Vitorino Nemésio, Desenho de Emanuel Félix (2012) |
POEMA 17
Pus-me a contar os alciões* chegados
(Minha memória era água, água...).
Fez-me mal aquela alta tristeza
De bicos vagabundos,
Pus-me a contar os alciões* chegados
(Minha memória era água, água...).
Fez-me mal aquela alta tristeza
De bicos vagabundos,
Mas não chorei os alciões desterrados.
Sempre gostei de aves e de lágrimas.
Lágrimas, agora, não podia,
Mas podia os alciões
‑ E dei-lhes meus olhos para ovos
(Que as fêmeas estavam cansadas
E vinham de terra fria).
Firme e condescendente,
Fechei as pálpebras pesadas
De contradição e de poesia.
‑ E um mundo novo, de alciões novos,
Esse era o meu quando as abria.
Sempre gostei de aves e de lágrimas.
Lágrimas, agora, não podia,
Mas podia os alciões
‑ E dei-lhes meus olhos para ovos
(Que as fêmeas estavam cansadas
E vinham de terra fria).
Firme e condescendente,
Fechei as pálpebras pesadas
De contradição e de poesia.
‑ E um mundo novo, de alciões novos,
Esse era o meu quando as abria.
Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
________________
* Alcião: ave marinha, gaivota
TEXTO DE APOIO
Na terceira estrofe do “Poema 17”, “o Poeta tem consciência do seu devaneio; num descer de pálpebras, se revê no passado; ergue-as, vê-se num mundo novo: são as novas associações que·se estabelecem em sua imaginação criadora, de antigas imagens que lhe povoaram a infância”.
“É neste «fechar as pálpebras», quando «um mundo novo, de alciões novos» se descortina, que o Poeta seja, talvez, mais ele, uma vez que, no estado de criação poética, tanta coisa do inconsciente aflora, incontrolada, à superfície do consciente.
Vistos esses depoimentos, além de tantos outros que poderíamos ainda arrolar, atendamos para este outro mais, em que Vitorino Nemésio, manifestamente, declara seu desejo de que o procuremos em sua obra poética:
«O poema não "é" absolutamente na figura gráfica, discursiva, a que consideramos vinculado: está lá virtualmente, como algo latente ou potencial. O seu texto concreto é o pretexto de sua realidade.» (Última Lição in Críticas sobre Vitorino Nemésio, coord. António Lucas, Lisboa, Bertrand, 1974, p. 58)
Em outra passagem de seus escritos, Nemésio, numa ironia parentética, diz:
«(E quem não entender os meus
Versos, pergunte ao psiquiatra).» (Sapateia Açoriana, Lisboa, Arcádia, 1976, p. 81)
Lúcia Cechin, A Imagem Poética em Vitorino Nemésio, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1983, p. 81.
LEITURA ORIENTADA
1. «Pus-me a contar os alciões»
• Que sentimentos a chegada das aves suscita no poeta? Porquê?
2. «Sempre gostei de aves e de lágrimas»
• Em que sequência surge esta afirmação?
3. «E dei-lhe meus olhos para ovos»
• Interprete esta surrealista e inesperada metáfora.
(Tenha em conta o valor simbólico de ovo e relacione esta passagem com o poema «O Ovo»)
4. «Fechei as pálpebras pesadas»
• Que mundo se formou na interioridade do sujeito poético?
5. Mostre que este é mais um poema que se constrói em torno da memória, do mar, da interioridade do sujeito lírico.
6. Comente a musicalidade da linguagem: as rimas, as repetições diversas, as aliterações.
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
SUGESTÕES DE LEITURA
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/25/poema17.aspx]
Sem comentários:
Enviar um comentário