segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Retrato ardente, Eugénio de Andrade




RETRATO ARDENTE

 

Entre os teus lábios

é que a loucura acode,

desce à garganta,

invade a água.

 

No teu peito

é que o pólen do fogo

se junta à nascente,

alastra na sombra.

 

Nos teus flancos

é que a fonte começa

a ser rio de abelhas,

rumor de tigre.

 

Da cintura aos joelhos

é que a areia queima,

o sol é secreto,

cego o silêncio.

 

Deita-te comigo.

Ilumina meus vidros.

Entre lábios e lábios

toda a música é minha.

 

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio (1972)

 

 


POESIA DO CORPO

 

Na poesia de Eugénio de Andrade a importância do corpo constitui um dos mais divulgados lugares comuns do ponto de vista da receção da sua obra. O próprio poeta, em 1979, no livro Rosto Precário confirma esta perceção relativamente à sua poética, ao afirmar o seguinte: «na minha poesia o corpo insurge-se, diz coisas despropositadas, põe-se a blasfemar, chegando a pretender-se metáfora do universo».

 

Atenta nas seguintes linhas de leitura propostas por Paula Morão:

 

- Veja como este é o simultâneo «retrato» de um Eu e um Tu; um Tu retratado nas partes do corpo e nos efeitos que produz sobre o Eu; um Eu que não só enuncia o Tu mas se enuncia reagindo, por marcas aparentemente impessoalizadas que se resolvem na «música» do último verso, condensando a «loucura», o «rumor», o «queimar».

 

- Esta simultaneidade Eu/Tu é apenas um dos estigmas de excesso presentes no poema. Note outros, como a progressão «desce» - v. 3; «invade» - v. 4, «se junta» - v. 7, «alastra» - v. 8, e a anulação de diferenças (como em «... pólen do fogo/se junta à nascente...»·- fogo e água con-fundem-se).

 

- Note ainda que a progressão no desejo tem a ver com a série «lábios»-«garganta»-«peito»-«flancos» e «da cintura aos joelhos» que omite a zona que «queima», deixando-a como zona inter-dita, na atitude do voyeur; a sugestão é bem mais eficaz que a visão em termos de erotismo, como diz Roland Barthes: «o lugar mais erótico de um corpo não é o ponto em que o vestuário se entreabre? [...] é a intermitência [...] ... que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a camisola), entre duas margens (a camisa entreaberta, a luva e a manga) [...]». (O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, s/d; p. 44.)

 

- Veja que a última estrofe define melhor o desejo como produto da relação amorosa, mas dá ao «Retrato» a dimensão «Ardente»: «iluminar», ter a «música», é saber que o espaço «Entre lábios e lábios» é definido por «lábios teus» (v. 1) e «meus» - para te percorrer o corpo e para te dizer, para te possuir no corpo e no dizer o corpo, instituindo a palavra como potência (também) sexual, o poema como «Retrato Ardente», como «Corpo Habitado».

 

Poemas de Eugénio de Andrade - O Homem, a Terra, a Palavra. Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Paula Morão. Lisboa: Seara Nova/Editorial Comunicação, 1981


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CARREIRO, José. “Retrato ardente, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 15-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/retrato-ardente-eugenio-de-andrade.html


domingo, 14 de fevereiro de 2021

Espelho, Eugénio de Andrade


Fotografia de Eric Guichaoua Serra

 

ESPELHO

 

Que rompam as águas:

é de um corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,

nem outro espelho;

nunca tive outra casa.

 

É de um rio que falo;

desta margem onde soam ainda,

leves

umas sandálias de oiro e de ternura.

 

Aqui moram as palavras;

as mais antigas,

as mais recentes:

mãe, árvore,

adro, amigo.

 

Aqui conheci o desejo

mais sombrio,

mais luminoso;

a boca

onde nasce o sol,

onde nasce a lua.

 

E sempre um corpo,

sempre um rio;

corpos ou ecos de colunas,

rios ou súbitas janelas

sobre dunas;

corpos:

dóceis, doirados montes de feno;

rios:

frágeis, frias flores de cristal.

 

E tudo era água,

água,

desejo só

de um pequeno charco de luz.

 

De luz?

Que sabemos nós

dessas nuvens altas,

dessas agulhas

nuas

onde o silêncio se esconde?

Desses olhos redondos,

agudos de verão,

e tão azuis

como se fossem beijos?

 

Um corpo amei;

um corpo, um rio;

um pequeno tigre de inocência

com lágrimas

esquecidas nos ombros,

gritos

adormecidos nas pernas,

com extensas, arrefecidas

primaveras nas mãos.

 

Quem não amou

assim? Quem não amou?

Quem?

Quem não amou

está morto.

 

Piedade,

também eu sou mortal.

Piedade

por um lenço de linho

debruado de feroz melancolia,

por uma haste de espinheiro

atirada contra o muro,

por uma voz que tropeça

e não alcança os ramos.

 

De um corpo falei:

que rompam as águas.

 

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro, 1977



 

LINHAS DE LEITURA:

 

«Corpo» é neste poema reescrito por uma série de equivalentes: «pátria» (v. 3), «espelho» (v. 4), «casa» (v. 5), «rio» (vv. 6, 22, 24, 44), «tigre de inocência» (v. 45); estes elementos evocam já a infância e a mãe, que por sua vez atrai «palavras» que «moram» «aqui» (no poema, visto como casa): «mãe, árvore,/adro, amigo» (vv. 13-14), recobrindo a relação Mãe-Natureza-Aldeia-Outro. «Aqui» é pois lugar (casa, corpo?), como se confirma pelo advérbio «onde» (vv. 19 e 20), lugar «onde nasce o sol» e «a lua» (v. 20); nascer remete o leitor não só para os vv. 1 e 68, mas para a anulação de contrários já apontada: «sol» torna-se igual a «lua», «corpo» a «rio».

Faça o levantamento deste processo no poema; verá assim que o «Espelho» é o lugar de fixação do Passado, é o poema, é a tentativa de que o passado evocado («De um corpo falei», v. 67) se repita no futuro que o presente aponta («que rompam as águas», v. 68). Escrever o poema, ver-se no espelho, é pois tentar anular os contrários, estabelecer a igualdade inicial (iniciática?), eliminando a diferença, perturbadora do amor.

 

Poemas de Eugénio De Andrade - O Homem, a Terra, a Palavra. Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Paula Morão. Lisboa: Seara Nova/Editorial Comunicação, 1981

 



 

O ESPAÇO ELEMENTAR E A CONFIGURAÇÃO DO HOMEM NA POESIA DE EUGÊNIO DE ANDRADE

 

Espelho” é um poema longo, composto por versos brancos e livres, agrupados em doze estrofes de tamanhos variados, cuja temática já se revela a partir do título, espelho é aquilo que reflete algo; contudo, “o que” e “como” reflete são as discussões que esse poema suscita.

O poema é estruturado a partir de anáforas e antíteses de valor metafórico, que vislumbram dois momentos distintos. O primeiro (revelado pelas seis primeiras estrofes) apresenta o momento presente, no qual o eu-lírico propõe-se a falar de um corpo, enaltecendo suas características, dentre as quais a principal é refletir a vida. O segundo (sexta à décima segunda estrofe) volta-se a recordações passadas, fazendo questionamentos e reflexões acerca dessas vivências; e encerra-se com o fechamento de um ciclo.

Atentando para os recursos estilísticos, observa-se a principal metáfora do poema, o espelho, que, gradativamente e, sempre permeada pelos elementos da natureza, transfigura-se no corpo, na casa, no rio, em janelas sobre dunas, nos montes de feno, flores de cristal, charco de luz, pequeno tigre, e, sobretudo na palavra. Dessa maneira, os elementos naturais que estão intrínsecos à vida, aqui se revelam pelas imagens correspondidas: a terra é configurada pela pátria, casa, margem, árvore, colunas, dunas, montes de feno, pequeno tigre, muro e ramos; a água e tida pelo rio, frias flores de cristal e lágrimas; o ar é visto por “nuvens altas” e pelo adjetivo “leves” e o fogo, pelo sol, “olhos redondos agudos de verão”.

Sob essa perspectiva de leitura, a primeira transfiguração do espelho é em corpo/rio; “Que rompam as águas/é de um corpo que falo. Em seguida, por relação de contigüidade, pautada ora na anáfora, ora no paralelismo, o corpo é descrito como pátria, espelho, casa: “Nunca tive outra pátria,/nem outro espelho;/nunca tive outra casa”. Esse corpo é apresentado como um lugar, idéia justificada pela anáfora “aqui” e pelos substantivos a ele referentes: pátria, casa, desta margem. Ao longo do poema, figura-se em outras imagens, como o espelho, a água (a palavra) que tudo reflete, mas sempre volta a si: “Sempre um corpo/sempre um rio/corpos ou ecos de coluna/ E tudo era água”.

O corpo/espelho reúne em si características contraditórias (como a vida), pois ao mesmo tempo em que é figurado através de elementos concretos, como casa, pátria, rio, janelas sobre dunas, corpos doirados, flores de cristal, é um corpo que abarca em si sentimentos contraditórios (“Aqui conheci o desejo/mais sóbrio/mais luminoso/a boca/onde nasce o sol/onde nasce a lua”) e os reflete. A idéia de contrariedade também é observada pelos advérbios “nunca/sempre”.

Permeia o poema a descrição de um ciclo (do rio, da vida, da palavra/poesia). Revelando o início: “Que rompam as águas/é de um rio que falo”; “Aqui moram as palavras”; sua continuidade, reiterada pelo advérbio “sempre”: “E sempre um corpo/sempre um rio”; suas transformações: “Corpos ou ecos de colunas/rios ou súbitas janelas/sobre dunas/corpos;/dóceis, doirados, montes de feno/rios;/frágeis, frias flores de cristal” e o seu fim, que se reinicia: “De um corpo falei:/que rompam as águas”.

A corporeidade dada à palavra é vista por meio de uma linguagem plástica, que revela um movimento de metáfora pelo qual a palavra é corpo, é rio, é desejo, é boca, é flor, é luz, é olho agudo de verão, enfim, a palavra é espelho que reflete a vida (que cumpre o seu ciclo, com suas transformações), pois ela é o próprio corpo que vivencia tudo isso. Inúmeras imagens, pois, são refletidas nesse jogo de luzes e sombras, tidas pelas palavras que se repetem anaforicamente, se contradizem ou se transformam. Um exemplo dessa linguagem visual, no poema, é a imagem que se forma de um rio em movimento, claro, luminoso, fluido; sobrepondo-se à imagem de um corpo jovem, sensual, que vivencia o amor, mesclando-se à imagem da natureza, ao mesmo tempo expectadora e ativa, com a luz do verão a produção de frutos, flores na primavera; tudo isso num movimento sensual da vida, que se repete, se transforma, enfim, se reflete: “Aqui conheci o desejo”, “Desses olhos redondos/ agudos de verão/ e tão azuis/ como se fossem beijos?”, “Um corpo amei/ um corpo, um rio/um pequeno tigre de inocência”, “Aqui moram as palavras/as mais antigas/ as mais recentes”.

Na visualização das imagens emanadas pelo poema, o cromatismo é bastante importante, pois a luminosidade da vida se presentifica através das cores tidas pelos corpos que as reluzem: as sandálias de oiro às margens do rio, o desejo luminoso de um corpo, o nascimento do sol, os corpos doirados montes de feno, as flores de cristal, um pequeno charco de luz, os olhos agudos de verão e tão azuis.

A musicalidade faz-se presente nesse poema por meio das anáforas reiterativas dos mesmos sons, aliadas às aliterações das nasais /m, n/, sibilantes /f,s/ e palatais /l,lh/ proporcionam a sensação do som rumoroso, liquefeito e contínuo das águas de um rio.

Quanto à construção sintática, observa-se que o poema, numa atitude retórica, apresenta os mesmos versos no início e final do texto (com exceção do verbo final, no passado, revelando que o tempo cumpriu o seu ciclo e iniciará novamente). Contudo, os versos finais estão postos como se fossem reflexos num espelho, reiterando o plano semântico: “Que rompam as águas: é de um corpo que falo” x “De um corpo falei: que rompam as águas”. Assim, a idéia que fica é da poesia-espelho que tudo reflete, porque é a própria vida, na sua força natural da água, do amor, com suas contradições e súplicas. A palavra que no poema reflete o começo e o fim é a realidade da vida, no seu ciclo.

 

Amanda Mantovani, A palavra-imagem em poemas de Eugênio de Andrade: uma leitura dos elementos míticos: o fogo, a água, o ar e a terra como produção de sentido. Universidade Estadual de Maringá - Centro De Ciências Humanas, Letras e Artes, 2006.

 

William Pye, Narcissus (1969)

 

A POÉTICA DE EUGÊNIO DE ANDRADE E A SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO

As afirmações acerca do espaço no universo poético revelam-se por meio da palavra, como no poema “Espelho”, que apresenta a primeira transfiguração do espelho, que sucede nas palavras “corpo” e “rio”, nos versos, “Que rompam as águas / é de um corpo que falo”. O corpo é descrito nas figuras da pátria, espelho e casa: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho; / nunca tive outra casa”. Apresentado como um lugar (pátria, casa), ele se figura em outras imagens como o espelho, a água (a palavra) que tudo reflete, mas, na intenção de se encontrar, sempre volta a si própria: “Sempre um corpo / sempre um rio / corpos ou ecos de coluna / E tudo era água” (Mar de setembro, 2011, p. 132-134).

Fica evidente que a palavra adquire status de lugar, concretizado por elementos contidos nos versos, todos são o “lugar” onde a vida acontece com sua força natural e material e suas contradições, súplicas, lembranças, desejos, descobertas que, num ir e vir espelham esse ciclo de viver (começo e fim). Desvela ao homem a sua materialidade / humanidade, porque é a própria vida que faz viver: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho / Aqui moram as palavras: / Aqui conheci o desejo / E sempre um corpo / sempre um rio. (Mar de setembro, 2011, p. 132-134). Conclui-se que o poema “Espelho” é o lugar reinventado pelo poeta. Para Santos e Oliveira (2001), a imagem e o cenário apresentam-se como forma efetiva de revelação lírica e, nesse caso, a poesia torna-se o espaço em constante mudança, representa a vida e o homem na sua dialética transformação.

A palavra ao refletir o começo e o fim, a vida, o homem e suas transformações é o “lugar” (espaço poemático ou imaginário) onde as mudanças acontecem e o homem se reinventa através desse jogo metafórico e retórico de imagens construídas. Conforme Blanchot (1987), o espaço cumpre seu papel transformador e transcendental, ao promover a interiorização dos elementos, possibilitando a formação de um espaço imaginário. Nesse espaço, está presente a revelação lírica, compreendida como a consciência da célere condição humana e dos inquietantes questionamentos diante das transformações contraditórias e perturbadoras, como nos versos: “Que sabemos nós, / dessas nuvens altas, / dessas agulhas / nuas / onde o silêncio se esconde / desses olhos redondos, / agudos de verão, / e tão azuis / como se fossem beijos?” (Mar de setembro, 2011, p. 132-134).

Nos versos desse poema, os “olhos redondos agudos de verão e azuis como beijos” avistam um exemplo do que Blanchot (1987) afirma sobre as imagens caladas pelo poeta, que ecoam no texto com um profundo significado ao leitor. Ratificam a relação do homem com o espaço, proposta por Heidegger (2004) pelo distanciamento e direcionalidade, segundo as quais o homem pode outorgar ou não, o valor de existência aos elementos espaciais que o circundam, atribuindo-lhes valores e interagindo com eles. Os olhos “agudos de verão” adquirem valor vivaz e envolvente como um beijo.

 

Amanda Rodrigueiro, A poética de Eugênio de Andrade: figurações do espaço. Universidade Estadual de Maringá - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2017.

 

YannAudino /MJ

 



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***

 


William Pye_Narcissus (1969)



Que reflete o espelho?

A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência.


 

Ô miroir!

Eau froide par I 'ennui dans ton cadre gelée

Que de fois et pendant des heures, desolée

Des songes et cherchant mes souvenirs qui sont

Comme des feuilles sous ta glace au trou profond,

Je m 'apparus en toi comme une ombre lointaine,

Mais, horreur! des soirs, dans ta sévère fontaine

J'ai de mon rêve épars connu la nudité!

Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867

 

Ó espelho!

Água fria pelo tédio no teu quadro gelada

Quantas vezes durante horas, desolada

Dos sonhos e procurando as minhas recordações que são

Como folhas sob o teu vidro no poço profundo,

Apareci-me em ti como uma sombra longínqua,

Mas, horror! certas noites, na tua severa fonte

Do meu sonhar disperso conheci a nudez!

Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867

(Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra in “Espelho”, Dicionário dos Símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Lisboa: Teorema, 1994.

 

***

 

Gaston Bachelard inicialmente apresenta o espelho como um simples reflexo, mostrando que a água é o “espelho das vozes”, de Narciso e do “espelho velado”. Mas em A poética do espaço e A poética do devaneio, o espelho está voltado para o interior do ser humano. O sonhador vai além da superfície, vai à profundeza do seu ser, mirando-se em sua obra poética. Eis por que a criação artística duplica a obra e o seu criador. 

(Agripina Ferreira, Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos [livro eletrónico] Londrina : Eduel, 2013)

 

 

 





CARREIRO, José. “Espelho, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 14-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/espelho-eugenio-de-andrade.html



sábado, 13 de fevereiro de 2021

Alba, Eugénio de Andrade


"O happy day",
Félix Frédéric d'Eon, 2021
 

 

ALBA

 

Como se não houvera

bosque mais secreto,

 

como se as nascentes

fossem só ardor,

 

como se o teu corpo

fora a vida toda -

 

o desejo hesita

em ser espada ou flor.

 

Eugénio de Andrade, "Alba; Tema e variações em tom menor". In: Revista Colóquio/Letras. Poesia, n.º 1, março de 1971, p. 68-69.



Por cima da pulsão lírica, o título programa a leitura do texto ao remeter para um género da literatura popular que descreve "o aproximar do amanhecer depois do encontro de dois amantes".

O que no texto é símbolo e metáfora, no título é chave de decifração.

As palavras "corpo" (v. 5) e "desejo" (v. 7) colocam-nos no âmago da poética eugeniana, isto é, na pulsão homoerótica perante o objeto de desejo designado como "bosque mais secreto" (v. 2) - Que imagens do corpo vos sugere esta expressão?

Depois de enumerar o seu "ardor" (v. 4) libidinoso nas três primeiras estrofes, o sujeito lírico revela o desejo versátil que "hesita / em ser espada ou flor" (vv. 7 e 8).  É evidente o homoerotismo dos símbolos em antítese (espada como símbolo fálico e flor como recetáculo deste), pois que remetem concretamente para a penetração ativa  ou passiva.

 

José Carreiro, “Alba (Eugénio de Andrade)”, Folha de Poesia 2021-02-13

<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html> 

 

 

INTERTEXTUALIDADE     |    Novas Cartas Portuguesas



 


Alba

Como se não houvera

bosque mais secreto

(…)

Eugénio de Andrade

 

Maria atira para trás o lençol. devagar:

o calor do quarto empasta-lhe os cabelos num brando suor, às têmporas, ao pescoço, aos ombros, sobre a almofada; volta-se, consciente do silêncio da casa, do jardim imenso. O terrível silêncio do bosque:

«O bosque com as suas ledas sombras, as suas ternas saliências, o seu verde húmido de água; dunas As suas dunas de pássaros adormecidos. A sua dormência uterina, a sua voragem quase monstruosa onde mergulharia, se envolveria, despida de si por completo.»

— Mas que bosque, Maria, que loucura, que invenção? — diz ele enquanto a acaricia, lhe beija os peitos soltos sob o fato, não querendo ou podendo reparar-lhe no vazio dos olhos, no crispado dos lábios, na indiferença dos braços. No medo crescente, todos os dias maior, possessivo, envolvente, radical, por dentro das pupilas verdes, toldadas; um verde cinzento já sem transparências.

Uma manhã em que Ana se lhe demorou mais no colo, disse baixo, como se fosse um segredo entre as duas:

— «Anda minha filha, vamos para o bosque.»

Depois riu-se, baixo, e correu as mãos pelo rosto, indo encostara testa nos vidros momos da janela que dava para o jardim imenso com as suas dálias, os seus crisântemos, os seus alucinantes malmequeres amarelos, a perder de vista.

— Que bosque, Maria? Mas que bosque... que caminho? Ali é o portão, depois as casas, as pessoas, Maria; mas que bosque estás sempre a inventar, que domínio, que bosque, meu amor; que rio, que desatino?

Maria atira para trás o lençol de linho branco, devagar; o calor da tarde agarra-se-lhe à pele, ao sono mal desfeito ainda, ao corpo que a camisa de noite, de tom rosado, dormente, exibe mais do que se estivesse nu.

Maria sai da cama, escorrega para o chão as pernas altas, levanta os braços e despe-se, entontecida, numa leve, leve tontura ou náusea a tomar conta de si... De pé, espera um breve segundo antes de contornar a cama, afastar os cortinados brancos, na renda larga, trabalhada; os cortinados assim como os lençóis, de branda fragrância suspensa; os cortinados assim como a casa, de macia transparência a delinear a nudez, a delinear as ancas. As pernas longas, pálidas, tensas, vergam-se ao de leve, mas logo se firmam a aguentar do corpo o peso; as ilhargas quentes, secas, lentas; a cintura recurvada aos dedos. a toda a violência.

E brandos são os pés agora no lajedo aceso do terraço sob o sol. Brandos no passo incerto, breve. Sereno o movimento posto de vidro no gesto cauto, vigilante.

Largo o risco traçado pela sombra que o corpo projecta, remove, doma, cresce e floresce na própria sombra. Enquanto Maria agora desce novamente, transpõe o perigo dos outros e desce ainda, no bosque que tão bem conhece, embora lá nunca tenha na realidade ido. Que meigas folhas a roçar os lábios, os seios na terra onde pernoita o tempo, o corpo recolhido, acolhido na erva, à mistura com o sabor ácido do rio. Maria fecha os olhos e sabe que adormece, ali tão a resguardo, tão tranquila, tão esquecida de tudo, tão desarmada, os joelhos erguidos, junto à boca, como nela estivera já a filha.

 

Querida Mãe:

Mando-lhe a Ana que aqui não pode continuar. Tome conta dela, distraindo-a do que por cá se passou e ela viu.

Maria parece ter enlouquecido (poucas esperanças de curá-la nos dão os médicos) e o Francisco nega-se à verdade, os dias metido no quarto dela, onde se fica em silêncio a olhá-la como se a quisesse despertar para a vida.

Ralo-me por ele, no entanto não te preocupes de mais, que eu me encarregarei de o convencer (conheço meu irmão) a internar Maria numa clínica.

Não fales à Ana, da mãe, é preferível que comece já a esquecê-la, pois melhor seria não lembrá-la nunca como sempre foi, Bem sabes que jamais previ algo de bom deste casamento. Mas agora que aqui estou, tudo se arranjará e há-de voltar a dantes.

De volta espero levar-te o Francisco. Prometo-te. Entretanto vou dando notícias.

Beijo-te afectuosamente.

Tua filha dedicada

Mariana

9/4/71

 

"Sor Juana y La Virreina", Félix Frédéric d'Eon, 2020



ALBA

 

As cool as the pale wet leaves of lily-of-the-valley

She lay beside me in the dawn.

Ezra Pound

 

ALBA

 

Como se não houvera

bosque mais secreto,

 

Como se as nascentes

fossem só ardor,

 

Como se o teu corpo

fora a vida toda,

 

O desejo hesita

em ser espada ou flor.

 

Eugénio de Andrade

 

BEJA E VERONA AO MESMO MADRUGAR

 

— Volta à redoma farta onde redondos cantam os gerânios

vem à noite amarela que te faço no poço dos meus braços

 

— Vou que de nada dizes o que me consegues

vou porque me tomaste pelo lado manso

 

— Volta ao lado de dentro onde estão guardadas as palavras boas

volta ao rigor do riso

que eu te fiz silêncio

eu te guardei brava

eu te pintei solta

por um preço alto

 

— Vou pela vela acesa ao pinheiral novo

suspensão dos teres

ao lugar dos brados

que não demos antes

 

— Dança pelo teu segredo uma casa aberta

— Vem a contar-me as horas por dentro dos nomes

— Minha espada dada dorme à tua beira

— Rosa verde clara senhor do primeiro

— Casada de mim eu não sei quem sou

— És sobre o meu seio

— Dorme sossegada

     minha água lisa

     face onde me estou.

9/4/71

 

Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta. Lisboa: Estúdios Cor, 1972 (1.ª edição)

 


 

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CARREIRO, José. “Alba, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 13-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Litania, Eugénio de Andrade


 

LITANIA

 

O teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes;

as mãos, de certo modo, irresponsáveis,

e contudo sombrias, e contudo transparentes;

 

o triunfo cruel das tuas pernas,

colunas em repouso se anoitece;

o peito raso, claro, feito de água;

a boca sossegada onde apetece

 

navegar ou cantar, ou simplesmente ser

a cor dum fruto, o peso duma flor;

as palavras mordendo a solidão,

atravessadas de alegria e de terror;

 

são a grande razão, a única razão.

 

Eugénio de Andrade, Até Amanhã. Lisboa, Guimarães Editores, 1956

 

 

Tomamos o poema como uma espécie de prece e possível canção constituída por uma enumeração de invocações do corpo (“rosto”, “dentes”, “mãos”, “pernas”, “peito”, “boca”), que são a forma de representar o objeto de desejo, o qual poderá resgatar o sujeito lírico da "solidão" (v. 11), quer presencialmente, quer por via da memória que as palavras e o canto convocam.

As palavras consubstanciam a vontade de "cantar" (v. 9), mas também a "alegria" do desejo ou mesmo o "terror" (v. 12) que interfere na relação com o tu, aquele que surge no poema identificado sugestivamente como o de "peito raso". Dito com os termos metafóricos do texto: que caracterizam o ato de "navegar" no "peito raso, claro, feito de água" (v. 7) do outro – plausivelmente uma figura masculina, se na nossa leitura optarmos por uma hermenêutica que liberte a poética eugeniana do tabu que enfumou o século XX e que levou o autor por uma homossensualidade enviesada, por uma voz "segura e trémula", como diria Manuel Gusmão.

Esta designada litania (variante culta de ladainha, palavra que chegou ao português por via popular) tem como responsório o verso final que surge isolado, qual um refrão "profano" que poderia ser repetido no final de cada estrofe, se se quisesse musicar e cantar.

Assim, “a grande razão, a única razão” (v. 13) está na pulsão amorosa, mais ou menos inquietante perante o corpo-conflito, em que o outro é o lugar “onde apetece // navegar ou cantar ou simplesmente ser" (vv. 8 e 9), como diz metaforicamente o sujeito lírico: ser "a cor dum fruto, o peso duma flor" (v. 10).

 

José Carreiro, “Litania (Eugénio de Andrade)”, Folha de Poesia 2021-02-07

<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html> 

 

EUGÉNIO DE ANDRADE


INTERTEXTUALIDADE

 

ALGUÉM LIA O ECO DE UM ECO

 

É uma voz. segura e trémula a ouves / e

rigorosa é; e diz em voz alta a litania.

Não sabes bem se é do passado

que vem; ou se do futuro chega

despedindo-se. Sabes que não é presente

a luz, a chama ou o luar que nela vibra.

Recordas, porque inventas: Ela é o eco

da invenção de um outro, quando diz

 

o teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes.

Sabes então que feroz é também essa voz

que de cor diz os versos. E tu escutas

sem conto essa ferocidade que se quebra

e de um para o outro verso estremece:

o triunfo cruel das tuas pernas;

colunas em repouso se anoitece;

 

A voz não a ouves agora. Não está aqui.

Mas há uma praia do tempo, uma noite branca

fulgurando entre mundos: e o poema

regressa à impossível presença.

Lês em silêncio; os dedos tacteando

o eco de um eco. Recordas segundo a invenção.

E o poema traz consigo a voz que ele próprio

escreveu: essa voz emprestada

que um dia te inventou para o amor:

 

a razão enquanto ardia, a única razão.

 

Manuel Gusmão, Migrações do Fogo. Lisboa, Editorial Caminho, 2004


 ***

 

A EUGÉNIO DE ANDRADE GLOSANDO A LITANIA

 

Sabia, sei ainda, de cor a Litania,

em que um rosto inclinado era

a razão, a única, na vida

para que com o vento elas viessem,

as palavras, de sol atravessadas e do

medo da solidão, metades

do mesmo mundo, dia

e noite, e as mãos irresponsáveis,

também elas sombrias, transparentes

 

Não, não era somente claridade

nem só o sol amigo irradiava

da brancura feroz daqueles dentes;

cruéis eram as pernas triunfantes

na noite que chegava: e esse claro-

-escuro essa traição fiel à

realidade, um corpo dividindo

as palavras, alegria terror, sombrio

transparente, triunfo crueldade,

poesia que não era apenas sol

mas também solidão escuridão

era, passara a ser, minha verdade

 

Gastão Cruz, Repercussão. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

 

 

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CARREIRO, José. “Litania, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html