domingo, 26 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 18 (Vitorino Nemésio)






     
POEMA 18
    
Sombra, leva mais longe a tua linha,
Que a tarde vai-se e levanta
A sua roupa de horas,
‑ Tudo o que a tarde tinha.

Quando a água do tanque é mais profunda,
Olhar ‑ e ser mais velho!
Como num mar, no tempo entramos;
Ele é que nos inunda
A casa até ao espelho.

Já tudo retira as tendas
Para outra água e verde;
Os camelos vão sem unhas;
Só diante de nós o que se perde,
Alma, já não é vida.

Tu, nem a morte supunhas.
            

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          



         
LINHAS DE LEITURA
      
Procure, no poema, linhas de significado, considerando:

• o apelo à sombra, o apelo à distância;

• a água do tanque da infância tornada espelho da velhice;

• a caminhada, os signos da errância: «tendas, camelos»;

• o tempo: o sentimento de perda;

• o tempo: a morte.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.


       
       
SUGESTÕES DE LEITURA
 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/26/poema18.aspx]

sábado, 25 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 17 (Vitorino Nemésio)

Vitorino Nemésio, Desenho de Emanuel Félix (2012)
           

        
POEMA 17
  
Pus-me a contar os alciões
*
 chegados
(Minha memória era água, água...).
Fez-me mal aquela alta tristeza
De bicos vagabundos,
Mas não chorei os alciões desterrados.

Sempre gostei de aves e de lágrimas.
Lágrimas, agora, não podia,
Mas podia os alciões
‑ E dei-lhes meus olhos para ovos
(Que as fêmeas estavam cansadas
E vinham de terra fria).

Firme e condescendente,
Fechei as pálpebras pesadas
De contradição e de poesia.
‑ E um mundo novo, de alciões novos,
Esse era o meu quando as abria.
        

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
       
________________
* Alcião: ave marinha, gaivota
         
         


        
TEXTO DE APOIO
         
Na terceira estrofe do “Poema 17”, “o Poeta tem consciência do seu devaneio; num descer de pálpebras, se revê no passado; ergue-as, vê-se num mundo novo: são as novas associações que·se estabelecem em sua imaginação criadora, de antigas imagens que lhe povoaram a infância”.

“É neste «fechar as pálpebras», quando «um mundo novo, de alciões novos» se descortina, que o Poeta seja, talvez, mais ele, uma vez que, no estado de criação poética, tanta coisa do inconsciente aflora, incontrolada, à superfície do consciente.

Vistos esses depoimentos, além de tantos outros que poderíamos ainda arrolar, atendamos para este outro mais, em que Vitorino Nemésio, manifestamente, declara seu desejo de que o procuremos em sua obra poética:

«O poema não "é" absolutamente na figura gráfica, discursiva, a que consideramos vinculado: está lá virtualmente, como algo latente ou potencial. O seu texto concreto é o pretexto de sua realidade.» (Última Lição in Críticas sobre Vitorino Nemésio, coord. António Lucas, Lisboa, Bertrand, 1974, p. 58)
    
Em outra passagem de seus escritos, Nemésio, numa ironia parentética, diz:
«(E quem não entender os meus
Versos, pergunte ao psiquiatra).» (Sapateia Açoriana, Lisboa, Arcádia, 1976, p. 81)
   

Lúcia Cechin, A Imagem Poética em Vitorino Nemésio, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1983, p. 81.
      
        


LEITURA ORIENTADA
         
1. «Pus-me a contar os alciões»
    • Que sentimentos a chegada das aves suscita no poeta? Porquê?

2. «Sempre gostei de aves de lágrimas»
    • Em que sequência surge esta afirmação?

3. «E dei-lhe meus olhos para ovos»
    • Interprete esta surrealista e inesperada metáfora.
(Tenha em conta o valor simbólico de ovo e relacione esta passagem com o poema «O Ovo»)

4. «Fechei as pálpebras pesadas»
    • Que mundo se formou na interioridade do sujeito poético?

5. Mostre que este é mais um poema que se constrói em torno da memória, do mar, da interioridade do sujeito lírico.

6. Comente a musicalidade da linguagem: as rimas, as repetições diversas, as aliterações.
        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       


       
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/25/poema17.aspx]

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ENCHI DE OESTE A MINHA VIDA (Vitorino Nemésio)

O OVO

Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.

Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.

Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.

Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.
     

Vitorino Nemésio, Nem toda Noite a Vida (1953)
    
        
        


TEXTO DE APOIO
       
[…] o ovo (que, como se viu, ocorre no poema dos «Versos a uma cabrinha que eu tive», na imagem emblemático-simbólica final do «ovo e a ave: / Grande segredo / Equilibrado») é matéria germinal, fonte de vida encerrada à espera ,da sua hora, como elemento integrante de substância primordial, como o penedo e a rocha de onde brota a água, como a cabrinha indomável, a tartaruga lenta e o milhafre em seu paço.

De resto, como aliás já notou Esther de Lemos, o ovo é elemento simbólico-mítico de preferência de Nemésio. A ele já recorreu noutros textos que remontam a uma fase bem recuada da sua obra. Analisemo-lo, pois, em alguns poemas.

Em «O ovo» dá uma imagem da sua dependência afetiva, reitera a angústia de não poder silenciar o fascínio do mundo da sua meninice, das ilhas, do Oeste. Reconhecer a impossibilidade de repisar o perdido «[ ... ] praias carregadas / De passos, conchas e do haver / Das aves livres lá pousadas») não refreia a audácia, embora comedida, de sonhar com outra vida:
     
E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.
     
Um ovo que proporcionaria a revitalização do espaço físico e dele próprio. Porque é como elemento fecundado que Nemésio vê retrospetivamente a Ilha Perdida com a qual mantém como que um elo letárgico:
     
Ah! Ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar ‑ ardente Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!

[…]
[Na conferência intitulada «Le mythe de M. Queimado» Nemésio faz] referência a um ovo deixado numa rocha, que não será por acaso que se chama rocha do Peneireiro.
[…]
Não parece, pois, ser por acaso que este «jeune homme naïf», caracterizado «par je ne sais quel côté irréel, o conduza num itinerário simbólico através da ilha, até à ponta da Serreta (a mesma que figura na fotografia da capa da 1ª edição do Corsário... ) e aí, levado «mysterieusement à un creux du rocher», fiquem perante um rochedo (bíblico-cósmico, diríamos quase) onde um ovo tal como o «ovo bicado e quente» deixado no mar e citado n'«O canário de oiro» ‑ é origem de vida:

«C'était un oeuf, rien qu'en oeuf, et admirablement pondu […] (p. 14). […] cette drôle d'histoire d'une calombe marine à queue blanche, et de son oeuf attendant dans un creux de rocher une éclosion symbolique […]» (p. 17).
     
O que é certo é que este personagem misterioso, que depois apareceria como contador das suas histórias, lhe deixa uma funda impressão que nos parece uma significativa identificação: «Quelque chose de la nature de M. Queimado m'a atteint à jamais. Et je ne vois de tout cela qu'en oeuf de cruombe courounné de brouillard à 28° de latitude Nord e 27° de longitude Oest, méridien de Greenwich» (p. 19).
O que parece, pois, comum à poesia nemesiana e a estas páginas de prosa ensaística semificcional do conferencista de 1940 é o tema cosmogónico do ovo, seja no rochedo ou no mar, em todo o caso ponto de partida vital e ponto de partida para as «viagens» verbais de toda a criação poética nemesiana. Com feito, é esta força vital que parece impeli-lo renovadamente na busca da Ilha Perdida, cujo húmus arquetípico se situa no passado e cuja «corporalidade» sofre adaptações; a Ilha Perdida flutua, e em parte, regressa de tempos a tempos.
       
Maria Margarida Maia Gouveia, A viagem em Vitorino Nemésio, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986, pp. 119-122
    


      
LINHAS DE LEITURA
         
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:

• o tom retrospectivo;

• «Oeste»: a «terra percorrida e o mar curvado»;

• a identificação sujeito poético/Sol:
- a errância, a febre do horizonte
- o fogo, o amor;

• o desejo de mais errância/liberdade;

• o desejo do regresso à origem ‑ ao ovo;

• ainda o ovoa luta contra o tempo?
      
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       
       


SUGESTÃO
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/24/ovo.aspx]

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, Poema 12 (Vitorino Nemésio)

      






POEMA 12

Lembro o que perco. Estranho
Que meu regaço vá vazio.
Já enche o monte o meu rebanho
E, chega o inverno, tenho frio.

Se o mar que tive o sal me nega,
Como me posso conservar?
Minha saudade só despega
Quando não vê para cavar.

Abri agora o meu piano.
Que imprópria música desprende!
Mofo e tristeza de ano
Seus tendõezinhos prende.

Mas toco. Junta-se gente:
São os retratos da sala,
Que o ar da noite acentua.
A minha mão lhes fala
Da sua vida ausente
Naquela parede nua.

Que exacta, a minha mão
No seu mover, chamando
A música remota!
Sérios, os mortos vão
Seus lugares retomando
Enquanto a noite se esgota.

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          
         



LINHAS DE LEITURA
      

Faça o comentário do poema, tendo em conta as seguintes linhas:

• o sentimento de perda, de vazio, de frio;

• a memória;

• a saudade do mar, insistente;

• as imagens de raiz rural e as imagens de raiz marítima;

• o piano: a música a convocar o passado, os mortos;

• a consciência do tempo que passa, o inverno e a noite chegados.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       
       


SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/23/poema12.aspx]

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

NOITE, MATÉRIA DA MORTE (Vitorino Nemésio)

       
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Noite, matéria da morte,
Acostuma-me a ti;
Dispõe de sul a norte
A Barra que eu perdi.

O vaso de mistério
Que o dia apaga ‑ põe-o
A mim cheio e evidente:
Coisas que são do sonho,
Que não as veja gente.

Meu sono cava, ó casta e sossegada,
Como se fosse a tua horta.
Na terra humana tudo pega,
Até silêncio!
Planta sossego à minha porta.

E cresça do sossego
Então minha alma nova,
Como a rosa, que é só decência e apego
A uma modesta cova.
    

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
    



    
LEITURA ORIENTADA
       
1. Releve as expressões textuais que integram o campo lexical da «noite».

2. Atente na relação eu/noite.

2.1. Indique, relevando marcas textuais, a função da linguagem que melhor exprime essa relação.

2.2. Relacione a função aludida em 2.1. com o estado de espírito do eu poético.

2.3. Do apaziguamento trazido pela noite, espera o eu poético renascer.

2.3.1. Destaque os elementos textuais que reenviam para a ideia de apaziguamento» e de «renascer».

2.3.2. Em que consiste o desejo de renascer do eu poético?

2.3.3. O que é preciso ao eu poético para «renascer»?


      
      
CHAVE DE RESPOSTAS
      
1. Noite: «matéria da morte»; «de sul a norte» (= da vida para a morte), «vaso de mistério»; «sono», «casta e sossegada».

2.1. A função apelativa está em destaque no poema, bem patente no recurso à apóstrofe («Noite», v. 1); «Ó casta e sossegada») e à frase imperativa: «acostuma-me a ti»: «põe-o»; «que as não veja gente», «meu sono cava»; «planta sossego».

2.2. A função apelativa serve a expressão da súplica de um eu que busca apaziguamento.

.3.1. apaziguamento: «Meu sono cava»; «Planta sossego à minha porta»; renascer: «cresça do sossego/[...] minha alma nova.».

2.3.2. Consiste na aceitação humilde e resignada da sua condição de mortal, dada pela imagem da rosa que só pode crescer presa a uma «modesta cova».

2.3.3. Que se habitue à ideia da sua finitude (cf. v. 2) e que abdique do sonho (cf. vv. 8-9), condições indispensáveis ao apaziguamento que procura.
      
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
       
    


SUGESTÃO
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/22/Noite.Materia.Da.Morte.aspx]