segunda-feira, 15 de junho de 2015

A experiência religiosa




Se a cada coisa que há um deus compete,
Porque não haverá de mim um deus?
Porque o não serei eu?
É em mim que o Deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.

12-1931
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 138.







A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER

No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra

José Tolentino Mendonça, 1990.
Escutar o poema aqui.








DESFECHO

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
( a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Miguel Torga, Câmara Ardente, 1962.







ESCUTO

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967







Análise e compreensão da experiência religiosa

Muitas pessoas – filósofos, teólogos e cientistas – afirmam que temos bons argumentos a favor da existência de Deus: uns defendem que a própria ideia de Deus implica a sua existência; outros sustentam que tem de haver uma causa para o Universo e que essa causa só pode ser Deus; outros, ainda, alegam que a ordem que encontramos na natureza não pode ser fruto do acaso e que Deus é a melhor explicação para essa ordem; e há quem considere outros argumentos.

Será que a existência de Deus pode ser provada?
Na sua resposta, considere o argumento (ou prova) que estudou a favor da existência de Deus e:
– identifique, referindo o seu nome, esse argumento (ou prova) a favor da existência de Deus;
– apresente inequivocamente a sua posição;
– argumente a favor da sua posição.



Cenário de resposta

A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Identificação do argumento:
− argumento ontológico OU argumento cosmológico OU argumento do desígnio.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à possibilidade de provar a existência de Deus.
Justificação da posição defendida:
No caso de o examinando, apoiando-se no argumento ontológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
podemos conceber o maior ser possível (o ser mais perfeito);
o maior ser possível (o ser mais perfeito) não seria o maior (o mais perfeito) se existisse apenas no pensamento, pois qualquer ser que existisse no pensamento e também na realidade teria algo de que o maior ser (o mais perfeito) careceria, o que seria contraditório;
logo, o maior ser possível (o ser mais perfeito) – que é Deus – tem de existir na realidade e não apenas no pensamento.

No caso de o examinando, apoiando-se no argumento cosmológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
qualquer acontecimento no mundo é causado por algo e nada é causa de si mesmo;
se a ordem causal regredisse infinitamente, então não existiria uma causa primeira;
mas, se não existisse uma causa primeira, também não existiriam as causas subsequentes; porém, essas causas existem;
logo, tem de existir uma causa primeira que não faz parte do mundo (que é transcendente) e que é a fonte de todas as causas – essa causa não causada (e transcendente) só pode ser Deus.

− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento do desígnio, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
os relógios têm características complexas – consistem em partes (cada uma com uma função) que funcionam em conjunto, com um propósito específico;
nada do que conhecemos e que exibe estas características é fruto do acaso, tendo sido sempre intencionalmente concebido por algum autor inteligente;
a natureza é, como os relógios, constituída por partes que funcionam em conjunto, mas de uma forma ainda mais complexa;
logo, a natureza não é fruto do acaso e teve também de ser intencionalmente concebida por um autor; esse autor superiormente inteligente é Deus.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento ontológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
tal como da ideia de uma ilha perfeita não se segue que essa ilha tenha de existir, também da ideia de Deus como um ser perfeito não se segue que ele tenha de existir;
é ilegítimo pretender provar questões de facto por meio de argumentos a priori, pois o que concebemos como existente pode também ser concebido como não existente, sem que isso implique contradição;
o argumento é circular, porque a definição de Deus contém implicitamente, desde o início, o pressuposto de que ele existe necessariamente.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento cosmológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
tal como pode haver uma longa cadeia finita de causas que, para subsistir, precisaria de uma primeira causa, também pode haver uma cadeia infinita de causas que, para subsistir, não requer uma primeira causa;
o Universo, e não Deus, poderia ser a exceção ao princípio de que tudo tem uma causa, existindo simplesmente e, portanto, não exigindo uma explicação adicional para a sua existência;
(o argumento incorre na falácia da composição, na medida em que) não é porque cada acontecimento tem uma causa que toda a cadeia de acontecimentos tem igualmente uma causa, ou seja, da premissa de que todos os acontecimentos têm uma causa não se segue que há uma causa para toda a cadeia de acontecimentos.

No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao argumento do desígnio, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser provada:
a analogia entre os relógios e o Universo é fraca, pois aprendemos aquilo que sabemos sobre a origem dos relógios observando muitos relógios e também a sua produção pelos relojoeiros; em contrapartida, nunca observamos diferentes universos, visto haver apenas um, nem observamos a sua produção;
a ordem do Universo pode ter surgido por um longo processo de adaptação e de seleção natural;
o argumento não prova a existência de um ser perfeito, mas, no melhor dos casos, de um ser imensamente poderoso, imensamente inteligente, livre e racional.




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Nem sei porque ainda falo em Deus.
Se de mim me afasto e obedeço ao mundo
– traz ele consigo um sonho para levedar
na perspicácia absorta de um farol de angústia –
e não concedo esperança ao que anda em mim
podendo ser volúpia da memória livre;
se Deus partiu para o limite da vida
quando olhámos ambos a realidade das coisas;
se não existe uma barca onde o rumo se invente,
embora as pontes sejam dessas barcas;
se onde estiver um homem não estará outro homem.
Não sei, de facto, porque falo de Deus.


Jorge de Sena


Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa / sel. e pref. José Tolentino Mendonça, Pedro Mexia. 1a ed., reimp. Porto: Assírio & Alvim, 2014.  ISBN 978-972-37-1775-4.



Deus ainda é uma questão e merece uma antologia e um festival de poesia


A antologia de poesia portuguesa organizada por Pedro Mexia e Tolentino Mendonça lança a conversa na primeira edição de Carmina, encontros de poesia, esta sexta-feira e sábado, em Famalicão.
Pedro Mexia e Tolentino Mendonça começam por dizer que isto tem tudo para correr mal. Mas não podem estar realmente a falar a sério: ninguém organizaria uma antologia e a primeira edição de um encontro de dois dias dedicados à poesia, se não estivesse minimamente confiante. Começa esta sexta-feira a primeira edição de Carmina, o encontro de poesia da Fundação Cupertino de Miranda em parceria com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, coordenado por estes dois poetas. Os dois lançam agora Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa, uma antologia de poesia que dá o mote ao evento.
No ano em que a Fundação Cupertino de Miranda comemora 50 anos, a instituição estreia o festival de poesia que quer repetir de dois em dois anos. “Queremos olhar para trás, fazer o balanço de todos estes anos, mas sobretudo olhar para a frente. A fundação sempre esteve ligada à poesia e esta é uma forma de continuar a estar”, disse Pedro Álvares Ribeiro, presidente da fundação na apresentação do evento aos jornalistas.
Para a fundação, a poesia é uma “área diferenciadora de produção”, nas palavras do seu presidente, e têm tentado mostrá-lo nos Encontros Cesariny, que completaram no ano passado sete edições – a fundação detém parte do espólio do surrealista –, ou nas iniciativas com poesia dita em locais públicos que se iniciaram há cinco anos, conta António Gonçalves da Costa, director artístico da fundação.
Com Carmina, a palavra latina que define a poesia como alguma coisa entre o pagão e o religioso, a ideia é “ir além do que são habitualmente os festivais de poesia, em que apenas se ouve dizer poesia”, explica o director artístico da fundação.
Sexta-feira, o festival abre com às 10h com uma conversa entre Pedro Mexia e Tolentino Mendonça sobre “Deus como interrogação na poesia portuguesa", tema desta edição, e a programação continua com questões como "A poesia cabe dentro das antologias? Não. Então porque se fazem?" ou "À poesia o que é da poesia, a Deus o que é de Deus" em que participam autores como Rui Laje, Fernando J.B. Martinho ou Maria João Reynaud. Pelo meio, há a conferência do brasileiro Alex Villas Boas que explica "A interrogação de Deus na poesia brasileira" e sábado estão presentes os poetas Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão e Fernando Echevarría para uma mesa-redonda com os antologistas Pedro Mexia e Tolentino Mendonça. Não se esquecem as habituais iniciativas de poesia dita na rua, que acontecem nestes dois dias no jardim da fundação e no parque da cidade.
O ponto de partida para esta programação é a antologia com o mesmo tema e chancela da Assírio & Alvim – a editora criou uma edição em que a capa é o cartaz de Carmina e outra para ser vendida nas livrarias. O objectivo é que em cada uma das futuras edições se organize uma publicação antes do evento para que ela dê origem às conversas. “Uma coisa que devia ser habitual no nosso quotidiano: fazer e depois discutir”, diz Tolentino Mendonça.
Mas afinal tem tudo para correr mal? “Uma antologia deste tipo tem tudo para desagradar aos dois lados da barricada”, explica Pedro Mexia, “quem chega à antologia porque se questiona sobre Deus só encontra poesia e quem chega por causa da poesia pode não estar interessado em Deus.” Na Explicação que abre o livro há espaço para explicar melhor: os dois antologistas reconhecem a resistência tradicional destes dois mundos um face ao outro. Se, por um lado, citam o poeta Gottfried Benn, que diz que “Deus é um mau princípio estilístico” e são tentados a concluir que “as convicções religiosas são incompatíveis com a boa poesia”, por outro, lembram “o divórcio que na prática se veio a instalar entre religião e artes”, porque “a arte é um princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé”, ou melhor, “à poesia opõe-se o único factor decisivo: a verdade”.
Ultrapassando esta aparente oposição entre arte e religião – que no prefácio é resolvida com uma frase de Bento XVI sobre a importância do belo –, esta antologia era uma “lacuna no mercado português”, diz Pedro Mexia. Não existia uma recolha de poesia religiosa, sendo “a relação com Deus essencial na poesia portuguesa do século XX”, diz. Vêm à cabeça os exemplos evidentes, acrescenta o antologista, de Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner ou Eugénio de Andrade, e surge a pergunta: o que foi escrito para além das suas obras e do seu tempo? Nesta antologia, apenas Carlos Poças Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria nasceram na segunda metade do século XX. Com movimentos como o surrealista, a Poesia 61 ou a poesia experimental houve um desinteresse por esta questão.
“O facto de haver poucos poetas a tratar agora esta questão mostra como ela não é do nosso tempo, parece não ser pertinente para nós”, diz Pedro Mexia, para mostrar como este tema pode ser uma não questão para muita gente, sobretudo nos últimos 40 anos. “São caminhos mais silenciosos, mas não menos relevantes”, diz Tolentino Mendonça, padre e poeta. “As antologias de poesia são documentos sociológicos sobre um país. Antologias anuais de poesia são importantes documentos sociológicos”, completa.
Em Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa procuraram essa actualidade e definiram desde o início que queriam começar e acabar com “dois grandes poetas”, diz Mexia: Vitorino Nemésio (1901-1978) abre o livro e para fechar Daniel Faria (1971-1999). Pelo meio, outros 11 poetas estão presentes não apenas porque tocam este tema – “Não incluímos ninguém que não incluíssemos numa antologia de poesia”, conta –, mas porque têm qualidade para integrar qualquer antologia.
No processo de selecção, que partiu de uma long list para um grupo de 20 e finalmente para os 13 autores escolhidos, houve surpresas para os próprios autores, como a de Jorge de Sena, “que nem sequer estava na long list”, confessa Pedro Mexia. Mais do que uma pessoa recomendou que lessem a obra dos seus primeiros anos, entre 1930 e 1940. Descobriram um homem “em luta com Deus”, escrevem no prefácio, “um agnóstico à beira da crença e do ateísmo”.
De fora ficaram aqueles em que Deus aparece como uma referência a um determinado imaginário, “um aspecto quase folclórico”, lê-se no livro, em vez de ser uma interrogação, “um assunto íntimo e grave”. “Pode haver quem estranhe a ausência de Miguel Torga ou de José Régio”, lembra Pedro Mexia. Mas aí, concordam os dois responsáveis pela selecção, o gosto dos antologistas “é sempre um bom critério”.
 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/deus-ainda-e-uma-questao-e-merece-uma-antologia-e-um-festival-de-poesia-1662228





CRÍTICA

Atravessar a lâmina das águas


O trânsito entre Deus e os poetas portugueses — de Vitorino Nemésio a Daniel Faria — numa antologia equilibrada e significativa


Cronologicamente, Vitorino Nemésio é o autor que abre esta antologia — um autor de profundas inquietações religiosas

Verbo — Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa não tem antecedentes próximos. Não se pode dizer que haja entre nós uma linhagem consolidada de antologias com um nível qualitativo firme e ininterrupto, criadoras de uma imagem satisfatória da nossa poesia. Se há títulos que podem fazer supor o contrário, parece legítimo ver neles menos a peça de um processo geral coerente, gerador de nexos aproveitáveis, do que um episódio raro. O sentimento geral é de deslaçamento e incompletude. Decerto por infrequência, e nem sempre por falta de valor de alguns desses esforços. Diferentemente, uma poesia como, por exemplo, a britânica materializou uma tradição contínua e válida por meio de um conjunto de antologias — abrangentes ou restritas, mas, genericamente, de elevado valor documental e poético — que formam hoje um panorama ponderado e lúcido. Mesmo numa área tão específica como a religião: The Faber Book of Religious Verse (1972), editado por Helen Gardner; The New Oxford Book of Christian Verse (1981), por Donald Davie (Lord David Cecil organizara, em 1940, The Oxford Book of Christian Verse); The Penguin Book of English Christian Verse (1984), a cargo de Peter Levi. Meros exemplos, longe de exaustivos, mas que indiciam um contraste nítido face ao caso português. No nosso país, ressalvando iniciativas de carácter confessional, as experiências antológicas dedicadas a esta área cingem-se praticamente à colaboração entre José Régio e Alberto Serpa — Na Mão de Deus: Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa (1958) — e à recolha de Guilherme de Faria, editada postumamente — Antologia de Poesias Religiosas (1947). Note-se, a título exemplificativo, que neste volume as últimas entradas se cifram em composições de António Nobre e do próprio Faria, desaparecido em 1929 (a que se seguem, a fechar, Cantigas Populares).
É claro que, com o que se tentou apresentar, não se pretendia obliterar um quadro geral marcado pela insuficiência na edição de antologias, quer específicas, quer generalistas — mas tais considerações não cabem no âmbito deste texto, que, de resto, já se alargou perigosamente.
Tendo em conta o quadro traçado, falta-nos, perante uma antologia como a que organizaram José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, a jurisprudência que nos permitiria estabelecer comparações e tecer juízos mais robustos. Verbo terá, portanto, de ser analisada por si só. Trata-se de uma antologia temática, de âmbito temporal preciso, que se inscreve numa orientação cultural circunscrita e maioritária, de matriz cristã. É possível debater se tal posição — unívoca, do ponto de vista da orientação religiosa — é ou não defensável. Contudo, colhendo o seu título no primeiro versículo do Evangelho segundo São João — “No princípio era o Verbo” —, esta antologia define claramente os seus limites e as possibilidades do seu conteúdo. Os organizadores não terão querido enjeitar o significado mais profundo daquela noção, enquanto Logos, isto é: Deus-filho, na tradição do Novo Testamento. Como não terão esquecido, igualmente, que logos é, em paralelo a essa acepção, e além do contexto religioso, “palavra”, “discurso”, mas também “razão”. Talvez importe lembrar que de logos derivam formas lexicais com o sentido de “falar”, ou “colher palavras”. A relação com a poesia que esses sentidos possibilitam abre caminhos não limitados a uma aceitação contemplativa. Talvez nesse sentido Mexia e Tolentino Mendonça falem de um “modo interrogativo” (p. 13). Devido aos contornos que apresenta, esta obra fixa limites especialmente precisos, em cujas extremidades se encontram Vitorino Nemésio e Daniel Faria. O que automaticamente exclui a tradição pré-moderna, ao contrário do que acontecia nas antologias antes referidas — e os organizadores não escamoteiam o facto de “a questão de Deus” [ser] inexistente ou ocasional no primeiro modernismo” (p. 10) —, e poetas nascidos após 1971.
Pensando nos autores recolhidos em Verbo, deve referir-se Vitorino Nemésio. Ao escolhê-lo para abrir a sua antologia, os responsáveis optaram por um dos nomes que mais ajudaram a definir a moderna poesia portuguesa, e no âmbito temático aqui em causa, um escritor de profundas inquietações. Lembre-se um título como O Verbo e a Morte (1959), e o poema epónimo, incluído na presente antologia — “Então Deus é o Tu na face,/ O que nos deixa ser em frente,/ Como se assim recuperasse/ Meu eu sem área, eu morto, eu mesmo,/ Que me assumi na face morta” (p. 32). Poderia ainda invocar-seO Verbo, de Carlos Poças Falcão — “Ser o verbo certo, essa volúpia/ como uma roseira, a posição sentada ou uma casa/ de pedra e de madeira. (…) verbos que procuram leveza e exactidão” (p. 176). Um exemplo, este último, que elucida a dimensão dúctil do logos. Enquanto mediador entre sujeito e objecto, instrumento para dizer o mundo, e como ligação ao divino. Eis uma das vias por onde caminha esta poesia.
Mas esse não é um caminho exclusivo. Ruy Cinatti, por exemplo, de quem foi opção avisada privilegiar os livros póstumos, é um exemplo de como o tratamento da matéria religiosa pode ser outra coisa que não reverência ou ortodoxia — “Consummatum est,/ e eu me consumo/ acervo de unhas que me dilaceram/ e eu estacado/ perfil — homem de figura,/ mas assombrado” (p. 50). Poucas vezes a poesia portuguesa terá alcançado dirigir-se a Deus de forma ao mesmo tempo tão pungente e conseguida do ponto de vista expressivo. A propósito de Ruy Belo, Joaquim Manuel Magalhães destacou a “afirmação na dúvida”. A sua poesia, que é um dos lugares mais tensos e conturbados da relação com Deus, mas também dos mais congruentes — Joaquim Manuel Magalhães falou da “poesia de um homem religioso até ao fim” —, afirma-se numa luta, a certa altura num desvio (é conhecida a questão da minúscula da palavra “deus”), mas sempre numa relação proveitosa para os seus versos — “mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus” (p. 141). Na impossibilidade de expor detidamente todos os poetas incluídos, o mais tentador (motejo não intencional) seria referir Adília Lopes. Se num dos seus poemas escreve “Deus é a nossa/ mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos fora/ como a fé/ porque achamos/ que é pirosa” (p. 195), podíamos ser levados a quedar-nos apenas na aparente iconoclastia; mas também seria possível recordar S. Paulo (Romanos, 1:16-17), quando este diz: “Na verdade, eu não me envergonho do evangelho” (curiosamente, a Vulgata diz “non erubesco”, ou seja “não coro” [de vergonha]). Nem o acaso nem o descaso parecem ter passado por aqui.
Dos poetas incluídos em Verbo, alguns são fundamentais — Nemésio, Sena, Sophia, Ruy Belo ou Armando Silva Carvalho —; outros são autores de primeira linha — Ruy Cinatti, Carlos Poças Falcão —, mas, no cômputo geral, o conjunto é equilibrado. Demarcados pelo tema e pela fronteira cronológica estabelecida, os 13 autores convocados para Verbo (incluindo, além dos já referidos, Fernando Echevarría, José Bento, Cristovam Pavia e Pedro Tamen) não se subordinam a qualquer deliberado simbolismo numérico, mas surgem em consequência de critérios que salientam o carácter significativo e questionador do divino nas suas poesias.
 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/atravessar-a-lamina-das-aguas-1667776

terça-feira, 9 de junho de 2015

Se estou só, quero não estar, Fernando Pessoa









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Se estou só, quero não ‘star,
Se não ‘stou, quero ‘star só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.

 

2-7-1931

Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

 


Linhas de leitura do poema “Se estou só, quero não ‘star”, de Fernando Pessoa

  • Tema: busca incessante do “eu”; inconformismo do “eu”; insatisfação do “eu”.

 

  • Na primeira quadra, o sujeito poético está inquieto porque não se sente bem seja só, seja acompanhado: quando está só, deseja ter companhia; quando está com os outros, deseja estar só, o que o leva a concluir (“Enfim”) que quer sempre estar como não está.

 

  • Na segunda quadra, considera que para ser feliz tem de deixar de ser ele próprio (“eu”) para passar a ser outra pessoa (“aquele”); mas, no fundo, o outro não é feliz porque não é ele que sente essa felicidade.

 

  • Na terceira quadra, o sujeito poético parece advertir para a possibilidade de se ficar “perdido na estrada” (perdido na vida), caso se deixe de fazer o que se quer daquilo que não é nada. «Fica perdido na estrada» o que não sabe o que fazer à vida, o que com ela se relaciona mal.

 

Intertextualidade

Ouve a canção «Estou Além», do primeiro disco de António Variações, editado em formato single e maxi-single, em 1982:



Este sentimento de descontentamento constante traduz-se, no ser humano, em angústia e desalento, o que é claramente negativo. Porém, esta insatisfação também poderá, positivamente, ser o motor de mudanças e avanços que fogem ao conformismo e acomodamento relativamente ao já conhecido.

 

Assinala o único elemento que não é comum entre a letra da canção «Estou Além» (de António Variações) e o poema «Se estou só, quero não 'star» (de Fernando Pessoa):

a) Conflito interior

b) Instabilidade emocional

c) Insatisfação

d) Solidão

e) Angústia existencial

 

Resposta: d)

Bibliografia: Entre Palavras - Português 9.º Ano, António Vilas-Boas e Manuel Vieira, Sebenta, 2013; Letras & Companhia - Português 9.º Ano, Carla Marques e Inês Silva, Edições Asa, 2013; (Para)Textos - Português 9.º Ano, Ana Paiva et alii, Porto Editora, 2013.

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 


 


“Se estou só, quero não estar, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/ser-aquele.html


sexta-feira, 5 de junho de 2015

João Teixeira de Medeiros (poeta popular)


Busto de João Teixeira de Medeiros em Heritage State Park, Fall River.



MONÓLOGO DO RELÓGIO

Não há no meu tic tac
Vislumbres, hipocrisia
Cada tic traz um tac
Cada tac uma agonia

Tudo a tempo se renova
Nos movimentos que exerço.
Cada tic abre uma cova
Cada tac traz um berço.

Num tic nasce uma mágoa
Num tac morre um prazer.
Cada tic é gota de água
Sobre uma face a correr.

Por cada tic agitado
Por cada tac abatido
Há sempre mais um pecado
a nascer e a ser vivido.

Tic tac é a minha lida
Tic tac é a minha sorte.
Num tic mete-se a vida
Num tac se encontra a morte.

Com tão cruel tic tac
Com tão funesta medida
Vou roubando ao almanaque
Todos os anos da vida.

Vou medindo em horas cheias
O tempo que não tem fim.
Tenho o coração e as veias
Do tempo dentro de mim.

E nesta pressa ruim
De mágoas e de agonias
Chegam sempre ao triste fim
Vidas, minutos e dias.


João Teixeira de Medeiros




"Monólogodo relógio" - poema do dia dito por Fátima Sousa e comentários de Marta Costa e Urbano Bettencourt. Carregado a 21/12/2011.



João Teixeira de Medeiros nasceu em Fall River, no dia 16 de Novembro de 1901, mas com apenas 9 anos idade “emigrou” para a Pedreira do Nordeste, na ilha de São Miguel, acompanhando os pais.
Depois, aos 29 anos, regressou a Fall River, onde era conhecido como “o teixeirinha de Nordeste”.
Fazia quadras sobre os mais variados temas e tem uma poesia popular publicada, depois de ter sido descoberta por Onésimo Almeida, que o ajudou a publicar dois livros: Do tempo e de mim e Ilha em Terra.
O poeta já foi alvo de várias homenagens, quer nos EUA, quer em Nordeste.
Embora residindo nos EUA nunca esqueceu a sua ilha, até morrer, em 25 de Julho de 1995.
Sobre S. Miguel, deixou estas duas quadras:

Se fosses ó ilha bela,
Flor que eu pudesse colher,
Pendurava-te à lapela,
Pra todo o mundo te ver!

Saudade é filha da dor,
Que a triste ausência me deu.
Pai da saudade é o amor,
Escravo dela sou eu.

Diário dos Açores, Ano 146º, Nº 40.701, 2015-06-05






DO TEMPO E DE MIM, João Teixeira de Medeiros
Seleção, organização e prefácio de Onésimo Teotónio Almeida. Gávea-Brown, Providence, Rhode Island, 1982.

Chega-nos da LUSAlândia um apaixonante livro de versos de um açoriano (por direito de cultura), americano (por direito de nascimento e de uma longa vida de trabalho). Aos 82 anos, esse homem nascido em Fall River, Mass., com parte da infância, a adolescência e a juventude passada em S. Miguel, na sua Pedreira do Nordeste, dá-nos um pouco da sua alma, dessa alma portuguesa, para sempre ligada à terra dos seus pais. Porque Teixeira de Medeiros ficou culturalmente sempre nos Açores; só emigrou o homo faber. A aproximação com António Aleixo (e o organizador disso se apercebe) impõe-se logo no primeiro folhear: a preferência pelo nosso género nacional – a quadra –; a satirização do mundo da hipocrisia, onde o falso oiro brilha como o autêntico («Os Neros do séc. XX», «Sátira», «Mentiras»); a evocação dos quadros bucólicos e aldeãos («Guitarra», «Cravo vermelho», «Fada do moinho», «Lavadeira»). E a mulher portuguesa idealizada ou quedada num passado mitificado, numa idade de Oiro situada no S. Miguel dos princípios do século («Mulheres», «A graça do teu olhar», «Feira de Beijos», etc.). E o testemunho do jovem que vê, pela primeira vez, um automóvel na sua aldeia («Satanás em quatro rodas») e acaba, muito portuguesmente, com um prognóstico-participação: «Ouvi meus avós falar / Que antes do mundo acabar, / Deus mandaria sinais… / Vou para casa, vou-me embora, / Rezar a nossa Senhora / E a outras santinhas mais»?
Como escolher, como citar tanto verso que nos toca, a nós portugueses sempre insulares, porque habitantes de um recanto isolado que foi a nossa infância e cujo caminho para sempre perdemos? Só podemos dizer: leiam o pequeno livro que em boa hora, com carinho filial, Onésimo T. Almeida lança a este mundo tantas vezes adverso à poesia, porque ocupado nas «contas da vida».


Graça Silva Dias, "[Recensão crítica a 'Do Tempo e de Mim', de João Teixeira de Medeiros]" in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 76, Nov. 1983, p. 82. 





Nesta cova onde se vaza
Minha estória até ao fim,
Uma simples pedra rasa
Tanto basta para mim.

O peso já não me assusta,
Já me não inspira medo;
Depois de morto não custa
Uma areia ou um penedo.

Aqui nesta cova jaz
O filho dum português;
O nome ficou atrás,
O corpo foi-se de vez.

Aqui nesta cova jaz
Um velho l(usa)landês
Nesta mesma se desfaz
Quanto foi e quanto fez.

*



O dinheiro é um truão,
Quando se quer divertir,
Arrasta o pobre no chão
E faz o rico subir.

É um demónio, um traidor,
Um rufia, um vendilhão!
Troca ódios, compra amor,
Vende quem lhe der a mão.

*

  
A beleza só é beleza 
Para quem na beleza crê
A beleza é só certeza
Conforma a vista que a vê

João Teixeira de Medeiros





Em memória de João Teixeira de Medeiros
(profeta da simplicidade poética)
(Nov. 16, 1901 – Julho 25, 1995)

Creio que o ser humano-poeta é portador de memórias tecidas pelo tempo no tear da sua existência. Estou a reviver o episódio daquela manhã de Julho de 1995, quando o Sol fizera questão de se “levanta”’ cedo para não falhar a tarefa de aquecer o silencioso chão de St. Patrick’s Cemetery, em Fall River. Já se passaram 20 anos: naquela manhã procurei caminhar (sem trocar o passo) na longa fileira d’Amizade, rumo à “derradeira” morada terrestre do saudoso poeta João Teixeira de Medeiros – ou seja, ficámos bem pertinho do pedaço de chão que iria ser a testemunha silenciosa do sua existência física (1901-1995).
Apesar da provecta idade que tinha quando nos deixou, o seu testemunho poético não receia sugerir que a morte teimou em interromper a sua juventude artístico-emocional. Seja-me permitido recordar a quadra que lhe dediquei aquando da celebração dos seus 90 anos:
Nenhum poeta merece
Ter uma vida esquecida:
Poeta não envelhece
Jamais se cansa da vida…
Sabemos (por experiência própria) que o latejar das ausências nem sempre faz o poeta esquecer a sua condição de “remendo cerzido no pano da utopia”… Confirmo: ainda sinto a falta das nossas frequentes conversas ao telefone (amistosos comentários alusivos ao conteúdo do memorandum). Mais: desde há muito que o carteiro parou de nos brindar com a entrega dos postais cíclicos escritos na linguagem poética afinada pela simplicidade. Jamais esquecerei o convívio proporcionado pelas amigáveis tarefas de chauffeur nas frequentes viagens, de pendor cultural, rumo aos vários centros culturais da Comunidade Luso-Americana, sediados na costa leste dos EUA.
Através da medida exacta das suas quadras, o poeta Teixeira de Medeiros foi capaz de enfrentar o ‘bom-combate’ das ideias, sem usar rimas de agressividade gratuita. Embora não familiarizados (academicamente falando) com a densa doutrina do filósofo canadiano, Marshall Mcluhan, atrevo-me a recordar que, por várias vezes, fomos surpreendidos a citar frases do citado filósofo, como esta, por exemplo: “Segredos! Segredos! Insignificantes segredos só precisam de protecção; grandes Descobertas são protegidas pela incredulidade (e ignorância) pública”.
Alguns episódios que (para muitos) pareciam ‘sinais do fim do mundo’, para o nosso poeta, tais sinais eram apenas o princípio dum Novo mundo! O poeta João Teixeira de Medeiros era apreciador entusiasta das conhecidas frases de sabor anteriano, como por exemplo: “a humanidade é mais ignorante do que má”. De certa feita, o nosso Poeta ficou deveras ‘impressionado’ com a virilidade psico-cultural dos “dizeres” do saudoso filósofo, Agostinho da Silva (falecido há 21 anos), como esta, por exemplo: “… o grande defeito dos intelectuais portugueses tem sido sempre o só lidarem com intelectuais. Vão para o povo. Vejam o povo. Vejam como eles reflectem, como eles gostariam que a vida fosse para eles…”
…/…
Seja-me permitido repetir que, naquela manhã de 25 de Julho (1995), cerca de meia centena de familiares e amig@s caminharam em silêncio pelas alamedas do St. Patrick’s Cemetery. Não houve despedidas: apenas o habitual ‘até mais ver, querido Poeta’! De repente, senti a memória despertada pelo conteúdo duma das cartas arquivadas no arquivo emocional, que regista o seguinte: “… terá o meu bom amigo, após a minha morte, uma pequena lembrança do velhinho que nasceu para ser poeta, mas que não chegou ao topo da escada”…
Está bem visto! Cá temos mais uma quadra do valoroso profeta da simplicidade poética a tentar esconder o tamanho real da sua estatura artística atrás da ‘pequenez’ da silhueta física:
Achar um amigo certo
Neste mundo de alvoroço
É como achar num deserto
Um diamante num poço…

João-Luís de Medeiros, Rancho Mirage, CA
Correio dos Açores, Ano 96, n.º 30691, 2015-07-29.




CARREIRO, José. “João Teixeira de Medeiros (poeta popular)”. Portugal, Folha de Poesia, 05-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/joao-teixeira-de-medeiros-poeta-popular.html