A avó
vive só
Na casa da avó
o galo liró
faz “cocorocó!”
A avó bate pão-de-ló
e anda um vento t – o – tó
na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
mas se o neto Ricardó
mas se o neto travessó
vai a casa da avó,
os dois jogam dominó.
Cecília Meireles,
Isto ou aquilo, 1964
No poema “A avó do menino”,
de Cecília Meireles, o sujeito poético utiliza a simplicidade e a musicalidade
para retratar a relação entre uma avó e o seu neto. A estrutura do poema é
marcada pela rima constante, em que cada verso termina com o som do “ó”
acentuado, criando um ritmo que remete para as cantigas infantis e para a oralidade da
língua portuguesa.
A repetição dos versos “A
avó” e “vive só” sugere uma solidão não absoluta, mas pontuada pela presença
ocasional do neto. Essa solidão é relativa, pois é interrompida pela visita do
neto, que traz vida e movimento à casa da avó, simbolizada pelo jogo de dominó.
A metáfora do vento que
“anda” na cortina de filó sugere algo invisível e subtil que, no entanto, tem
presença e movimento, assim como a solidão da avó que é palpável mesmo não
sendo permanentemente visível.
A escolha de palavras com
o som do “ó” acentuado, mesmo quando não é gramaticalmente necessário, enfatiza
a sonoridade e a intenção em destacar a musicalidade do poema. Isso também pode
ser visto como uma forma de dar ênfase à presença do neto, cuja chegada muda o
tom da casa e da vida da avó.
O poema retrata, assim, a
realidade afetiva de muitos lares, celebrando a alegria trazida pelo convívio intergeracional.
A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha!…
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.
Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.
Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala…
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando…
A velha acorda sorrindo.
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.
Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos doirados.
Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
“Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!”
Então, com frases pausadas,
Conta histórias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas…
E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem…
Olavo
Bilac (1865-1918), Poesias Infantis. Rio de Janeiro, Livraria Clássica de
Francisco Alves & C.ª, 1904, pp. 7-9
fragmento da pág. 7 de Poesias Infantis, 1904
O poema
“A Avó” de Olavo Bilac é uma homenagem à figura da avó e ao seu papel na
família. Através de uma linguagem doce e imagens ternas, o sujeito poético
descreve a avó como um pilar de força e amor, apesar da sua fragilidade física.
A
mensagem do poema é dupla: por um lado, destaca a inevitabilidade do
envelhecimento e da passagem do tempo; por outro, celebra a capacidade dos mais
velhos de encontrar alegria e propósito na companhia dos mais jovens. A avó,
através das histórias que conta, passa adiante a cultura e os valores da
família, garantindo que a sua sabedoria e o seu amor perdurem através das gerações.
Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!
Não sei quem foi que me disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado…
Agora, o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo. Coitado!
Não faça tal; porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho:
Faça outra coisa; que, em suma,
Não fazer coisa nenhuma
Também lhe não aconselho.
Mas anos, não caia nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua
E fá-los queira ou não queira!
João de Deus, Campo de
Flores (1830-1896)
O poema
"Dia de Anos" de João de Deus oferece uma visão satírica sobre a celebração dos aniversários.
Através
de um tom jocoso e familiar, o sujeito poético questiona a racionalidade de
comemorar o passar dos anos, associando essa prática a tolices e desenganos que
apenas evidenciam o envelhecimento.
A
estrutura do poema, com as suas rimas emparelhadas e redondilhas maiores,
contribui para o tom leve e humorístico, tornando a crítica mais acessível e
envolvente.
Em última
análise, o poema convida os leitores a refletirem sobre o valor das tradições e
a inevitabilidade do tempo, sugerindo que há outras formas mais significativas
de aproveitar a vida sem se prender a convenções que podem trazer mais desânimo
do que alegria.
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...
s.d.
Quadras
ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e
prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1965. (6ª ed., 1973).- 117.
Análise
do poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa
Estrutura
e forma
O poema "No comboio
descendente" de Fernando Pessoa é estruturado em três estrofes, cada uma
com seis versos. A forma fixa do poema destaca-se pela ênfase na sonoridade das
rimas, incluindo as internas. A repetição é um elemento crucial, visível na
métrica, no ritmo, na estrutura sintática e nos recursos sonoros, como
assonâncias e aliterações.
Função
da repetição
A repetição no poema tem o
propósito de induzir um estado de sonolência, semelhante às canções de ninar. A
repetição sintática e semântica cria um efeito de relaxamento, que acalma e
adormece os leitores, como se fossem crianças.
Primeira estrofe: De Queluz à Cruz Quebrada
Na primeira estrofe, o tom é de
alegria e animação:
Sonoridade vibrante: A
aliteração com a consoante /k/ e os encontros consonantais /kr/ e /br/ no verso
"De Queluz à Cruz Quebrada" evocam o som e a confusão típicos de uma
viagem animada de comboio.
Rima interna: A rima
entre "Queluz" e "Cruz" reforça a ideia de repetição e
alegria entre os passageiros.
Segunda
Estrofe: De Cruz Quebrada a Palmela
Na segunda estrofe, a atmosfera
começa a se acalmar:
Transição para a calma: A
sonoridade indica uma diminuição na agitação, sugerindo que os passageiros
estão se acalmando à medida que a viagem continua.
Terceira
Estrofe: De Palmela a Portimão
Na terceira estrofe, há uma
mudança de tom:
Quebra da repetição: A
estrutura paralela dos versos é interrompida pela expressão "Mas que
grande reinação!", usada de forma irónica para indicar que, apesar da
frase, a atmosfera agora é de sono.
Sonoridade nasal: O último
verso "De Palmela a Portimão" destaca sons nasais, que sugerem um
ambiente tranquilo e os passageiros adormecidos.
Análise
Alegórica
O poema não descreve apenas uma
viagem de comboio animada e barulhenta, mas também representa alegoricamente o
processo de adormecimento:
Transição de animação para sonolência: A
sonoridade e a escolha das palavras ao longo do poema ilustram a transição da
vivacidade para a calma e, finalmente, para o sono dos passageiros.
Linguagem infantil:
Expressões coloquiais como "reinação" e "dar-lhes trela" evocam
uma linguagem simples e infantil, reforçando a sensação de uma canção de ninar.
Conclusão
Fernando Pessoa, no poema "No
comboio descendente", utiliza a repetição em múltiplos níveis para criar
um efeito hipnótico e tranquilizante. O poema leva o leitor de um estado de
alegria e excitação para uma serenidade sonolenta, refletindo o processo de
adormecimento. A estrutura sonora e a escolha das palavras contribuem para essa
transformação gradual, fazendo do poema uma rica alegoria do cair no sono.
Ilustração de Madalena Matoso para O livro da Tila. Editorial Caminho, 2010
Nascer
Mãe!
Que verdade linda
O nascer encerra:
Eu nasci de ti,
Como a flor da Terra!
Matilde Rosa Araújo, O
livro da Tila. Lisboa, Livros Horizonte, 1957
O ato de nascer é um milagre que transcende o físico. É a passagem da
escuridão para a luz, do silêncio para o som da vida. A mãe é a guardiã desse
segredo, a criadora que nos molda com amor e nos permite florescer. Que bela
jornada é essa, a do nascer!
Escreve um texto criativo
inspirado no poema "Nascer" de Matilde Rosa Araújo. Podes optar por
um conto, uma carta, um diário ou até mesmo um poema. Aqui estão algumas ideias
para te ajudar a começar:
Uma carta à tua mãe: Imagina que estás a
escrever uma carta à tua mãe, expressando os teus sentimentos sobre o poema.
Fala sobre a relação especial que tens com ela e como o nascimento é uma
metáfora para a vossa ligação.
Um conto sobre o
nascimento:
Cria uma história onde o nascimento de uma criança é descrito como um
acontecimento mágico e poético. Podes personificar a Terra, as flores, e outros
elementos naturais para enriquecer a tua narrativa.
Diário de uma flor: Escreve uma entrada de
diário do ponto de vista de uma flor que acabou de nascer da terra. Descreve as
suas primeiras impressões do mundo, a relação com a "mãe Terra", e as
suas esperanças e sonhos.
Um poema sobre o nascimento: Inspira-te no poema de
Matilde Rosa Araújo para escrever o teu próprio poema sobre o ato de nascer,
sobre a conexão profunda entre mãe e filho.
Se necessário, segue as
seguintes instruções:
·O Silêncio da Origem: Descreve a escuridão do útero, onde o bebé se
desenvolve. Usa metáforas para expressar essa sensação de proteção e mistério. Explora
a ideia de que o silêncio é a primeira linguagem que o bebé conhece.
·O Despertar: Fala sobre o momento em que o bebé começa a
sentir os primeiros movimentos, como se estivesse a despertar para a vida. Usa
imagens sensoriais para descrever essa transição do escuro para a luz.
·A Mãe como Criadora: Compara a mãe à Terra, que nutre e faz brotar a
flor. Ela é a origem, o solo fértil onde a vida floresce. Destaca a beleza
desse processo de criação, como se a mãe fosse uma artista que molda o filho
com amor e cuidado.
·O Laço Inquebrável: Aborda a ligação entre mãe e filho. Como o poema
sugere, o filho nasce “de” sua mãe, mas também “como” a flor da Terra. Usa
metáforas para expressar essa conexão profunda e inquebrável.
Lembra-te de ser criativo
e pessoal na tua escrita. Usa as tuas próprias experiências e emoções para dar
vida ao teu texto. Bom trabalho!
O poema “A Arca de Noé” de Vinicius
de Moraes pode ser dividido em momentos lógicos que refletem a sequência de
eventos e as imagens criadas pelo autor. Aqui está uma possível divisão:
Momento 1: O Cenário Pós-Dilúvio
Descrição do arco-íris e da natureza que se revela
após a chuva.
A água
límpida e a luz do sol criam um ambiente de renovação e esperança.
Momento 2: A Abertura da Arca
Noé abre a arca, e a descrição foca na sua figura como
patriarca e inventor da uva.
A terra é
vista como fértil e promissora para o cultivo de vinhas.
Momento 3: A Saída dos Animais
Os animais começam a sair da arca, cada um com as suas
características distintas.
A
descrição dos animais é feita com humor e leveza, destacando a diversidade
da vida.
Momento 4: O Conflito e a Ordem
Há um momento de disputa entre os animais,
simbolizando a luta pela vida e pelo espaço.
Eventualmente,
os animais saem em pares, estabelecendo uma nova ordem no mundo.
Momento 5: A Nova Vida na Terra
Os animais são conduzidos por Noé para a terra
prometida, onde a vida recomeça.
O poema
termina com uma imagem pacífica da natureza e dos animais em harmonia.
Cada um desses momentos captura uma
fase diferente da narrativa, desde a devastação inicial até a promessa de um
novo começo para a humanidade e para o mundo natural.
***
Reconto
Reconta, em prosa, a história narrada no poema “A Arca de Noé”,
de Vinicius de Moraes.
Vale a pena ver
castelos no mar alto
Vale a pena dar o salto
p’ra dentro do barco
rumo à maravilha
e pé ante pé desembarcar na ilha
Pássaros com cores que nunca vi
que o arco-íris queria para si
eu vi o que quis ver afinal
É tão bom uma amizade assim
Ai, faz tão bem saber com quem contar
Eu quero ir ver quem me quer assim
É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer
Vale a pena ver
o mundo aqui do alto
vale a pena dar o salto
Daqui vê-se tudo
às mil maravilhas
na terra as montanhas e no mar as ilhas
Queremos ir à lua mas voltar
convém dar a curva
sem se derrapar
na avenida do luar
É tão bom uma amizade assim
Ai, faz tão bem saber com quem contar
Eu quero ir ver quem me quer assim
É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer
“É tão bom”,
letra de Sérgio Godinho, do álbum Sérgio Godinho canta com os amigos do
Gaspar, 1988
Depus a
máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a um términus de linha.
Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa
Rita Lopes,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 514.
QUESTIONÁRIO
1.
Explique a importância da máscara na construção
da dualidade do sujeito poético, tal como é apresentada ao longo do poema.
2.
Depois de tirar a máscara, o sujeito poético opta por tornar a pô-la.
Justifique
essa opção, com base em dois aspetos significativos.
3.
Considere as afirmações seguintes sobre o poema.
I. O
ato de se ver ao espelho sugere o desejo de autoconhecimento por parte do
sujeito poético.
II. O
sujeito poético anseia voltar a viver o seu tempo de infância.
III. A
coexistência de versos longos e de versos curtos contribui para o ritmo do
poema.
IV. O
recurso às reticências, no verso 3, indicia a frustração sentida pelo sujeito
poético.
V. No
texto, evidenciam-se características da linguagem poética de Álvaro de Campos,
como a liberdade formal e o uso de anáforas.
Identifique
as três afirmações verdadeiras.
CRITÉRIOS DE CORREÇÃO
1. Explica a importância da máscara na construção da dualidade do
sujeito poético, abordando, adequadamente, os dois tópicos de resposta.
- a máscara esconde o Eu
associado à infância, num jogo entre ser e parecer/passado e presente, no qual
a permanência do Eu passado surge quando a máscara é retirada;
- a duplicidade permite que o sujeito poético mantenha o seu ser
autêntico e, simultaneamente, que desempenhe o papel social associado à máscara
(optando pela identidade adquirida pela máscara).
2. Justifica a opção do sujeito poético por tornar a pôr a máscara,
abordando, adequadamente, dois dos tópicos de resposta.
- a criança
que a máscara oculta representa a vulnerabilidade do sujeito poético associada
à infância;
- o Eu
sente-se mais confortável quando coloca a máscara, na medida em que a imagem
que dá a ver aos outros é a de alguém normal («E volto à normalidade» ‒ v. 11);
- a normalidade (o «términus de linha» ‒ v. 11) é
construída
através
do recurso à máscara na viagem de autoconhecimento
que o sujeito poético realiza, o que implica viver o presente, aceitando as
convenções sociais.
3.
I, III e V.
Fonte: Exame Final
Nacional de Português | Prova 639 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2024 | 12.º
Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei n.º
62/2023, de 25 de julho) – VERSÃO 1
***
A INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL AO SERVIÇO DA EDUCAÇÃO: explicação sistematizada do poema de Álvaro
de Campos que saiu no exame 12.º ano.
1. **Tirar a
máscara**
- O autor tira a máscara.
- Olha-se ao espelho.
- Vê-se como era em criança.
- A essência dele não mudou.
2. **Vantagem
de tirar a máscara**
- Ao tirar a máscara, redescobre-se
a criança interior.
- A verdadeira identidade, pura e
intocada, permanece.
3. **Voltar a
pôr a máscara**
- O autor decide voltar a pôr a
máscara.
- Sente-se mais confortável e
seguro assim.
- A máscara torna-se a sua
personalidade.
4.
**Aceitação**
- Aceita que vai continuar a usar a
máscara.
- É assim que consegue viver e
funcionar na sociedade.
Partilhado por Lúcia Vaz
Pedro, in Pulsações Escritas - Facebook, 22/06/2024
A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.
É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.
A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.
Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.
É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.
Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.
Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.
E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.
José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto,
Ambar, 2007
(…) a poesia, apesar de se fazer com palavras, está muito para além delas. É aquilo que essas palavras conseguem levar e depositar no nosso coração. E para que isso aconteça, não é preciso que sejam palavras complicadas, frases elaboradas, rimas perfeitas. (…) É outra coisa. Que não se consegue nomear, mas que se sente. (…)
E não há uma maneira única de escrever poesia. Há quem, através da poesia, conte uma história; há quem recorde um pequeno pormenor que lhe chamou a atenção; há quem evoque cenas familiares; há quem escreva sobre um cheiro ou um olhar; há quem, muito simplesmente, brinque com as palavras e os seus sons.
Há poemas sobre animais, sobre pessoas, sobre sentimentos, sobre a natureza. Há poemas sobre fadas, sobre pastores, sobre crianças e velhos. Há poemas sobre uma rua, sobre uma casa, sobre uma pedra que de repente se encontra a meio do caminho. Há poemas sobre a tristeza e sobre a alegria. E podemos rir e chorar com eles. Pode-se escrever um poema a propósito de tudo. Não há temas melhores ou temas piores: há a arte de saber escrever a seu respeito de uma maneira criativa, ou seja, de uma maneira que seja só nossa.
Alice Vieira, O meu primeiro álbum de poesia. Lisboa, Edições Dom Quixote, 2007
Escrita
criativa
No vídeo que se segue, a escritora Alice Vieira dá alguns
conselhos sobre a forma de escrever textos criativos, como por exemplo: escolham
assuntos concretos para as vossas histórias; escrevam muito; não tenham pressa;
reformulem o que escreveram, mudando palavras, encurtando frases; não vale a
pena usar os adjetivos se eles não forem rigorosos.
O videograma foi criado para o Grande C - Concurso de criatividade para escolas,
promovido pela Associação para a Gestão de Cópia Privada (AGECOP), em 2009.
Videograma
GC Alice Vieira Escrita Criativa, partilhado por Paulo Pinheiro, em
16/11/2009
Composição de um texto por imitação
criativa
Escreve
um poema composto por inspiração, a partir de uma das propostas que se seguem.
I - Poema sobre uma flor
Escreve
um poema sobre uma flor, partindo do seguinte poema sobre o girassol:
O GIRASSOL
Passa a vida a olhar pró sol!
Segue o sol para todo o lado!
Tivesse olhos o girassol
ou usava óculos de sol
ou já teria cegado.
Faz uma lista de alguns elementos que constituem uma casa (por exemplo portas, janelas, paredes, chaminé).
Inicia cada verso por “Um livro é” seguido de um dos elementos da tua lista.
Exemplo: “Um livro é uma porta que se abre para o mundo.”
Escreve cerca de quinze versos.
Relê esses versos e escolhe os doze melhores, copiando-os para a folha na ordem que consideres mais adequada.
Nota: podes substituir a palavra “livro” por outras, como por exemplo:
“Um amigo é…”
“A amizade é…”
“O amor é…”
“A família é…”
"Um irmão é..."
“A vida é…”
“A felicidade é…”
“A sabedoria é…”
“A natureza é…”
“A música é…”
“A arte é…”
“A paz é…”
“A liberdade é…”
“A esperança é…”
“O sonho é…”
“O futuro é…”
"Uma ilha é...".
IV – Outros poemas que podem servir de
mote ou modelo de inspiração
URGENTEMENTE
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente permanecer.
Eugénio de Andrade, Até Amanhã, 1956
AS
PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958
AS MÃOS
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre, O Canto e as Armas,
1967
AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra “amigo”.
“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!
“Amigo” é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
“Amigo” é a solidão derrotada!
“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca,
1958
O
SONHO
Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma dêmos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos,
1953
E POR
VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão Ferreira, Matura idade, 1973
ESPARSA
sua ao
desconcerto do mundo
Os
bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m’espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado
Luís
Vaz de Camões (c. 1524-1580)
AMOR É
UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER
Amor é
um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís
Vaz de Camões (c. 1524-1580)
[AUTORRETRATO]
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento
Bocage (1765-1805)
PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia
de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, 1958
TRÍPTICO
II
Não sei como dizer-te que minha voz
te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
(…)
Herberto Helder, A colher na boca, 1961
Nota:na página Folha de Poesia há mais propostas de escrita criativa.