”. Nó das sombras, Lisboa, Glaciar, 2015. Tradução: Nuno Júdice.

 


 

Las formas de lo que no es amor

 

FRONTERIZOS (4)

Néstor Mendoza

 

El lugar de las palabras asume una postura discursiva, la segunda persona, para señalar un mal que se ensaña, o se ensañó, contra la autora: «tú que conociste todas las formas de lo que no es amor». Un diagnóstico médico, el menos favorable posible, es usado como insumo para escribir estos textos deliberadamente descarnados. Un proyecto de escritura en el que el motivo es la persona y su fragilidad. Pero no es una fragilidad alegórica: quien escribe padece y ve su vida amenazada por una patología real y no imaginada. La imaginación llega como testimonio creador (al recrear el peligro en el poema), o como una manera de dar fe de aquel proceso. Allí está la radiografía y la descripción que hace María Gómez Lara (Bogotá, 1989). El lugar de las palabras es un epíteto para no decir el lugar del cerebro donde se procesa (¿se produce?) el lenguaje. El lugar de las palabras, como nombre, quiere sugerir o encubrir. Quiere ser elíptico. Pudiéramos decir también: El hogar de las palabras. Lo que se propone la poeta bogotana es uno de los tantos esfuerzos por nombrar de nuevo, nombrar después de la batalla; en este caso, la estrategia para suprimir el corazón que crece en una parte de su cerebro. La poeta descubre que la acción de los verbos (la conjugación), y no el simple nombrar, es el recurso que puede salvarla: «qué curioso que el lenguaje se mida con acciones / que hacer sea más fuerte que nombrar / yo pensaba que las palabras más palabras / eran los nombres de las cosas». El lugar de las palabras se construye con poemas sin puntuación, la sintaxis facilita la enumeración de frases asociadas al dolor y al miedo. El decir de María Gómez Lara es terso, líquido, con vocación de cascada. En algunos casos aparece el relato sencillo de lo que ocurre o va a ocurrir en la sala de operaciones. La poeta intenta comprender qué sucede en su cerebro, en esa cicatriz con forma de corazón, y qué sucederá luego del tejido cerebral inflamado y la anestesia. Ella teme por sus palabras. No quiere perder ninguna. Perder las palabras como si se perdiera la propia vida. «También la verdad se inventa», escribe Antonio Machado, y pareciera la misma motivación que se plantea María Gómez Lara. La verdad no en un sentido de objetividad periodística. Una verdad que sólo compete a la autora y su entorno familiar, pero que al salir de los informes médicos y tratamientos e intervenciones quirúrgicas, pasa al ámbito de lo público. La literatura nace cuando escribimos y convertimos los prejuicios en tema. Cuando se convierten los dolores en tema. Volver al cuerpo: esto lo hace María. Vuelve con elegancia pero sin concesiones a su cuerpo, al mal que le diagnostican. Un tumor. Brain tumor unit.

 

 

EL LUGAR DE LAS PALABRAS

 

Para el Doctor Javier Romero

que me encontró el lugar de las palabras

 

I

nunca había pensado

que las palabras       ocupan un espacio en el cerebro

 

un rincón preciso    justo irremplazable

hay un lugar en donde están almacenadas

 

tampoco había entendido

que todos los cerebros son distintos

que cada uno guarda el lenguaje donde puede

 

tú por ejemplo

dice el médico

lo debes tener en todas partes

 

vamos a buscar

exactamente

 

dónde aparece tu lenguaje dónde es que lo guardas

vamos a dar con el lugar de las palabras

 

para ver si está comprometido

 

el examen es una resonancia

(ya me han hecho tantas reconozco la cápsula cerrada y aún me

aturden los ruidos)

pero esta vez vas a pensar palabras piénsalas no las digas en voz

alta

vas a ver en la pantalla una palabra por ejemplo bicicleta

y piensas bicicleta pedales timón cadena

 

para rastrear tu lenguaje

lo más importante

es la generación de verbos

ves por ejemplo la palabra puerta

y piensas todos los verbos que puedas mientras más mejor

pienso abrir cerrar derrumbar deshacer levantar empujar jalar

portazo (no es un verbo pero es linda la palabra portazo

concéntrate maría piensa un verbo)

door

open close that’s about it

no olvides no mezclar los idiomas si ves la palabra en inglés

piensa en inglés mantenlos separados

vamos a hacerte un examen bilingüe

primero en español luego en inglés

you are going to see the first words in Spanish

en español se me ocurren más verbos

(puedo actuar con más ímpetu con más precisión

qué curioso que el lenguaje se mida con acciones

que hacer sea más fuerte que nombrar

yo pensaba que las palabras más palabras

eran los nombres de las cosas)

 

en todo caso el examen bilingüe

es porque tampoco sabía

que el cerebro guarda en un lugar la lengua materna

y en otro distinto los idiomas aprendidos

depende de la edad en que se aprendieron

(yo por ejemplo aprendí tarde y tengo acento en todos los idiomas)

el cerebro además procesa de manera diferente la información

que sabe y la que no sabe

(yo por ejemplo no sé cuántos jugadores tiene un equipo de

basketball: no sé en español no sé en inglés y quieren que

responda que piense algo que piense ahora la respuesta

pienso entonces          cualquier número

supongo que no me estarán midiendo lo que sepa de deportes

porque la verdad es que no sé nada así que al menos en eso

estoy tranquila: ahí no hay nada que perder)

quieren encontrar todas mis palabras

incluso las que uso para traducirme en esta tierra helada

can I think in Spanish?

le pregunto a la enfermera

me dice que sí afortunadamente

primero porque en inglés no conozco

el vocabulario específico de las bicicletas

ni sé nombrar las partes de una puerta

y sobre todo porque si hay que escoger

me quedo con mis palabras en español

de eso no cabe duda

prefiero salvarlas mil veces

 

II

por alguna razón

siempre pensé que las palabras

sólo sufrían de amenazas metafóricas

 

a diferencia del cuerpo o incluso el corazón

(porque ambos empezaban a romperse con el mundo)

y los oía quebrarse

sentía los huesos rotos

sentía la vida hecha polvo se anunciaba el dolor desde antes

cuando oía el golpe el estruendo el portazo la caída

por ejemplo

cuando llegaste tú

 

las palabras eran otra cosa

las palabras eran mías

y si se rompían yo podía repararlas

 

por ejemplo cuando no sabía

cómo nombrar la herida que dejaste

para empezar a cerrarla

 

escribí y escribí y escribí

tantos poemas

que no se parecían a tu nombre

que no eran suficientes

que no trazaban la forma de tu hueco

 

palabras y palabras y palabras que no bastaban para borrarte

pero ocupaban un espacio en la página

y al verlas dibujadas

comenzaba a sanar

al rodearte con ellas

empezaba a convertirte en cicatriz

 

III

en cambio ahora

hay una bomba de tiempo en mi cerebro

que quién sabe cuándo explota

quién sabe cuándo se transforma

puede ser nunca o mañana o en un año

 

quién sabe

cuándo

empieza

a crecer

 

y a invadir

el territorio

donde viven

mis palabras

 

a desplazarlas

a acorralarlas

a doblegarlas

a arrinconarlas

 

¿dónde las voy a poner

si están comprometidas?

 

¿existirá algún lugar en donde pueda guardarlas?

 

¿cómo las protejo

cómo las escondo?

 

¿en dónde me resguardo

si he perdido mi refugio?

 

¿dónde vivo yo si las palabras son mi casa?

 

https://www.revistaaltazor.cl/maria-gomez-lara-2/

ISSN 2452-5332, 1 ÉPOCA / AÑO 5 / JUNIO / 2025

 

 


 

María Gómez Lara, por Nuria Mendoza

María Gómez Lara: la poeta colombiana que da voz a los personajes de “Don Quijote”

Una de las poetas nacionales más reconocidas a nivel internacional, doctora en poesía y maestra de escritores en Madrid, habla de su nuevo libro “Don Quijote a voces”, publicado en España por la editorial Pre-Textos.

Nelson Fredy Padilla

31 de marzo de 2024 - 03:00 p. m.

 

¿Por qué Milán, Italia, para presentar tu nuevo libro, “Don Quijote a voces”?

Porque me invitaron al Instituto Cervantes de Milán, justamente para un seminario especializado en la literatura española del Siglo de Oro con perspectiva de género. También me invitaron a dar una clase y a hacer una lectura. Me pareció que era el escenario perfecto para hacer la primera presentación del libro.


Soy testigo de que te gozas la lectura de “Don Quijote de la Mancha”. En mi caso lo sufrí en el colegio como una tarea impuesta y solo en la universidad pude disfrutarlo. Explícame ese amor por la obra de Miguel de Cervantes y tu decisión de rendirle un homenaje poético.

El Quijote es uno de mis libros preferidos y me parece muy divertido. Es más, me echan de las bibliotecas porque no me puedo parar de reír mientras lo leo. Hay toda una literatura que nos imponen en el colegio o en las instituciones y nos dejan esa concepción de que puede ser algo difícil, antiguo, complicado. Pero a mí me parece muy divertido y también muy profundo, porque nos habla de cosas que todavía son vigentes, como el amor a los libros, la amistad, el poder de la literatura y, desde el contexto de los libros de caballerías, siglos después nos habla de la condición humana. Así la poesía y la literatura nos remueven valores universales. (Recomendamos: Videoentrevista de Nelson Fredy Padilla a Piedad Bonnett, sobre los diez años del libro a raíz del suicidio de su hijo).


Lo que me llamó la atención de este nuevo poemario es que le das vida poética a los personajes de “Don Quijote”, caso de Dulcinea.

Lo que pasa es que Don Quijote ya tiene mucha poesía adentro. Hice muchos seminarios sobre Cervantes y en uno de estos empecé a pensar en la función de la poesía en Don Quijote. Me interesó sacar las voces, poner a los personajes en situaciones en donde ya estaban, pero que eran poéticamente interesantes y convertirlas en voces poéticas. En el caso de Dulcinea, fue la que más me tuve que inventar, porque aunque sea la protagonista, no dice casi nada en el libro, no tiene voz. Entonces es un intento de pensar qué habría dicho ella.


Lee ese poema, por favor.

Se llama “Dulcinea encantada” y está basado en el episodio de la cueva de Montesinos, en que Don Quijote dice que vio a Dulcinea encantada y la iba a desencantar:

dice que me vio en una cueva

yo no sé de encantamientos dulcinea me grita al verme dulcinea del toboso

y habría que buscar un nombre

aldonza lorenzo me pusieron aldonza aldonza me llamaban mis padres como un eco de ellos: lorenzo corchuelo y aldonza nogales porque se aferraban a sus nombres de árboles y desde niña me inventaron un nombre para que fuera su extensión y no mi matiz exacto de follaje mi grosor de las ramas mi textura en la corteza y yo quiero galopar seguir andando subir rápido al burro y avanzar hacia adelante

él en cambio me dice la fermosa la soberana la excelentísima señora de mis pensamientos no se ha fijado en mi cara no me ha oído

y jura que unos gigantes van a venir a buscarme para contarme no sé qué de unas batallas de unos vencidos de unas armaduras

dice que me vio en una cueva

con una multitud de encantados errantes

que vivíamos todos en vigilia

que no era sueño ni era duermevela sino estar con los ojos siempre abiertos

y la mirada en otra parte

la mirada perdida

atascada en un lugar en donde al fin

olvidáramos los nombres repetidos

ni aldonza lorenzo ni dulcinea del toboso ni la señora de nadie ni la labradora simple

un lugar en donde yo fuera yo

sin la fantasía prestada

sin salir de un libro ajeno (todo el mundo me nombra y no aparezco cuándo se vio nunca escrita una protagonista tan volátil tan enclenque de relato así de impuesto)

ni de la vida prosaica esta vez

escribir mi historia

reconciliar mis realidades

construirlas más allá al otro lado

de las sílabas de mi nombre

ni el que escogieron mis padres

ni el que inventó él

sino yo abrir los ojos al fin abrirlos y no volver a cerrarlos

abrir la boca para gritar déjeme en paz señor para gritar soy yo o para convertirme en esa mujer que él inventaba esa que amaba tanto y defendía con su vida con su honra con la fuerza de su brazo esa por la que se estrellaba y se golpeaba y se daba a trancazos contra el mundo

o convertirme mejor en quien a mí me parezca

dibujarme a mí misma

imaginarme nombrarme

elegir mis palabras

ser mi propia narradora

yo en primera persona y no en tercera ausente en tercera silenciada

mirar para allá

hacia donde tenga voz

dice que me vio en una cueva y no sé si quedarme en esa cueva o si él estaba dormido

loco dentro de su locura

dice que me vio en una cueva y no sé de encantamientos

pero quiero desencantarme sola

que se vaya que se vaya él con su escudero llama ahora a sancho panza que se vaya con sus nombres y apodos y pronombres con sus frases enrevesadas que se busque otra señora que les busque a sus desvelos otra dueña que atraviese otro lugar que no me quiebre el camino para seguir andando

al fin descantarme que se vaya o escoger mi encantamiento

ir justamente a donde me lleve yo

que me guíe el mapa exacto que tracen mis palabras


Me gusta el ritmo y la musicalidad. Hablas de la importancia de buscar las palabras. Duro reto encontrar las precisas para un homenaje a “Don Quijote”. ¿Fue difícil?

Complicadísimo. Como ves, en el poema hay algunos arcaísmos. Hay palabras de Don Quijote como fermosa, que ya no se dice así y luego debía buscar la musicalidad del poema a través de la mía, del español bogotano que hablo yo. Tenía que encontrar un equilibrio que mostrara esa relación con el universo de Cervantes, pero al mismo tiempo que el poema estuviera vivo, claro, y para que el poema pueda estar vivo, hay que darle la musicalidad, que es más natural para mí. Si trataba de escribir un poema totalmente con el lenguaje de Cervantes, iba a salir como una cosa falsa, impostada.


¿Tu proceso creativo incluye escribir pensando en que el texto será declamado?

Para mí es fundamental la musicalidad, entonces toda la poesía que escribo tiene de fondo la voz. Cuando escribo un poema lo leo muchas veces en voz alta y mientras lo voy reescribiendo lo sigo leyendo en voz alta para asegurarme de que la musicalidad salga como yo quiero. En esta en particular era muy importante porque quería crear voces de distintos personajes. Eso viene de manera intuitiva, más cuando uno escribe un poema en verso libre. Cada poema encuentra su música y esa música solo existe para ese poema. Todos los poemas que escribimos son el primero que hemos hecho, en la medida en que en que hay que encontrarle la música.


¿En plena era multimedia, de muchos sonidos y de ruidos, por qué insistes en que las personas vuelvan a oír poesía declamada?

Justamente por eso, porque la poesía es el género literario que más se acerca a la voz. De hecho, la poesía empezó siendo cantada. La poesía es muy musical. La voz poética es lo que define a un autor o autora. Creo que en este momento en que hay tanto ruido en el mundo, la poesía puede ser un sonido que va más allá del ruido.


Desde que te conocí de niña, porque eres la hija de Patricia Lara, mi colega periodista y escritora, me llamó la atención tu pasión por la poesía. En tu colegio recitabas con propiedad y luego de graduaste en Literatura en la Universidad de los Andes. ¿Por qué estudiar literatura y ser poeta en el siglo XXI?

Mi mamá me cuenta que, Desde antes de tener memoria, yo estaba obsesionada con la poesía. Es decir, no me acuerdo de quién era yo o de quién podría ser yo sin la poesía. En eso también tuve mucha suerte, porque ella me estimuló desde chiquita y siempre estuve escribiendo, leyendo poesía. La poesía tiene que ver con lo que yo soy. Entonces, cuando escogí una carrera para estudiar, pues ni siquiera me lo pensé. Para mí no había otra posibilidad, porque la literatura es lo que más me hace feliz en el mundo y es lo que lo que sé hacer: leer y escribir. Y no sé hacer muchas otras cosas. En el siglo XXI o en cualquier otro siglo donde yo viviera me dedicaría a la literatura, no me imagino otra manera de estar en el mundo. Ahora, en este siglo, la literatura es muy importante porque la pandemia nos demostró que lo que nos salvó fue el arte. Qué habría hecho toda la humanidad encerrada en sus casas sin libros, películas, sin música. El arte nos hace humanos y la poesía representa el poder del lenguaje convertido en creación artística.


Cuando dices “estar en el mundo”, recuerdo un verso del poeta venezolano Eugenio Montejo (1938-2008) en “Terredad”, que fue un punto de referencia importante en la búsqueda de tu camino literario.

Sí. En mi tesis de doctorado en poesía uno de los capítulos es sobre Eugenio Montejo y escribí como 30 páginas sobre lo que podría ser ese estar en la tierra, nuestra condición de estar hechos a la a la vez de cuerpo y de tiempo, entre lo efímero y permanente, reconociendo nuestra finitud. Para mí, Eugenio Montejo fue importantísimo y sigue siendo importantísimo. En Pre-Textos, la editorial española que me publica el libro, acaban de sacar su obra completa. Te recuerdo que en Los Andes yo iba a hacer mi tesis de pregrado sobre la poesía en Don Quijote y me la iba a dirigir Amalia Iriarte, una gran profesora experta en Cervantes (mi libro está dedicado a ella y a Mary Gaylord, que fue la profesora que me dio Cervantes en la Universidad de Harvard), pero un día entré a una librería y me encontré con la obra de este poeta que no sabía que existía y me conmovió profundamente. Fui donde Amalia y le dije: sé que habíamos quedado en esto, pero ahora quiero escribir sobre un venezolano. ¿Me la diriges? Y Amalia me dijo que sí. Amo a Montejo, pero de todas maneras me quedé con la idea de trabajar la poesía en Don Quijote y en vez de hacerlo en forma de tesis o de ensayo académico, lo acabé haciendo en forma de libro de poemas.


Me haces acordar del escritor italiano Antonio Tabucchi, a quien le cambió la vida el día que descubrió la poesía de Fernando Pessoa, a través de “Tabaquería”, y terminó viviendo y muriendo en Portugal, hasta pidió ser sepultado cerca a él.

Yo también adoro “Tabaquería”. Me encanta, me gusta mucho Pessoa. Escribí un poema que se llama “Lisboa”, que es una especie de homenaje a “Tabaquería” y a Pessoa, porque a mí me pasa que cuando escribo lo hago sobre cosas que me importan mucho y me conmueven mucho. Cuando a mí la literatura me emociona, me siento en la necesidad de escribir también.


Aparte de esa pasión que te mueve, has tenido una gran perseverancia para aprender del oficio, porque después de estudiar literatura en los Andes hiciste maestrías en la Universidad de Nueva York y en Harvard y de esta última eres doctora en poesía. Por eso ahora también te dedicas a enseñar en la Escuela de Escritores de Madrid, donde estás radicada luego de trabajar en la Universidad Complutense. O sea, ¿se puede vivir de la poesía?

Vivir es un poco amplio. No sé si vivir, pero me dedico a eso porque es lo que más me gusta, lo que más tiene sentido para mí. La otra cosa que me gusta mucho es enseñar. Me encanta ser profesora, lo disfruto mucho, me llevo muy bien con los estudiantes y con las estudiantes y siento que aprendo un montón al dar clases.


¿En tu travesía fue clave el Premio Internacional Loewe de Poesía a la Creación Joven, que ganaste en 2015 por el poemario “Contratono”?

Por supuesto. Estoy muy muy agradecida con las personas de la Fundación Loewe. Haber ganado ese premio me abrió las posibilidades para seguir escribiendo. Precisamente a Manuel Borrás, de la editorial Pre-Textos, le interesó ese libro que salió publicado aquí en España en Visor y fue una manera de empezar a dedicarme del todo a esto.


¿En qué ha cambiado tu método de trabajo, tu mirada poética, desde ese primer poemario “Preguntas para el azar”, de 2007?

Bueno, ese tiendo a negarlo porque estaba tan chiquita, jajaja, pero fuera de chiste, el trabajo de hacer un libro es algo que se va aprendiendo haciendo libros, entonces va cambiando el método porque también cada libro es distinto.


Otra gran la influencia fue la poesía de la estadounidense Emily Dickinson (1830-1886), a quien le dedicaste un poema.

Es un poema corto sobre la casualidad de la vida de que yo nací el mismo día que Emily Dickinson, mi poeta preferida, un 10 de diciembre. Te lo leo:

Nací el mismo día que Emily Dickinson casi dos siglos después y las cosas han cambiado un poco desde entonces

no tuve su entereza ante el dolor ni su oído sutil para las revelaciones

vivo en un edificio alto donde no llegan los pájaros sólo un ruido de sirenas que no canta

es una ciudad inmensa aquí todos somos Nadie pero no hemos aprendido a guardar el secreto:

al caminar regamos nuestra nada en las esquinas

Nací con la piel oscura en un país del trópico

y vine a buscarla a este estruendo tan lejano de su voz que se enredaba en las praderas la imagino callando en los ladrillos veo sus manuscritos de letras apretadas

como ramas de tinta negra que se quiebran en cualquier envoltura en la lista de mercado y se enlazan otra vez para inventar el mundo

Nací un diez de diciembre como ella y no traje ese silencio

sin embargo

gracias al conjuro de repetir sus versos mientras cambian los semáforos

estoy a flote

todavía. (…)


Con Pre-Textos publicaste en 2020 “El lugar de las palabras”, donde convertiste en poesía esa experiencia durísima que tuviste con el tratamiento de un tumor cerebral, que describes como “mancha en forma de corazón perfecto, bien delimitada… lesión indeterminada en el lóbulo frontal izquierdo”. ¿Por qué llevar al verso ese tipo de temas?

Pasar por una cosa de esas hizo que me resultara inevitable escribir. Cada uno tiene su manera de lidiar con las heridas y lidiar con el miedo, y en mi caso es la escritura. Ahí me refiero al espacio físico del cerebro, donde está el lenguaje. Cuando estaba escribiendo los poemas no tenía ni idea de que iba a hacer un libro, simplemente necesitaba escribirlos en ese momento y volví sobre ellos después de mucho tiempo y distancia, cuando ya había pasado todo y no era un drama, porque mientras estás pasando por un trauma no lo puedes ver con perspectiva y no lo puedes transformar en arte. Volví a editar los poemas y me di cuenta de que ahí había un libro que representa que para mí escribir es una forma de vivir y una forma de sobrevivir, independientemente de que publique o no publique.


En Milán y en Madrid te invitan a hablar de literatura con perspectiva de género. ¿Cómo ha influido esa mirada en tu poesía y cómo la incorporas a tu metodología como maestra?

Es importantísima, sobre todo porque yo soy la que está mirando. Y también me importa mucho esta idea de darle voz a las mujeres, que por una historia infinitamente larga de patriarcado aún no han tenido suficiente derecho a la voz. La poesía entonces, que es fundamentalmente voz, es una herramienta poderosísima para oír a quienes no han sido oídas. Mi yo poético se parece a mí y yo soy muy feminista.


Qué opinas de la voz de las poetas colombianas actuales. Recomiéndame a algunas de ellas.

Es que hay muchísimas. A mí me parece que las poetas colombianas están haciendo cosas súper interesantes desde distintas generaciones: por ejemplo, Piedad Bonnett, que fue mi profesora en la universidad, pero también las poetas de mi generación, como Tania Ganitsky y Amalia Moreno, María Paz Guerrero, Eliana Hernández, Andrea Cote. Me da mucho miedo dar nombres y no decir el de todas las que están haciendo cosas maravillosas. Me disculpo de antemano por los nombres que se me han olvidado.


Para terminar, dale voz a Marcela, esa otra protagonista que en “Don Quijote” es de las voces más poderosas.

En el episodio que recreo de Marcela ella habla de defender su libertad, su derecho a corresponder o no, a escoger lo que quiere hacer con su vida. Ella no ha hecho nada y están hablando de ella y juzgándola. Es una pastora de la que otro pastor se enamora y ella no le corresponde y él se suicida, entonces la acusan de asesina. Por eso ella da ese discurso diciendo que tiene derecho a su libertad, que ella no lo mató, que simplemente no le correspondía y estaba en su derecho. Lo más bonito es que convence a Don Quijote y él se pone de su lado y la defiende. Este poema se llama “Marcela desamorada”:

a mí no me digan desdeñosa no me digan cruel no me digan ingrata ni basilisco ni fiera

yo nací libre y libre soy

pues no he prometido nada a los pastores que me siguen

ninguna falsa nunca les di esperanzas les dije la verdad:

el amor no se fuerza el deseo es peregrino y sólo llega cuando llega si es que un día aparece y coincidimos

nada me amarra a corresponder porque dicen que me aman que se lleven sus cadenas

yo tengo mi voz yo tengo mi palabra yo puedo pasear tranquila por los bosques solitarios conversar con los zagales con las cabras

no estaré enferma de ausencia ni de celos

ni perderé el ritmo exacto de mis pasos

cuando no me persiguen ni me cantan cuando camino en paz por la colina

si se quieren matar que se maten si se quieren morir de amor que se mueran

yo no hice nada yo no escogí esta hermosura que me pesa así ahora por tanto que me buscan tanto que me asustan me agobian me asedian

no puedo respirar

y ellos no saben quién soy yo:

marcela

marcela libre de este cuerpo que tanto se disputan

marcela libre de este cuerpo que los hace creerse dueños de mi forma de andar sin seguirles el rastro

yo habría sido marcela sin esta cara tan fermosa que persiguen

yo habría sido marcela sin rizos para comparar con el sol o con el oro

sin dientes de perlas

sin ojos como estrellas

apagadas

yo habría encendido mi fuego

por las palabras que traigo para salvarme

para decir libre soy y libre seré siempre

yo no maté a grisóstomo él se mató solito y que vaya a cantar si quiere a repetir sus versos de acento espantable decía en su poema

a repetir sus versos tristes que no saben de mí ni resuenan conmigo

ni fui yo la causante de esa herida

yo soy marcela por la voz

y las heridas las abren ellos al sólo querer apropiarse de esta piel que me cubre

sin detenerse

un momento

a mirar

mis cicatrices

 

“María Gómez Lara: la poeta colombiana que da voz a los personajes de Don Quijote”, Nelson Fredy Padilla. Disponível em https://www.elespectador.com/el-magazin-cultural/maria-gomez-lara-la-poeta-colombiana-que-da-voz-a-los-personajes-de-don-quijote/, 31-03-2024

 


quarta-feira, 11 de junho de 2025

DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA - Discurso de Lídia Jorge nas comemorações do 10 de Junho, em Lagos. 2025


 

DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA

1.

Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa  que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade  de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra.  A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque  voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.  

É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos  representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de  atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações,  e de fazer reflectir a  sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar  o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância  nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial,  apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre  Beethoven –  Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.

2.

Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos  Maria Bobone pôs  recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos.  Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não  me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que  Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.” 

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores  mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa  hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados  do seu poeta maior.

3.

Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar,  ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu. 

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao  fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico  encerra um  paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica  que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII  três  dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles  Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos  homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática,  na degradação dos actos do dia a dia.  Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa  os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…

4.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram.  Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra  dizia-se  que lutavam  entre si pelo domínio do Globo Terrestre.  Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se  fosse um berloque. Os três autores perceberam  bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear –  É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso  irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a  vida  haveria de lhe demonstrar  que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada  que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.

Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros,  e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços  em competição, como se mais uma vez  se tratasse de um berloque. E os cidadãos?  São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil  designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.

5.

Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero  que sonhou com achamento de ilhas e outros  descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga,  e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação,  Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro.

Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada  enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal,  que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público  que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. 

É verdade que a deslocação colectiva  que permitiu  estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o  encontro  entre povos,  obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos  num novo processo de escravização longo e doloroso.  Lagos, precisamente, oferece às populações actuais,  a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo  da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em  larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

6.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia,  e como foram repartidos  e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.  Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.

Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno  o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.

7.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou,  de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página  da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que  sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das  paredes de um dos museus de  Lagos está escrito o testemunho de  um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”. 

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros.  Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente,  de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone  datado de 2014 que tem corrido mundo –  A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre  está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil,  rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta  – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde  – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de  cavadores braçais, marujos, marinheiros,  netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

8.

 Consta  que  em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem  africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por  aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós  é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta  – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?

9.

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

 Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de Os Lusíadas”,  Camões define o ser  humano como um ente  perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o  da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática,  essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido,  a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela  que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX,  o direito à protecção beneficiada  pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

 O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio  que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A   cultura digital subverteu  a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura,  e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz.  Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino,  porque, se  alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

Lagos, 10 de Junho, 2025.

Lídia Jorge



A agonia dos puros

Os discursos do 10 de Junho foram sobre o passado e isso é, como disse Francisco Mendes da Silva no debate semanal que tenho com ele, sinal de bloqueio. Só que os discursos políticos sobre o passado nunca são bem sobre o passado. Por isso a história, eternamente reescrita, sempre foi disputada. O discurso de Lídia Jorge foi sobre o que queremos ser. É isso a identidade de um povo: uma autorrepresentação construída com base em factos, mitos, lendas e heróis que projetam os nossos desejos e frustrações como comunidade. A nossa identidade, moldada por décadas de propaganda lusotropicalista, baseava-se numa ideia de miscigenação bondosa, determinada por um colonialismo excecional. Apesar de o tráfico negreiro transatlântico ser um dos nossos maiores legados à humanidade, conseguimos fazer da preservação deste mito, que desafia a nossa história e a forma como os outros povos olham para ela, uma espécie de compromisso entre o passado colonial autoritário e o presente democrático. Serviu-nos quando estávamos ocupados a construir a democracia e um país mais moderno.

Com a chegada a Portugal dos debates do mundo, ajudada por uma nova geração de intelectuais afrodescendentes, fomos obrigados a sair do confortável casulo das nossas fantasias. E com a polarização que estes novos debates causaram, nascida de décadas de silêncio e de traumas adiados (e, reconheço, de alguma importação intelectual das causas identitárias), o nacionalismo português tornou-se menos idiossincrático. Ou talvez, sendo mais justo, se tenha despido das vestes lusotropicalistas de que a pequena nação imperial precisava, mostrando a sua nudez étnica e racista. É natural que assim seja. A função deste nacionalismo já não é justificar um império anacrónico e preso por arames. Não é justificar a nossa expansão imperial, mas sim uma vontade de fechamento atávico às migrações. São momentos diferentes na nossa história e na história da Europa. Ascensão e queda. Já não estamos a fazer um ajuste de contas com o passado para seguirmos em frente. Já nem sequer é um debate nosso, em que a particular fraqueza da metrópole obrigava a alguma ginástica simbólica. O papel deste nacionalismo nativista já não é o de justificar uma força centrífuga imperial, mas o de impedir uma força centrípeta migratória. É o de saber como vamos lidar com o aumento intenso de fluxos humanos, que as alterações climáticas, a proximidade imaterial de tudo e o enorme desequilíbrio demográfico e económico entre Sul e Norte globais vão continuar a acentuar. Só abrandará se a Europa e os EUA perderem relevância e atratividade. O recuo civilizacional a que assistimos no Ocidente pode tratar disso.

A extrema-direita tem um plano e o centro político segue-o aos tropeções: fechar portas e janelas. Para quem julgava que o debate alguma vez tivesse sido sobre condições para integrar, André Ventura deu a resposta, recorrendo às mentiras habituais e declarando guerra ao mais poderoso instrumento de integração dos imigrantes: o rea­grupamento familiar. É natural que o faça. A integração reduz o conflito de que os autoritários dependem para reforçarem o seu poder. Basta acompanhar o que se passa na Califórnia para perceber como a perseguição aos imigrantes serve para alimentar o caos, justificar o clima de exceção, aplacar todos os contrapoderes e reforçar os instrumentos repressivos que eternizam os autoritários no poder. Fechar fronteiras não serve apenas para deixar os imigrantes de fora. Serve para prender os nacionais cá dentro. A ilusão dos democratas irrefletidos é pensarem que esta caminhada vai parar quando eles decidirem.

Claro que a alternativa não é suprimir as fronteiras. Como não deveria ser para os mercados financeiros ou para o comércio, mas isso é mais difícil de explicar aos liberais. A resposta começa pela síntese que Lídia Jorge tentou fazer na projeção da nossa identidade, rompendo, sem esconder nada, com a clivagem entre “nós” e “eles”: “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Somos, enfim, fruto das nossas glórias e crimes que nos fazem, sem qualquer pureza, humanos. Chegar a esta conclusão é condição para uma resposta moralmente aceitável ao inevitável aumento do fluxo migratório. O realismo não se resume à evidência de que quase tudo se regula. É saber que se nos fecharmos ao mundo, em pânico, seremos nós os prisioneiros. Olhem para a caminhada autoritária que se iniciou na Califórnia.

"A agonia dos puros", Daniel Oliveira. Expresso, 12/06/2025




CANÇÃO DO MESTIÇO

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor 
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande 
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
       Mas eu não me danei…
e muito calminho 
arrepanhei o meu cabelo para trás 
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre 
que encheu o branco de calor!...

Mestiço !
Quando amo a branca 
                                     sou branco 
Quando amo a negra
                                     sou negro.
                                                       Pois é…

Francisco José Tenreiro, Ilha de Nome Santo. Tipografia da Atlântida de Coimbra, 1942. Série Novo Cancioneiro