quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril: 50 anos | Camões: 500 anos


 

Há 100 anos, celebrou-se em Portugal o 4.º centenário de Luís de Camões. Foi estreada na Faculdade de Letras de Lisboa uma nova cadeira, chamada Estudos Camonianos. Na aula inaugural, o Prof. José Maria Rodrigues sintetizou desta maneira a razão de lermos o maior poeta de Portugal:

«Estudemos "Os Lusíadas", para neles haurirmos o mesmo estímulo que impulsionou o Poeta a escrevê-los; debruçados sobre as suas estâncias, compenetremo-nos bem do nosso glorioso passado e sentiremos pulsar em nós uma alma nova, um desejo ardente de vermos respeitado e engrandecido o nome português, de vermos novamente esboçar-se um Portugal maior.»

Lidas no ano em que celebramos o 5.º centenário de Camões, as palavras deste professor e padre católico deixam-nos uma sensação estranha. O que é isso, «um Portugal maior?» A terminologia faz-nos pensar hoje no horrível Donald Trump e no seu slogan «Make America Great Again».

Poucos anos depois da lição inaugural de José Maria Rodrigues, Portugal passaria a ser dominado (e sê-lo-ia durante 48 anos) pela ditadura salazarista. Na vizinha Espanha, surgiu Franco; em Itália, já surgira Mussolini. A União Soviética e a China estavam mergulhadas nas trevas de regimes totalitários. Quanto ao nazismo, nascia por volta desta altura: a lição de José Maria Rodrigues foi proferida na Faculdade de Letras de Lisboa em 1924, mas foi publicada (em Coimbra, curiosamente) em 1925, o ano da publicação de «Mein Kampf» de Adolf Hitler.

Deu-se a 2.ª Guerra Mundial, seguida pela Guerra Fria. E, em Fevereiro de 1961, começou a Guerra Colonial Portuguesa, que durou até ao 25 de Abril de 1974. O povo português que, em séculos anteriores, investira na escravização de africanos no comércio negreiro tinha passado agora a assumir a missão de matar africanos. Em nome de «um Portugal maior».

A liberdade que o 25 de Abril nos trouxe há 50 anos permite-nos afirmar sem medo que o maior argumento contra esse «Portugal maior» são os crimes contra a humanidade que foram necessários para o conseguir: o comércio negreiro, a exploração desumana do Brasil e de outras colónias, o terror religioso da Inquisição. E, como se esse passado deprimente não bastasse, a ditadura fascista de Salazar ainda obrigou a geração do meu pai a envolver-se, contra os ditames da sua consciência de católico progressista, numa guerra colonial. O serviço militar que o meu pai cumpriu na guerra em Angola foi um trauma que o marcou para toda a vida. Participar, obrigado, na matança de angolanos deixou sequelas de que ele nunca se curou. Vale a pena, esse «Portugal maior»?

Dir-se-á que essa é, justamente, a ideia de Portugal que Camões defende n'«Os Lusíadas». Mas há muito que foram identificados (por António José Saraiva, Helder Macedo e outros) os elementos deste poema complexo e subtil, os quais nos levam a perceber que Camões nos apresenta, n' «Os Lusíadas», duas faces da mesma moeda: uma face é a «glória» do império português; a outra face é o custo humano que ele implica.

Não podemos esperar de Camões, como é óbvio, que ele escrevesse no século XVI como um professor de Estudos Pós-Coloniais numa universidade contemporânea. Camões foi um homem do seu tempo, que trabalhou com os conceitos vigentes na época em que viveu. Mas se lermos «Os Lusíadas» tomando como guia os estudos de António José Saraiva e de Helder Macedo (há também o livro um pouco simplista, embora bem intencionado, de José Madeira, «Camões contra a Expansão e o Império», 2000), veremos que, afinal, a epopeia camoniana não é aquilo que o Portugal de Salazar quis ver nela.

Camões compôs uma epopeia polifónica, em que várias vozes têm lugar de fala. Temos de ouvir todas as vozes, porque é a sua soma que nos traz a voz do próprio Luís de Camões. Quando o Velho do Restelo chama os bois pelos nomes e recusa a resignificação como «esforço e valentia» da «bruta crueza e feridade» das conquistas portuguesas (Lusíadas 4.99), temos de perceber - como António José Saraiva percebeu tão bem - que o Velho do Restelo também é Camões.

Camões coloca o contraditório da mensagem imperialista na boca de várias personagens, mas acima de tudo temos de ler com atenção os muitos desabafos n'«Os Lusíadas» escritos na voz do próprio cantor épico: é nesses desabafos que intuímos quanto Camões estava lúcido no tocante à realidade do imperialismo português.

Cada vez mais me convenço disto: se lermos «Os Lusíadas» com olhos para as atitudes diferenciadas que Camões adopta na abordagem ao fenómeno «Portugal», veremos que a sua intenção não foi de propor um «Portugal maior» (como disse José Maria Rodrigues), mas sim um Portugal MELHOR.

Viva o 25 de Abril! Y

 

25 de Abril: 50 anos | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 24-04-2024

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domingo, 21 de abril de 2024

Luís e Bárbara | Camões: 500 anos

«Olympia», Édouard Manet

 

Apesar das suas muitas afinidades com os dois maiores poetas da Roma antiga, Camões foi mais longe do que Vergílio e Horácio. Mais longe na poesia e mais longe na vida. Vergílio nunca escreveu poesia lírica; Horácio nunca escreveu poesia épica: mas Camões triunfou nos dois géneros. Na vida, Vergílio e Horácio viajaram de Itália para a Grécia e voltaram depois a Itália. Mas Camões foi o primeiro génio da literatura ocidental a passar a linha do Equador: foi o primeiro a conhecer o hemisfério sul. Viu gentes e paisagens novas; sentiu climas diferentes; e experimentou costumes com que nenhum Grego ou Romano alguma vez sonhara. Além disso, Camões foi o primeiro autor europeu a escrever um poema de amor dedicado a uma mulher não-europeia.

Mas vamos por partes. Ao contrário de «Os Lusíadas» (1572), a poesia lírica de Camões só foi publicada quinze anos depois da morte do poeta (Camões morreu, como sabemos, a 10 de junho de 1580). Quem comprasse a primeira edição das «Rimas» camonianas em 1595 (o livro tem o título helenizante «Rhythmas») teria encontrado, quase no fim do livro, um poema surpreendente.

A explicitação de que o poema se encontra quase no fim do livro (no fólio 159; os poemas acabam no fólio 166) é relevante. Porque todo o livro, nos seus géneros poéticos canónicos (sonetos, canções, etc.), enaltece uma figura feminina de classe aristocrática, elogiada pela sua brancura de neve e pelos seus cabelos louros. No fólio 159, porém, deparamos com uma figura feminina bem diferente.

«Pretos os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos». O poeta que escreve estes versos tem consciência de que está a impugnar o estereótipo dos cabelos louros.

«Pretidão de amor, / tão doce a figura, / que a neve jura / que trocara a cor». Com estes versos, contraria-se o lugar-comum da pele branca. A mulher por quem o autor destes versos se declara apaixonado é negra.

O poema que estou a citar tem, na primeira edição de 1595, a epígrafe «Endechas a uma cativa com que andava de amores na Índia, chamada Bárbara». (Por «endechas» entenda-se uma estrofe de quatro versos.) O próprio poema salienta o estatuto de pessoa escravizada logo nos versos iniciais: «Aquela cativa, / que me tem cativo...» Foi o próprio Camões que escreveu «Transforma-se o amador na coisa amada». Neste poema, mercê do seu amor por uma escrava, ele incorpora a identidade da amada como pessoa escravizada e define-se a si mesmo como escravo.

Mas em Camões, nada é tão simples como parece à primeira vista. E quanto mais nos debruçamos sobre a análise da sua poesia, mais nos damos conta de que há camadas quase infinitas de sentido; e que descodificar Camões não é possível se não nos lembrarmos de que Luís era leitor obcecado de Vergílio, Horácio e Petrarca. Quanto aos dois romanos, têm o hábito curioso de serem o gato escondido com o rabo de fora - mesmo em poemas que, à partida, pensaríamos estarem muito longe das poéticas vergiliana e horaciana.

No poema dedicado à escrava Bárbara, o elegante poeta toscano Francesco Petrarca está bem presente: como afirmei, o poema assume-se como refutação do cânone de beleza feminina que Petrarca glorificou na figura de Laura, mulher branca e loura.

Vergílio e Horácio estão presentes de modo mais subtil. Qual é a tipologia de beleza que é superior? A beleza da pessoa branca ou a da pessoa negra? Vergílio colocou essa pergunta em dois passos das suas Bucólicas; e dá, em ambos, a mesma resposta: a beleza da pessoa negra está no mesmo plano de atractividade da beleza da pessoa branca.

Em Vergílio, o pastor apaixonado Córidon recorda os tempos em que teve um namorado negro, chamado Menalcas; e faz questão de explicitar que não vê diferença entre negro («niger») e branco («candidus»: Bucólica 2.16). No último poema da colectânea das Bucólicas, o aristocrata Cornélio Galo exprime o seu interesse amoroso num jovem negro chamado Amintas e comenta que «também negras são as violetas» (Bucólica 10.39).

Quanto a Horácio, escreveu uma ode célebre (2.4) em que diz a um amigo «Que o amor de uma escrava não te envergonhe». Toda a ode procura valorizar a mulher escravizada e apoiar o amor que um tal Xântias sente por ela. (Na minha edição de Horácio, chamei a esta ode «Aquela cativa que te tem cativo».)

Mas esta ode de Horácio apresenta uma diferença fundamental em relação ao poema de Camões. Pois o elogio que Horácio faz da escrava amada por Xântias assenta no facto de ela ser... branca e loura.

Camões, como sempre, partilha com Vergílio uma sensibilidade especial. E o seu poema dedicado a Bárbara segue a defesa vergiliana da beleza negra.

Ora, esta declaração de amor por uma mulher negra mexeu com as ideias feitas e com os preconceitos dos estudiosos de Camões. O trabalho mais volumoso alguma vez dedicado a este poema é o livro de Xavier da Cunha: um livro com mais de 800 páginas, publicado em Lisboa, em 1893. Embora o título do livro seja «Pretidão de Amor», qual não é o nosso espanto quando nos apercebemos de que a intenção do autor é tentar provar que Bárbara não era negra!

Confundindo a imitação do estereótipo de Petrarca (da mulher branca e loura) nos outros poemas líricos de Camões com o gosto pessoal do homem verídico Luís de Camões, Xavier da Cunha perguntou: «E seria lícito então admitir que um admirador do loiro, como Camões se prezava de confessar-se a cada passo, viesse pôr em relevo o horroroso topete de uma horrorosíssima etíope?» (p. 152).

Na p. 156, Xavier da Cunha escreveu: «aquilo que em linguagem de povos civilizados se entende por amor não creio e não crê ninguém que seja sentimento atribuível a indivíduos que nascem, vivem, e se conservam numa situação de selvagens boçais; e nessas circunstâncias de animalidade está invariavelmente o preto de África.»

Era assim que, para nossa vergonha, se escrevia sobre Camões, em 1893, num livro publicado pela Imprensa Nacional.

Voltemos às palavras do próprio poeta, para nos desintoxicarmos:

«Pretidão de amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor. / Leda mansidão / que o siso acompanha; / bem parece estranha, / mas bárbara não.»


Luís e Bárbara | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 14-04-2024

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domingo, 14 de abril de 2024

Um olho perdido em Ceuta | Camões: 500 anos


 

Se lermos as biografias de Camões (as primeiras são do século XVII), encontraremos a informação de que o poeta cumpriu serviço militar em Ceuta, onde a sua valentia destemida levou à perda de um olho. No entanto, a primeiríssima biografia de Camões (escrita por Pedro de Mariz e publicada em 1613) omite qualquer referência a Ceuta. E também não menciona que Camões tenha perdido um olho.

A estadia de Camões em Ceuta é referida pela primeira vez por Manuel Severim de Faria, na sua biografia camoniana de 1624. E referida, problematicamente, em termos que nos poderiam suscitar esta pergunta: será que Camões esteve mesmo em Ceuta?

A única base em que o biógrafo de 1624 se apoia é uma extrapolação que ele próprio faz a partir da Elegia 2 («Aquela que de amor descomedido»). Nesse poema, há uma passagem onde o Eu lírico diz que está «gastando a vida trabalhosa... ao longo de ũa praia saüdosa».

A praia não é identificada. Mas, mais à frente, o poeta diz que sobe (como se fosse um passeio regular) até ao monte de Hércules perto do mar Mediterrâneo, onde imagina Hércules a matar a serpente que guardava o jardim das Hespérides. Diz também que «estou afigurando / o poderoso Anteu», isto é, o gigante mitológico, morto por Hércules, cujo alegado túmulo ficava perto de Tânger.

A base em que assenta a ideia do serviço militar em Ceuta resume-se a estes versos de sabor fantasista sobre Hércules; num poema, de resto, que nunca alude directamente ao serviço militar; e onde não ocorre a palavra «Ceuta».

Dir-se-á que, no conjunto de quatro cartas em prosa atribuídas a Camões, há uma carta que, nas edições modernas, tem a epígrafe «Escrita de Ceuta». Mas essa epígrafe está ausente da primeira edição (1598). E, na carta propriamente dita, não ocorre a palavra «Ceuta».

Mas não percamos de vista essas cartas escritas por Camões. Pois uma delas é especialmente interessante: contém uma passagem que permitiu ao biógrafo de 1624 deduzir que o problema oftalmológico de Camões ocorrera em Ceuta. Trata-se da carta escrita na Índia em 1553, onde Camões fala de um amigo lisboeta que, «tal como eu, manqueja de um olho». (Já agora, note-se que Camões escreve «tal como eu» em latim.)

O biógrafo de 1624 deduziu, assim, que o problema oftalmológico não podia ter acontecido na Índia, uma vez que Camões se refere a ele como facto já conhecido em Portugal: Camões já teria feito a viagem até à Índia a «manquejar» de um olho. O problema já vinha de trás.

Em que circunstâncias é que Camões teria ficado a manquejar de um olho? O biógrafo seiscentista deduziu que a lesão teria ocorrido em contexto militar, baseando-se noutro poema de Camões, onde se lêem estes versos bastante difíceis de entender:

«Agora, experimentando a fúria rara / de Marte, que cos olhos quis que logo / visse e tocasse o acerbo fruto seu; / e neste escudo meu / a pintura verão do infesto fogo» (Canção 10.167-169).

Como fazer sentido destes versos?

Tentemos. O «escudo meu» pode equivaler a «rosto meu». A «pintura do infesto fogo» pode ser a cicatriz provocada pelos estilhaços de um tiro de canhão. A «fúria rara de Marte» será a guerra. Quanto às palavras iniciais da citação, talvez signifiquem algo como isto: «Marte quis eu visse e tocasse logo com os olhos o fruto amargo da guerra». Ou seja, «Marte quis que eu ficasse imediatamente com um problema nos olhos por causa da guerra».

Repare-se que, neste poema, Camões fala em «olhos», no plural. Mas, na carta escrita da Índia, fala em manquejar de «um olho».

Independentemente disso, temos dois problemas:

(1) O primeiro problema é que inferência de que Camões esteve em Ceuta está ferida de circularidade: o biógrafo chegou a essa ideia sem comprovação externa, baseando-se somente na sua interpretação de um poema onde se fala de forma muito vaga em Hércules e nas Hespérides. É um poema, ainda para mais, que aposta insistentemente no vocabulário da imaginação, o que o torna ainda mais vago («afiguro na lembrança»; «estou afigurando»; «nunca perderei da fantasia»).

(2) O segundo problema é o facto de a lesão oftalmológica, supostamente ocorrida em Ceuta, também constituir uma extrapolação: para ela fazer sentido, temos de juntar as peças de dois textos camonianos diferentes (a Canção 10 e a carta escrita na Índia).

A questão complica-se quando nos damos conta de que, na primeira edição (1595) do poema alegadamente escrito em Ceuta, lemos esta epígrafe: «A D. António de Noronha estando na Índia». Como assim, na Índia?! Se este D. António de Noronha é o seu jovem amigo (que nunca esteve na Índia), a epígrafe só pode significar que é o poeta que está a escrever na Índia. Nesse caso, estaria a lembrar (ou a imaginar) a praia de Ceuta e os lugares míticos de Hércules. Ao contrário da lua de Álvaro de Campos, diríamos que Ceuta começa a afigurar-se menos real.

Mais uma complicação: José Hermano Saraiva achava que a tal carta escrita da Índia (que é o único registo escrito no século XVI a dizer-nos que Camões «manquejava» de um olho) era uma falsificação. Os estudiosos de Camões, de um modo geral, não lhe têm dado crédito. Mas eu pergunto: e se se desse o caso de a carta da Índia não ser autêntica? E de a elegia, supostamente escrita em Ceuta, ter sido um devaneio escrito na Índia, a imaginar uma estadia em Ceuta?

Ficaríamos ainda mais inseguros a respeito de um «facto» que todos pensamos saber sobre Camões: que ele esteve em Ceuta, onde perdeu um olho.

Só mais uma dúvida: qual dos dois olhos faltava a Camões? Desde o primeiro retrato conhecido do Poeta (o de Fernão Gomes, ao que parece feito em vida do poeta, talvez entre 1573 e 1576), o problema oftalmológico incide sempre no olho direito.

O saudoso Vasco Graça Moura comentava, porém, que alguns ilustradores mais tardios transferiram a lesão para o olho esquerdo, dando a imagem de um poeta que - sim - era cego num dos olhos: só que (se não estamos em erro...) no olho errado.

Um olho perdido em Ceuta | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 14-04-2024

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domingo, 7 de abril de 2024

O poeta, o padre e a infanta | Camões: 500 anos

A Infanta D. Maria, por Anthonis Mor van Dashorst


Um livro sobre Camões que ainda hoje nos deixa pasmados é «Camões e a Infanta D. Maria», publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em 1910. O maior motivo de espanto, aos nossos olhos contemporâneos, é que tal livro tenha sequer sido publicado. Na cultura universitária de hoje, com a obrigatoriedade de arbitragem científica feita por dois especialistas (cuja identidade é ocultada ao autor do trabalho proposto), um livro que, como este, contradiz todas as normas académicas nunca teria vindo a lume. O facto de ter sido publicado afigura-se hoje algo de negativo, mas também de positivo. No plano negativo, a sua publicação teve o efeito nefasto de encorajar, meio século depois, José Hermano Saraiva a escrever um livro sobre Camões com a mesma falta de objetividade e de fundamentação. No lado positivo, este livro de 1910 tem, hoje, o efeito salutar de constituir um excelente exemplo: «Camões e a Infanta D. Maria» é tudo o que um livro sobre Camões não deve ser.

O autor do livro foi José Maria Rodrigues, nascido em Valença em meados do século XIX (1857). A sua carreira de padre católico e de professor universitário colocou-o em ambientes contrastantes, desde o Seminário de Braga à então Faculdade de Teologia de Coimbra e, mais tarde, à Faculdade de Letras de Lisboa, onde inaugurou a cadeira de Estudos Camonianos em 1924 (em homenagem ao quarto centenário de Camões). Pelo meio, este letrado monárquico foi professor de Latim dos infantes D. Luís Filipe e D. Manuel (o futuro D. Manuel II, último rei de Portugal). O livro «Camões e a Infanta D. Maria» foi dedicado à memória de D. Luís Filipe, assassinado juntamente com o pai, o rei D. Carlos, em 1908.

O Padre Rodrigues foi, sem dúvida, um homem que leu Camões de forma aprofundada, como se vê pelas suas notas brilhantes sobre problemas textuais em Camões: notas essas que salpicam os rodapés do livro «Camões e a Infanta D. Maria» e que nos dão que pensar ainda hoje. Rodrigues atreveu-se a questionar muitas passagens de Camões que, antes dele, não tinham oferecido dúvidas aos leitores; e não teve qualquer tipo de acanhamento em conjeturar palavras alternativas às que foram transmitidas como sendo de Camões. Mesmo que não concordemos com as suas conjeturas, elas levam-nos a refletir com mais profundidade sobre a frase camoniana. Vou dar só um exemplo: no passo em que lemos, nas edições quinhentistas, «fogo eterno» (Canção 6), Rodrigues achou que Camões escrevera «fogo interno». O problema tem a ver com o lugar que esse poema descreve, problema muito discutido pelos estudiosos de Camões desde o século XVII. Rodrigues achava que era uma ilha vulcânica (daí «fogo interno»). A expressão certa é provavelmente «fogo eterno»; mas a conjetura de Rodrigues obriga-nos a pensar melhor sobre o texto.

Esta queda para as conjeturas acabou por se revelar fatal quando o Padre Rodrigues decidiu conjeturar a identidade da figura feminina de classe alta a quem Camões se dirige como «Senhora» na sua poesia lírica. As hipóteses de entusiastas anteriores de Camões tinham-se centrado em damas da corte portuguesa: D. Catarina de Ataíde e D. Francisca de Aragão. Mas o Padre Rodrigues decidiu apontar lá mais para o alto. Assim meteu-se-lhe na cabeça que a mulher idolatrada por Camões nos seus poemas líricos seria a Infanta D. Maria (1521-1577), filha de D. Manuel I e da sua terceira mulher, Leonor (filha de Joana «a Louca» e irmã do imperador Carlos V).

Rodrigues baseou esta suposição em quê? Em nada. Na p. 2 do seu livro, ele afirma simplesmente que o alvo do interesse do poeta «era a filha mais nova del-rei D. Manuel, a infanta D. Maria»: sem factos, sem argumentos, sem nada. A partir da p. 2, esta afirmação (só pelo ato de ter sido escrita pela pena de Rodrigues) fica dada como certa e segura. E é a partir dessa página que entramos num percurso delirante pela poesia lírica de Camões, em que poema atrás de poema é aduzido como «prova» de uma suposição sem base objetiva externa e que, internamente, nenhum verso de Camões pode provar.

À partida, pensar-se-ia que o próprio Camões (que toda a vida foi pobre) teria juízo suficiente para não andar obcecado com uma princesa das casas reais de Portugal e da Áustria (isto imaginando que ele a teria conhecido pessoalmente, possibilidade da qual não há provas). Mas Rodrigues armadilha o seu livro com frases enviesadas, por meio das quais pretende convencer os leitores da personalidade que ele projetou em Camões. Assim, ele refere-se a Camões como «o genial doido» (p. 2), «o desvairado sonhador» (p. 3), «o tresloucado poeta» (p. 5), «o alucinado poeta» (p. 31), «o arrojado poeta» (p. 56), «loucamente apaixonado pela infanta» (p. 57), «o iludido poeta» (p. 58), «o audacioso poeta» (p. 60), «o tresloucado mancebo» (p. 65), etc.

Ficamos com esta imagem de um génio desequilibrado, obcecado por uma «louca pretensão» (p. 64). E Rodrigues vai imaginando, à medida que cita sonetos e outros poemas de Camões, o que o poeta e a infanta teriam sentido nos momentos em que esses poemas teriam sido escritos (ninguém sabe a cronologia dos poemas de Camões: só sabemos que «Os Lusíadas» foram publicados em 1572). Há um momento em que o poeta fica «doido de contente» (p. 64), decerto em consequência da sua «teimosa leviandade» (p. 70). Mas é claro que a infanta não ia dar «ouvidos a um doidivanas de um poeta» (p. 131). Quando o poeta ouviu dizer que a infanta iria casar com Filipe II (casamento que não aconteceu), «escreveu com lágrimas de sangue este admirável soneto» (p. 157): o soneto é o famoso «O dia em que eu nasci moura e pereça», de cuja autoria camoniana outros estudiosos mais objetivos têm duvidado.

Ao longo do livro do Padre Rodrigues sobre o poeta e a infanta, ficamos sempre espantados como conjeturas apresentadas sem fundamentação numa página viram factos incontestados algumas páginas mais à frente. É como se Rodrigues se visse apanhado pela teia das suas efabulações: quanto mais ele as repetia, mais convincentes elas se lhe afiguravam. O livro é um caso clínico daquilo a que se chama em inglês «delusion».

Vale a pena identificar o primeiro passo de todo este delírio, porque se trata de um erro metodológico em que muitos outros estudiosos de Camões incorreram, desde Manuel de Faria e Sousa no século XVII a José Hermano Saraiva no século XX. Rodrigues tomou como ponto assente que o texto lírico de Camões é o «verdadeiro diário da sua alma apaixonada» (pp. 5-6). Esta premissa - que não pode ser verdadeira, por causa da presença de inúmeras importações de outros autores na obra lírica de Camões, desde Horácio e Ovídio a Petrarca e Garcilaso: o texto camoniano é por definição um fenómeno de ventriloquismo - é a areia movediça sobre a qual todo o edifício interpretativo de José Maria Rodrigues foi construído. Eu acho que, lá no outro mundo, o poeta e a infanta passam mal de rir quando, nas horas vagas do Paraíso, lhes dá para arreliarem carinhosamente o Padre Rodrigues...

 

O poeta, o padre e a infanta | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 07-04-2024

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domingo, 31 de março de 2024

Camões e Jau | Camões: 500 anos

(Camões e o jau António, pelo pintor belga Ernest Slingeneyer)

 

Uma das razões pelas quais a vida de Camões continua a ser um objeto de permanente fascínio é o facto de sobre ela sabermos quase nada. Além da realidade material do livro «Os Lusíadas» publicado em 1572, são poucas as provas documentais que atestam acontecimentos na vida de Camões (note-se que, na sequência do Concílio de Trento, a obrigatoriedade dos registos de batismo só entrou em vigor no reinado do cardeal D. Henrique). O que temos então de concreto? Há o documento do perdão concedido por D. João III (7 de março de 1553), depois de Camões ter sido preso por causa da briga em que se envolveu perto do Rossio (em Lisboa), documento esse que também refere a partida iminente de Luís para a Índia. E há vários documentos relacionados com a pensão («tença») que lhe foi concedida por D. Sebastião.

Estes documentos (conservados na Torre do Tombo) registam os nomes dos pais de Camões (Simão e Ana). O documento de D. João III descreve o pai de Camões como «cavaleiro fidalgo»; Camões é descrito como «mancebo». Especialmente significativo é um dos documentos (1582) que confirma o pagamento da tença à mãe de Camões, porque regista a data em que o poeta morreu: 10 de junho de 1580.

Além destas informações muito parcas, tudo o que sabemos sobre a vida de Camões baseia-se: (1) numa breve passagem sobre Camões na obra historiográfica do seu amigo Diogo do Couto; (2) numa breve anotação de Domingos Fernandes (1607), que dá o lugar do seu nascimento como sendo Coimbra; (3) em quatro biografias escritas no século XVII, mais de três décadas após a morte de Camões.

Os autores dessas biografias foram Pedro de Mariz (1613), Manuel Severim de Faria (1624) e Manuel de Faria e Sousa (1639); e temos ainda uma segunda biografia (póstuma) do mesmo Faria e Sousa (1685), diferente da primeira.

Assim, ao tentarmos reconstituir a vida de Camões, vemo-nos logo confrontados com informações contraditórias. Vejamos estes exemplos.

Quanto ao ano em que Camões nasceu, o primeiro biógrafo (Mariz) nada nos diz (nem regista o ano em que Camões morreu). Informa apenas que o poeta era filho de Simão Vaz de Camões, «natural desta cidade». Qual cidade? O livro em que figura a biografia de Mariz foi publicado em Lisboa (mas Mariz era de Coimbra). Severim de Faria regista que Camões nasceu em 1517, em Lisboa («e não em Coimbra, como alguns cuidaram»). Faria e Sousa (1639) regista também 1517 como o ano do nascimento do poeta, não se comprometendo com o local de nascimento (em vez disso, faz uma comparação entre Camões e o rio Nilo: de um e de outro, desconhece-se o lugar do nascimento).

Mas, na sua segunda biografia de Camões (1685), Faria e Sousa decidiu-se por Lisboa como o lugar em que o poeta nasceu; e afirma que viu um documento de 1550 onde se fazia menção de «Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores de Lisboa na Mouraria; escudeiro de 25 anos, barbiruivo». Conclui que Camões nasceu em 1524.

Ora Faria e Sousa (fidalgo e erudito de Felgueiras, que viveu em Espanha e em Roma) foi um comentador brilhante de Camões, mas é tudo menos fidedigno. Na mesma página em que alvitra 1524 como ano do nascimento do poeta, propõe que Camões veio estudar na Universidade de Coimbra em 1534. Temos logo dois problemas: o caloiro Luís teria então dez anos de idade; além disso, em 1534, a Universidade estava sediada em Lisboa (viria para Coimbra em 1537).

Quanto ao documento que Faria e Sousa afirma ter visto, não inspira muita confiança. Nos seus comentários à obra de Camões, Faria e Sousa está sempre a propor alterações ao texto camoniano com base em manuscritos que ele diz ter visto (sem explicitar onde nem quando; nem que manuscritos seriam). Teve também o péssimo hábito de atribuir a Camões poemas de outros autores; e de lhes alterar os textos a seu bel-prazer. A verdade é esta: apesar de ter sido um comentador genial de Camões (sobretudo por causa da sua espantosa erudição nas letras latinas), Faria e Sousa não é de fiar quando se trata de factos concretos. Esse documento que ele alega ter visto é uma «prova» de facticidade muito duvidosa.

Assim, o dado mais concreto que temos sobre a vida de Camões é a carta de perdão de D. João III (1553), da qual extraímos um elemento curioso sobre a personalidade de Camões: o nosso Poeta fervia em pouca água e era um brigão. Por desconcertante coincidência, este facto verídico (a rixa depois da qual Camões foi preso) não é referido em nenhuma das primeiras quatro biografias de Camões.

O outro facto verídico (a pensão ou tença concedida por D. Sebastião) é referido de forma contraditória. Pedro Mariz (1613) dá a entender que a tença de 15.000 reis seria uma pensão de miséria. Mas Faria e Sousa (1685) exprime a opinião de que era uma excelente pensão. Uma coisa em que todos os biógrafos concordam é a pobreza em que Camões viveu toda a sua vida, devido à sua incapacidade de segurar e gerir o dinheiro. Quanto mais tinha, mais gastava. Nisto, Camões faz-nos pensar em Mozart (que ganhou tanto dinheiro, mas que viveu e morreu esmagado por dívidas).

Destas quatro biografias seiscentistas de Camões ressalta o enorme contraste entre a alegada nobreza da sua linhagem (o poeta é referido como aparentado com os maiores fidalgos de Portugal) e a pobreza na qual sempre viveu. Os biógrafos também salientam as invejas e perseguições de que foi vítima, assim como a ingratidão que Portugal lhe demonstrou enquanto era vivo. Pedro Mariz acertou em cheio quando criticou a «natural propriedade Portuguesa de estimarem mais as coisas de estrangeiros que as suas». Já éramos assim em 1613...

Foi Pedro Mariz (1613) a registar pela primeira vez a figura do escravo que Camões trouxe da Índia para Lisboa: se o Poeta «não tivera um jau, chamado António, que da Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar», não teria sobrevivido. Por «jau» deve entender-se «javanês» (Faria e Sousa [1685] explicita que era «um escravo, cujo nome era António, natural de Java»).

Neste quinto centenário de Camões, penso com muito carinho neste António, javanês, que tratou de Luís quando ele estava prostrado pela miséria e pela doença. Embora Camões tenha morrido sem um tostão num hospício de pobres, ainda bem que houve um António («Jau») no fim da sua vida.

 

Camões e Jau | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 31-03-2024

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domingo, 24 de março de 2024

Rumo ao 5.º centenário de Camões | Camões: 500 anos


 

A Grécia teve Homero e Roma teve Vergílio. Itália teve Dante. Na literatura portuguesa, há um autor que não fica um milímetro abaixo destes três génios supremos da arte poética: Luís de Camões. Na verdade, os três génios supremos da poesia são quatro: Homero, Vergílio, Dante e Camões.

Sabemos que Dante nasceu em Florença e que Vergílio veio ao mundo perto de Mântua. Até sabemos a data exata em que Vergílio nasceu: 15 de Outubro de 70 a.C. Mas, na incerteza sobre o lugar do seu nascimento, Camões é um pouco como Homero. Havia tradicionalmente sete cidades gregas que reivindicavam a honra de terem sido o berço de Homero; mas, na realidade, ninguém sabia onde e quando o grande poeta grego nascera. No caso de Camões, não serão sete as cidades que reclamam (de forma realista...) a sua naturalidade: na contenda estão apenas Coimbra (referida como local do seu nascimento por Domingos Fernandes em 1607); e Lisboa (referida nas biografias que vieram depois).

Nenhum dos primeiros biógrafos de Camões sabia ao certo o ano e o dia em que o poeta nascera. Acabou por se convencionar 1524 ou 1525 como os anos mais prováveis para o seu nascimento, por causa de um alegado indício documental (referido por Manuel de Faria e Sousa no século XVII) de que Camões teria 25 anos em 1550; mas não podemos ter a certeza. Teorias astrológico-astronómicas como as de Mário Saa (1940) e, mais recentemente, de Carlota Simões apontam a possibilidade fascinante de Camões ter nascido a 23 de Janeiro de 1524. Mas, para essa teoria ter chão em que se possa apoiar, é preciso aceitar como autêntico um soneto cuja autoria camoniana já foi posta em dúvida: o magnífico poema «O dia em que eu nasci moura e pereça» (por «moura» entenda-se «morra»), do qual podemos dizer que, se não foi Camões que o escreveu, decerto não se importaria de o ter escrito.

Para a celebração dos 500 anos do poeta, porém, não interessa tanto o rigor (impossível de estabelecer) da data real do seu nascimento, mas sim a oportunidade que esta comemoração oferece aos povos lusófonos de relerem o maior autor da sua língua. Porque, na realidade, a melhor homenagem que podemos fazer a Camões é relermos a sua obra.

E no que consiste essa obra? À semelhança de outros poetas portugueses no século XVI, Camões morreu sem que a sua grande produção lírica (sonetos, canções, elegias, odes, éclogas, redondilhas) tivesse sido publicada. Mas ele teve a sorte de ter conseguido imprimir, em 1572, a sua obra-prima: «Os Lusíadas». Esta epopeia em 10 cantos sobre a primeira viagem à Índia de Vasco da Gama representa um conseguimento extraordinário. Embora muitos outros poetas, depois de Homero e Vergílio, tenham tentado o género épico (tanto em grego e latim como nas línguas vernáculas), o único que (na minha opinião) conseguiu compor um poema que está no mesmo nível da «Ilíada», da «Odisseia» e da «Eneida» foi Camões.

A grande beleza de «Os Lusíadas» está no manejo da língua portuguesa, veículo de expressão que Camões enriqueceu com inúmeros latinismos - como demonstrou, há quase 100 anos, Carlos Eugénio Corrêa da Silva. Antes dele, é claro, outros estudiosos já tinham posto em relevo a matriz latina de «Os Lusíadas», sobretudo Manuel de Faria e Sousa (no século XVII) e Augusto Epifânio da Silva Dias (no início do século XX). Uma das consequências lamentáveis da insuficiente exposição dos portugueses atuais à língua da Roma antiga é que ficam limitados na sua compreensão da brilhante pirotecnia verbal de «Os Lusíadas».

Mas também não faltaram, sobretudo na segunda metade do século XX, estudiosos de Camões que se situaram no espectro oposto de Corrêa da Silva e dos seus antecessores. Estes opositores da ideia de um Camões culto e erudito gostaram mais de ver no nosso Poeta um génio destravado e ininstruído. O mais curioso é que esta oposição entre a leitura humanística de Camões e a (digamos assim) «romântica» é reflexo da capacidade da obra camoniana para provocar paixões: as quais propiciam, por sua vez, olhares profundamente divergentes (porque subjetivos) sobre o poeta.

Eu diria que a obra de Camões é tão proteica que acaba por funcionar como uma espécie de borrão de Rorschach, em que cada pessoa vê aquilo que quer. O Estado Novo exaltou «Os Lusíadas» como epopeia patriótica que justificava o Império português; mas outros leitores de Camões (com destaque para António José Saraiva) conseguiram ver no poema marcas de crítica ao imperialismo. A respeito da poesia lírica camoniana, desenvolveram-se teorias atrás de teorias sobre as mulheres da vida de Camões. Mas como os textos propriamente ditos não confirmam nem refutam a ideia de uma mulher em especial que teria inspirado a poesia amorosa do poeta, cada leitor vê o que quer ver.

Assim, o monárquico José Maria Rodrigues, professor e amigo do rei D. Manuel II, escreveu um livro (dedicado à memória do assassinado infante D. Luís Filipe) em que defendeu a teoria de que a grande paixão de Camões fora por uma infanta.

No século anterior, o alemão Storck insistira que a mulher era D. Catarina de Ataíde. No final do século XX, José Hermano Saraiva irritou alguns professores universitários com um livro (a que Américo da Costa Ramalho chamou «ignorante») em que defendia a ideia de que Camões se apaixonou primeiro pela condessa de Linhares (D. Violante) e depois por uma filha dessa condessa. Eu próprio escrevi um romance em que Camões teria estado apaixonado por um filho da mesma D. Violante. Se alguma coisa disto fosse verdade, teríamos na vida de Camões uma situação picantíssima, precursora do filme «Teorema» de Pier Paolo Pasolini.

Mas não me parece que as tentativas de vislumbrar o «Luís real» por trás da poesia de Camões valham a pena, nem que possam alguma vez obter confirmação objetiva. Porquê? Porque a obra camoniana é ao mesmo tempo velada e aberta. Acena com o artifício da confissão íntima, para nos tirar sempre o chão debaixo dos pés, mercê das suas muitas contradições, ambiguidades e vaguezas. Para mim, esta qualidade misteriosa constitui o maior atrativo da lírica camoniana, do mesmo modo que me deslumbra a qualidade polifónica e pictórica de «Os Lusíadas» (e não vou esconder que adoro os latinismos...).

Camões, 500 anos. Neste centenário de Camões, é minha intenção partilhar convosco, de várias maneiras, os pensamentos e as interrogações que a obra camoniana me suscita. Até breve!

 

“Rumo ao 5.º centenário de Camões | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 24-03-2024

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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A Velha do Restelo | Camões: 500 anos

Giorgione - La Vecchia

 

A Velha do Restelo | por Frederico Lourenço

O Velho do Restelo - lamento chocar-vos - talvez não seja um homem. Poderá ser uma mulher. Estaríamos a falar, no fundo, da Velha do Restelo.

Por incrível que pareça, foi na jesuítica revista «Brotéria» que se deu o primeiro passo que levaria, ulteriormente, ao desvendamento da identidade escondida do Velho do Restelo, concretamente no número que saiu em Novembro de 1980.

Nesse volume da revista, o Dr. Joaquim Carvalho publicava um artigo sobre Os Lusíadas em que argumentava o conhecimento, por parte de Camões, do poema «Argonáutica», escrito por Apolónio de Rodes no século III antes da era cristã.

Segundo a análise feita pelo Dr. Carvalho a passos do poema «Argonáutica» (na tradução latina que Camões lera) e a passos d' Os Lusíadas, haveria pormenores de riquíssimo significado que não eram compreensíveis, na epopeia camoniana, a não ser que aceitássemos que Camões estava a remeter para o antigo poema helenístico.

Li o artigo do Dr. Carvalho há muitos anos e, de imediato, a pista de vasculhar em Apolónio de Rodes galvanizou a minha atenção. Seria possível....? Faria sentido....? Seria aqui que eu encontraria a base para justificar a minha intuição de que o Velho do Restelo era, na realidade, uma Velha....?

Pensei logo na estância IV.90 d' Os Lusíadas, em que uma mãe chorosa se despede do filho que vai embarcar para a Índia.

Meu Deus.... parecia-me óbvio! Estes versos eram a recriação camoniana da despedida chorosa da mãe de Jasão, antes de o filho embarcar para a Cólquida («Argonáutica» I.261-291).

Pus-me, na altura, a estudar debaixo do microscópio o Canto I da «Argonáutica», comparando-o com o canto IV d' Os Lusíadas. Não me saía da cabeça a ideia obsessiva de que o Velho do Restelo era um disfarce da VelhA do Restelo.

A resposta apareceu em dois versos misteriosos do poema de Apolónio de Rodes («Argonáutica» I.315-316). Esses versos fizeram-me perceber que o Velho agoirento de Camões é o desenvolvimento de algo que Apolónio elide.

Ou seja: Camões faz-nos ouvir a voz à qual Apolónio tira a fala. As palavras que ficaram por dizer no poema do século III a.C. são ditas, pela pena de Camões, no século XVI português.

Que palavras são essas? No poema de Apolónio, somos colocados perante este momento de mistério e de silêncio: no momento em que os Argonautas estão já a dirigir-se para a nau, avança ao seu encontro uma mulher idosa.

Esta anciã é sacerdotisa de Ártemis e tem algo de urgente para dizer ao herói, Jasão. No entanto, a multidão arrasta o herói até à praia, antes que a anciã consiga verbalizar a sua profecia.

Apolónio pinta em dois versos a imagem da Velha deixada para trás. Vêmo-la sozinha, silenciosa, na berma do caminho. As palavras que lhe ficaram atravessadas na garganta nunca mais serão proferidas - mas Apolónio consegue transmitir a sensação quase palpável de que a sua importância é (ou teria sido) premente.

Nunca mais serão proferidas? Teriam ficado para sempre não ditas, se Camões não tivesse ressuscitado a velha sacerdotisa de Ártemis, colocando as palavras que ela nunca pôde dizer em voz alta na boca do Velho do Restelo:

«Vã cobiça.... ó fraudulento gosto.... Que mortes, que perigos, que tormentas, que crueldades.... Dura inquietação d'alma.... mísera sorte, estranha condição!»

Ora diz-se que os maiores intérpretes literários não são as pessoas das Letras, mas sim as pessoas dos sons, criadoras de música. Ninguém entendeu melhor Goethe do que o compositor Hugo Wolf; ninguém entendeu melhor a poesia de Michelangelo do que o mesmo Wolf ou Benjamin Britten; ninguém entendeu melhor a poesia de Rainer Maria Rilke do que Paul Hindemith.

Em 1975, um jovem de 12 anos chamado Frederico assistiu, no Teatro Nacional de São Carlos, à récita da ópera «O Canto da Ocidental Praia», de António Vitorino d'Almeida. A ópera não foi especialmente bem recebida pelo público e a segunda coisa de que me lembro dessa ocasião foi de ouvir a minha mãe no intervalo, a conversar com o que se chamava na altura o grupo dos «habitués» de São Carlos, sobre a última récita em que a minha mãe lá tinha ouvido ópera. E todos diziam que, no «Così fan tutte» de Mozart, Teresa Stich-Randall tinha sido sublime. O que equivalia a dizer que a presente ópera portuguesa, com os seus cantores portugueses, não era grande coisa.

Se a ópera era grande coisa ou não já não vos saberia dizer - nem eu confiaria hoje naquilo que teria sido meu gosto musical aos 12 anos. Mas há, de facto, uma coisa dessa récita que ficou na minha cabeça para sempre: a figura do Velho do Restelo, que entra em cena a cantar «Ó vã cobiça!». Não me esquecerei nunca do chapéu à infante D. Henrique na cabeça da cantora.

Sim, da cantora. Porque o Velho do Restelo - pelo menos é essa a minha recordação - foi cantado por uma mulher, Dulce Cabrita.

Em 1975, os jesuítas da «Brotéria» ainda não tinham publicado o artigo que levaria a que, graças ao Dr. Carvalho e (já agora) à minha modesta pessoa, todos percebêssemos o que poderia estar por trás desta intuição artística.

Mesmo sem o Dr. Carvalho e sem estas especulações do futuro Frederico Lourenço (que, em 1975, como já referi, ainda só tinha 12 anos), mesmo assim, a abrir o Verão quente de 1975, o Velho do Restelo assumira-se no palco do Teatro Nacional como Velha do Restelo, saudosa de uma «Idade d'ouro» que, sem que ela o soubesse, estava lentamente a nascer: o Portugal do pós 25 de Abril, de que todas e todos nos podemos orgulhar.

 

«A Velha do Restelo | Camões: 500 anos», Frederico Lourenço, Coimbra, 24-02-2024

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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mar Me Quer


 

Mar Me Quer

 

O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça
deixei escapar a maré, adormecido
Zeca Perpétuo, sou reformado do mar
tenho juízo de mamba pelo seu olhar

Mar me quer, bem me quer 
Canto chão de luarmina
o coração é uma praia
diz Celestiano à menina

Mar me quer, bem me quer 
com olhos de tubarão
meu avô falava certo
quem demora tem razão

Todas as noites despetalou flores a mulata 
Dona Luarmina, minha vizinha 
logo de manhã passa sonhos pelo rosto 
atrasa a ruga, impede o tempo

 

Letra e música de João Afonso

 

João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.

Cristina Mielczarski Santos, A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. http://hdl.handle.net/10183/77153

 

***

 

O poema "Mar Me Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer, do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página da Lusofonia.

Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exatas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

 



 

LER MAIS EM:

 

Mar me quer (1998) -  leitura orientada

Apresentação da obra

Resumo da obra

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

Mar me quer: a outra face da lua

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil

Mar me quer - propostas de trabalho