Se a cada coisa que há
um deus compete, Porque não haverá de mim um deus?
Porque o não serei eu?
É em mim que o Deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.
12-1931
Odes de
Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João
Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 138.
A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER No princípio era a ilha embora se diga o Espírito de Deus abraçava as águas
Nesse tempo estendia-me na terra para olhar as estrelas e não pensava que esses corpos de fogo pudessem ser perigosos
Nesse tempo marcava a latitude das estrelas ordenando berlindes sobre a erva
Não sabia que todo o poema é um tumulto que pode abalar a ordem do universo agora acredito
Eu era quase um anjo e escrevia relatórios precisos acerca do silêncio
Nesse tempo ainda era possível encontrar Deus pelos baldios
DESFECHO
Não tenho maispalavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu
pude combater
O terror de te
ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão
da caminhada,
Era certa a meu
lado
A divinapresençaimpertinente
Do teuvulto
calado
E paciente...
E lutei, comolutaum solitário
Quando alguémlhe
perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, armaquetunão usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na suamó
O joioamargo
do quete
dizia...
Agora somos doisobstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenasvão
a par na teimosia.
Miguel Torga, CâmaraArdente, 1962.
ESCUTO
Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967
Análise e compreensão da
experiência religiosa
Muitas pessoas – filósofos, teólogos e cientistas – afirmam
que temos bons argumentos a favor da existência de Deus: uns defendem que a
própria ideia de Deus implica a sua existência; outros sustentam que tem de haver
uma causa para o Universo e que essa causa só pode ser Deus; outros, ainda,
alegam que a ordem que encontramos na natureza não pode ser fruto do acaso e
que Deus é a melhor explicação para essa ordem; e há quem considere outros
argumentos.
Será que a existência de Deus pode ser provada?
Na sua resposta, considere o argumento (ou prova) que estudou
a favor da existência de Deus e:
– identifique, referindo o seu nome,
esse argumento (ou prova) a favor da existência de Deus;
– apresente inequivocamente a sua
posição;
– argumente a favor da sua posição.
Cenário de resposta
A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente
relevantes.
Identificação do argumento:
− argumento ontológico OU argumento cosmológico OU argumento
do desígnio.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total
ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à possibilidade
de provar a existência de Deus.
Justificação da posição defendida:
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento
ontológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• podemos conceber o maior ser possível
(o ser mais perfeito);
• o maior ser possível (o ser mais
perfeito) não seria o maior (o mais perfeito) se existisse apenas no pensamento,
pois qualquer ser que existisse no pensamento e também na realidade teria algo
de que o maior ser (o mais perfeito) careceria, o que seria contraditório;
• logo, o maior ser possível (o ser
mais perfeito) – que é Deus – tem de existir na realidade e não apenas no
pensamento.
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento
cosmológico, concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• qualquer acontecimento no mundo é
causado por algo e nada é causa de si mesmo;
• se a ordem causal regredisse
infinitamente, então não existiria uma causa primeira;
• mas, se não existisse uma causa
primeira, também não existiriam as causas subsequentes; porém, essas causas existem;
• logo, tem de existir uma causa
primeira que não faz parte do mundo (que é transcendente) e que é a fonte de
todas as causas – essa causa não causada (e transcendente) só pode ser Deus.
− No caso de o examinando, apoiando-se no argumento do desígnio,
concordar com a possibilidade de a existência de Deus ser provada:
• os relógios têm características
complexas – consistem em partes (cada uma com uma função) que funcionam em
conjunto, com um propósito específico;
• nada do que conhecemos e que exibe
estas características é fruto do acaso, tendo sido sempre intencionalmente
concebido por algum autor inteligente;
• a natureza é, como os relógios,
constituída por partes que funcionam em conjunto, mas de uma forma ainda mais
complexa;
• logo, a natureza não é fruto do acaso
e teve também de ser intencionalmente concebida por um autor; esse autor
superiormente inteligente é Deus.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento ontológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• tal como da ideia de uma ilha
perfeita não se segue que essa ilha tenha de existir, também da ideia de Deus
como um ser perfeito não se segue que ele tenha de existir;
• é ilegítimo pretender provar questões
de facto por meio de argumentos a priori, pois o que concebemos como
existente pode também ser concebido como não existente, sem que isso implique
contradição;
• o argumento é circular, porque a
definição de Deus contém implicitamente, desde o início, o pressuposto de que
ele existe necessariamente.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento cosmológico, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• tal como pode haver uma longa cadeia
finita de causas que, para subsistir, precisaria de uma primeira causa, também
pode haver uma cadeia infinita de causas que, para subsistir, não requer uma
primeira causa;
• o Universo, e não Deus, poderia ser a
exceção ao princípio de que tudo tem uma causa, existindo simplesmente e,
portanto, não exigindo uma explicação adicional para a sua existência;
• (o argumento incorre na falácia da
composição, na medida em que) não é porque cada acontecimento tem uma causa que
toda a cadeia de acontecimentos tem igualmente uma causa, ou seja, da premissa de
que todos os acontecimentos têm uma causa não se segue que há uma causa para
toda a cadeia de acontecimentos.
− No caso de o examinando, apoiando-se em críticas ao
argumento do desígnio, discordar da possibilidade de a existência de Deus ser
provada:
• a analogia entre os relógios e o
Universo é fraca, pois aprendemos aquilo que sabemos sobre a origem dos
relógios observando muitos relógios e também a sua produção pelos relojoeiros;
em contrapartida, nunca observamos diferentes universos, visto haver apenas um,
nem observamos a sua produção;
• a ordem do Universo pode ter surgido
por um longo processo de adaptação e de seleção natural;
• o argumento não prova a existência de
um ser perfeito, mas, no melhor dos casos, de um ser imensamente poderoso,
imensamente inteligente, livre e racional.
Nem sei porque ainda
falo em Deus. Se de mim me afasto e
obedeço ao mundo
– traz ele consigo um sonho para levedar
na perspicácia absorta de um farol de angústia –
e não concedo esperança ao que anda em mim
podendo ser volúpia da memória livre;
se Deus partiu para o limite da vida
quando olhámos ambos a realidade das coisas;
se não existe uma barca onde o rumo se invente,
embora as pontes sejam dessas barcas;
se onde estiver um homem não estará outro homem.
Não sei, de facto, porque falo de Deus.
Jorge de Sena
Verbo: Deus como
interrogação na poesia portuguesa / sel. e pref. José Tolentino Mendonça, Pedro
Mexia. 1a ed., reimp. Porto: Assírio & Alvim, 2014.
ISBN 978-972-37-1775-4.
Deus ainda é uma questão e merece uma antologia e um festival de poesia
CATARINA MOURA
A antologia de poesia portuguesa organizada por Pedro Mexia e Tolentino Mendonça lança a conversa na primeira edição de Carmina, encontros de poesia, esta sexta-feira e sábado, em Famalicão.
Pedro Mexia e Tolentino Mendonça
começam por dizer que isto tem tudo para correr mal. Mas não podem estar
realmente a falar a sério: ninguém organizaria uma antologia e a primeira
edição de um encontro de dois dias dedicados à poesia, se não estivesse minimamente
confiante. Começa esta sexta-feira a primeira edição de Carmina, o encontro de
poesia da Fundação Cupertino de Miranda em parceria com a Câmara Municipal de
Vila Nova de Famalicão, coordenado por estes dois poetas. Os dois lançam agoraVerbo:
Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa, uma antologia de poesia que dá
o mote ao evento.
No ano em que a Fundação Cupertino de
Miranda comemora 50 anos, a instituição estreia o festival de poesia que quer
repetir de dois em dois anos. “Queremos olhar para trás, fazer o balanço de
todos estes anos, mas sobretudo olhar para a frente. A fundação sempre esteve
ligada à poesia e esta é uma forma de continuar a estar”, disse Pedro Álvares
Ribeiro, presidente da fundação na apresentação do evento aos jornalistas.
Para a fundação, a poesia é uma “área
diferenciadora de produção”, nas palavras do seu presidente, e têm
tentado mostrá-lo nos Encontros Cesariny, que completaram no ano passado sete
edições – a fundação detém parte do espólio do surrealista –, ou nas iniciativas
com poesia dita em locais públicos que se iniciaram há cinco anos, conta
António Gonçalves da Costa, director artístico da fundação.
Com Carmina, a palavra latina
que define a poesia como alguma coisa entre o pagão e o religioso, a ideia é
“ir além do que são habitualmente os festivais de poesia, em que apenas se ouve
dizer poesia”, explica o director artístico da fundação.
Sexta-feira, o festival abre com às
10h com uma conversa entre Pedro Mexia e Tolentino Mendonça sobre “Deus
como interrogação na poesia portuguesa", tema desta edição, e a
programação continua com questões como "A poesia cabe dentro das
antologias? Não. Então porque se fazem?" ou "À poesia o que é da
poesia, a Deus o que é de Deus" em que participam autores como Rui Laje,
Fernando J.B. Martinho ou Maria João Reynaud. Pelo meio, há a conferência do
brasileiro Alex Villas Boas que explica "A interrogação de Deus na poesia
brasileira" e sábado estão presentes os poetas Armando Silva
Carvalho, Carlos Poças Falcão e Fernando Echevarría para uma mesa-redonda com
os antologistas Pedro Mexia e Tolentino Mendonça. Não se esquecem as habituais
iniciativas de poesia dita na rua, que acontecem nestes dois dias no jardim da
fundação e no parque da cidade.
O ponto de partida para esta
programação é a antologia com o mesmo tema e chancela da Assírio & Alvim –
a editora criou uma edição em que a capa é o cartaz de Carmina e outra para ser
vendida nas livrarias. O objectivo é que em cada uma das futuras edições se
organize uma publicação antes do evento para que ela dê origem às conversas.
“Uma coisa que devia ser habitual no nosso quotidiano: fazer e depois
discutir”, diz Tolentino Mendonça.
Mas afinal tem tudo para correr mal?
“Uma antologia deste tipo tem tudo para desagradar aos dois lados da barricada”,
explica Pedro Mexia, “quem chega à antologia porque se questiona sobre Deus só
encontra poesia e quem chega por causa da poesia pode não estar interessado em
Deus.” Na Explicação que abre o livro há espaço para explicar melhor: os
dois antologistas reconhecem a resistência tradicional destes dois mundos um
face ao outro. Se, por um lado, citam o poeta Gottfried Benn, que diz que “Deus
é um mau princípio estilístico” e são tentados a concluir que “as convicções
religiosas são incompatíveis com a boa poesia”, por outro, lembram “o divórcio
que na prática se veio a instalar entre religião e artes”, porque “a arte é um
princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé”, ou melhor, “à poesia opõe-se o
único factor decisivo: a verdade”.
Ultrapassando esta aparente oposição
entre arte e religião – que no prefácio é resolvida com uma frase de Bento XVI
sobre a importância do belo –, esta antologia era uma “lacuna no mercado
português”, diz Pedro Mexia. Não existia uma recolha de poesia religiosa, sendo
“a relação com Deus essencial na poesia portuguesa do século XX”, diz. Vêm à
cabeça os exemplos evidentes, acrescenta o antologista, de Ruy Belo, Sophia de
Mello Breyner ou Eugénio de Andrade, e surge a pergunta: o que foi escrito para
além das suas obras e do seu tempo? Nesta antologia, apenas Carlos Poças
Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria nasceram na segunda metade do século XX.
Com movimentos como o surrealista, a Poesia 61 ou a poesia experimental houve
um desinteresse por esta questão.
“O facto de haver poucos poetas a
tratar agora esta questão mostra como ela não é do nosso tempo, parece não ser
pertinente para nós”, diz Pedro Mexia, para mostrar como este tema pode
ser uma não questão para muita gente, sobretudo nos últimos 40 anos. “São
caminhos mais silenciosos, mas não menos relevantes”, diz Tolentino Mendonça,
padre e poeta. “As antologias de poesia são documentos sociológicos sobre um
país. Antologias anuais de poesia são importantes documentos sociológicos”,
completa.
EmVerbo: Deus
como Interrogação na Poesia Portuguesaprocuraram
essa actualidade e definiram desde o início que queriam começar e acabar
com “dois grandes poetas”, diz Mexia: Vitorino Nemésio (1901-1978) abre o livro
e para fechar Daniel Faria (1971-1999). Pelo meio, outros 11 poetas estão
presentes não apenas porque tocam este tema – “Não incluímos ninguém que não
incluíssemos numa antologia de poesia”, conta –, mas porque têm qualidade para
integrar qualquer antologia.
No processo de selecção, que partiu
de umalong listpara
um grupo de 20 e finalmente para os 13 autores escolhidos, houve surpresas para
os próprios autores, como a de Jorge de Sena, “que nem sequer estava nalong list”, confessa
Pedro Mexia. Mais do que uma pessoa recomendou que lessem a obra dos seus
primeiros anos, entre 1930 e 1940. Descobriram um homem “em luta com Deus”,
escrevem no prefácio, “um agnóstico à beira da crença e do ateísmo”.
De fora ficaram aqueles em que Deus
aparece como uma referência a um determinado imaginário, “um aspecto quase
folclórico”, lê-se no livro, em vez de ser uma interrogação, “um assunto íntimo
e grave”. “Pode haver quem estranhe a ausência de Miguel Torga ou de José
Régio”, lembra Pedro Mexia. Mas aí, concordam os dois responsáveis pela
selecção, o gosto dos antologistas “é sempre um bom critério”.
O trânsito entre Deus e os poetas portugueses — de Vitorino Nemésio a Daniel Faria — numa antologia equilibrada e significativa
Cronologicamente, Vitorino Nemésio é o autor que abre esta antologia — um autor de profundas inquietações religiosas
Verbo — Deus
como Interrogação na Poesia Portuguesa não tem antecedentes próximos.
Não se pode dizer que haja entre nós uma linhagem consolidada de antologias com
um nível qualitativo firme e ininterrupto, criadoras de uma imagem satisfatória
da nossa poesia. Se há títulos que podem fazer supor o contrário, parece
legítimo ver neles menos a peça de um processo geral coerente, gerador de nexos
aproveitáveis, do que um episódio raro. O sentimento geral é de deslaçamento e
incompletude. Decerto por infrequência, e nem sempre por falta de valor de
alguns desses esforços. Diferentemente, uma poesia como, por exemplo, a
britânica materializou uma tradição contínua e válida por meio de um conjunto
de antologias — abrangentes ou restritas, mas, genericamente, de elevado valor
documental e poético — que formam hoje um panorama ponderado e lúcido. Mesmo numa área tão específica como a religião: The
Faber Book of Religious Verse (1972), editado por Helen Gardner; The
New Oxford Book of Christian Verse (1981), por Donald Davie (Lord
David Cecil organizara, em 1940, The Oxford Book of Christian Verse); The
Penguin Book of English Christian Verse (1984), a cargo de Peter Levi.
Meros exemplos, longe de exaustivos, mas que indiciam um contraste nítido
face ao caso português. No nosso país, ressalvando iniciativas de carácter
confessional, as experiências antológicas dedicadas a esta área cingem-se
praticamente à colaboração entre José Régio e Alberto Serpa — Na Mão de
Deus: Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa (1958) — e à recolha de
Guilherme de Faria, editada postumamente — Antologia de Poesias
Religiosas (1947). Note-se, a título exemplificativo, que neste volume
as últimas entradas se cifram em composições de António Nobre e do próprio
Faria, desaparecido em 1929 (a que se seguem, a fechar, Cantigas
Populares).
É claro que,
com o que se tentou apresentar, não se pretendia obliterar um quadro geral
marcado pela insuficiência na edição de antologias, quer específicas, quer
generalistas — mas tais considerações não cabem no âmbito deste texto, que, de
resto, já se alargou perigosamente.
Tendo em
conta o quadro traçado, falta-nos, perante uma antologia como a que organizaram
José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, a jurisprudência que nos permitiria
estabelecer comparações e tecer juízos mais robustos. Verbo terá,
portanto, de ser analisada por si só. Trata-se de uma antologia temática, de
âmbito temporal preciso, que se inscreve numa orientação cultural circunscrita
e maioritária, de matriz cristã. É possível debater se tal posição — unívoca,
do ponto de vista da orientação religiosa — é ou não defensável. Contudo,
colhendo o seu título no primeiro versículo do Evangelho segundo São João — “No
princípio era o Verbo” —, esta antologia define claramente os seus limites e as
possibilidades do seu conteúdo. Os organizadores não terão querido enjeitar o
significado mais profundo daquela noção, enquanto Logos, isto é:
Deus-filho, na tradição do Novo Testamento. Como não terão esquecido,
igualmente, que logos é, em paralelo a essa acepção, e além do
contexto religioso, “palavra”, “discurso”, mas também “razão”. Talvez importe
lembrar que de logos derivam formas lexicais com o sentido de
“falar”, ou “colher palavras”. A relação com a poesia que esses sentidos
possibilitam abre caminhos não limitados a uma aceitação contemplativa. Talvez
nesse sentido Mexia e Tolentino Mendonça falem de um “modo interrogativo” (p.
13). Devido aos contornos que apresenta, esta obra fixa limites especialmente
precisos, em cujas extremidades se encontram Vitorino Nemésio e Daniel Faria. O
que automaticamente exclui a tradição pré-moderna, ao contrário do que
acontecia nas antologias antes referidas — e os organizadores não escamoteiam o
facto de “a questão de Deus” [ser] inexistente ou ocasional no primeiro
modernismo” (p. 10) —, e poetas nascidos após 1971.
Pensando nos
autores recolhidos em Verbo, deve referir-se Vitorino Nemésio. Ao
escolhê-lo para abrir a sua antologia, os responsáveis optaram por um dos nomes
que mais ajudaram a definir a moderna poesia portuguesa, e no âmbito temático
aqui em causa, um escritor de profundas inquietações. Lembre-se um título como O
Verbo e a Morte (1959), e o poema epónimo, incluído na presente
antologia — “Então Deus é o Tu na face,/ O que nos deixa ser em frente,/ Como
se assim recuperasse/ Meu eu sem área, eu morto, eu mesmo,/ Que me assumi na
face morta” (p. 32). Poderia ainda invocar-seO Verbo, de Carlos Poças
Falcão — “Ser o verbo certo, essa volúpia/ como uma roseira, a posição sentada
ou uma casa/ de pedra e de madeira. (…) verbos que procuram leveza e exactidão”
(p. 176). Um exemplo, este último, que elucida a dimensão dúctil do logos.
Enquanto mediador entre sujeito e objecto, instrumento para dizer o mundo, e
como ligação ao divino. Eis uma das vias por onde caminha esta poesia.
Mas esse não
é um caminho exclusivo. Ruy Cinatti, por exemplo, de quem foi opção avisada
privilegiar os livros póstumos, é um exemplo de como o tratamento da matéria
religiosa pode ser outra coisa que não reverência ou ortodoxia — “Consummatum
est,/ e eu me consumo/ acervo de unhas que me dilaceram/ e eu estacado/ perfil
— homem de figura,/ mas assombrado” (p. 50). Poucas vezes a poesia portuguesa
terá alcançado dirigir-se a Deus de forma ao mesmo tempo tão pungente e
conseguida do ponto de vista expressivo. A propósito de Ruy Belo, Joaquim
Manuel Magalhães destacou a “afirmação na dúvida”. A sua poesia, que é um dos
lugares mais tensos e conturbados da relação com Deus, mas também dos mais
congruentes — Joaquim Manuel Magalhães falou da “poesia de um homem religioso
até ao fim” —, afirma-se numa luta, a certa altura num desvio (é conhecida a
questão da minúscula da palavra “deus”), mas sempre numa relação proveitosa
para os seus versos — “mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus” (p. 141).
Na impossibilidade de expor detidamente todos os poetas incluídos, o mais
tentador (motejo não intencional) seria referir Adília Lopes. Se num dos seus
poemas escreve “Deus é a nossa/ mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos
fora/ como a fé/ porque achamos/ que é pirosa” (p. 195), podíamos ser levados a
quedar-nos apenas na aparente iconoclastia; mas também seria possível recordar
S. Paulo (Romanos, 1:16-17), quando este diz: “Na verdade, eu não me envergonho
do evangelho” (curiosamente, a Vulgata diz “non erubesco”, ou seja “não
coro” [de vergonha]). Nem o acaso nem o descaso parecem ter passado por aqui.
Dos poetas
incluídos em Verbo, alguns são fundamentais — Nemésio, Sena,
Sophia, Ruy Belo ou Armando Silva Carvalho —; outros são autores de primeira
linha — Ruy Cinatti, Carlos Poças Falcão —, mas, no cômputo geral, o conjunto é
equilibrado. Demarcados pelo tema e pela fronteira cronológica estabelecida, os
13 autores convocados para Verbo (incluindo, além dos já
referidos, Fernando Echevarría, José Bento, Cristovam Pavia e Pedro Tamen) não
se subordinam a qualquer deliberado simbolismo numérico, mas surgem em
consequência de critérios que salientam o carácter significativo e questionador
do divino nas suas poesias.
Se estou só, quero não ‘star,
Se não ‘stou, quero ‘star só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.
2-7-1931
Fernando
Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana
Maria Freitas, Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
Linhas de leitura do poema “Se estou só, quero não ‘star”, de Fernando
Pessoa
Tema: busca incessante do “eu”; inconformismo do “eu”;
insatisfação do “eu”.
Na primeira quadra, o sujeito poético está inquieto porque não
se sente bem seja só, seja acompanhado: quando está só, deseja ter companhia;
quando está com os outros, deseja estar só, o que o leva a concluir (“Enfim”) que
quer sempre estar como não está.
Na segunda quadra, considera que para ser feliz tem de deixar
de ser ele próprio (“eu”) para passar a ser outra pessoa (“aquele”); mas, no
fundo, o outro não é feliz porque não é ele que sente essa felicidade.
Na terceira quadra, o sujeito poético parece advertir para a possibilidade
de se ficar “perdido na estrada” (perdido na vida), caso se deixe de fazer o que
se quer daquilo que não é nada. «Fica perdido na estrada» o que não sabe o que
fazer à vida, o que com ela se relaciona mal.
Intertextualidade
Ouve a canção «Estou Além», do primeiro disco de
António Variações, editado em formato single e maxi-single, em 1982:
Este
sentimento de descontentamento constante traduz-se, no ser humano, em angústia
e desalento, o que é claramente negativo. Porém, esta insatisfação também
poderá, positivamente, ser o motor de mudanças e avanços que fogem ao
conformismo e acomodamento relativamente ao já conhecido.
Assinala o único elemento que não é comum entre a letra da canção
«Estou Além» (de António Variações) e o poema «Se estou só, quero não 'star»
(de Fernando Pessoa):
a) Conflito interior
b) Instabilidade emocional
c) Insatisfação
d) Solidão
e) Angústia existencial
Resposta: d)
Bibliografia: Entre Palavras - Português 9.º Ano, António Vilas-Boas e Manuel Vieira, Sebenta, 2013; Letras
& Companhia - Português 9.º Ano, Carla Marques e Inês Silva, Edições
Asa, 2013; (Para)Textos - Português 9.º Ano, Ana Paiva et alii, Porto
Editora, 2013.
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
“Se estou só, quero não
estar, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 09-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/ser-aquele.html
Busto de João
Teixeira de Medeiros em Heritage
State Park, Fall River.
MONÓLOGO
DO RELÓGIO
Não
há no meu tic tac
Vislumbres,
hipocrisia
Cada
tic traz um tac
Cada
tac uma agonia
Tudo
a tempo se renova
Nos
movimentos que exerço.
Cada
tic abre uma cova
Cada
tac traz um berço.
Num
tic nasce uma mágoa
Num
tac morre um prazer.
Cada
tic é gota de água
Sobre
uma face a correr.
Por
cada tic agitado
Por
cada tac abatido
Há
sempre mais um pecado
a
nascer e a ser vivido.
Tic
tac é a minha lida
Tic
tac é a minha sorte.
Num
tic mete-se a vida
Num
tac se encontra a morte.
Com
tão cruel tic tac
Com
tão funesta medida
Vou
roubando ao almanaque
Todos
os anos da vida.
Vou
medindo em horas cheias
O
tempo que não tem fim.
Tenho
o coração e as veias
Do
tempo dentro de mim.
E
nesta pressa ruim
De
mágoas e de agonias
Chegam
sempre ao triste fim
Vidas,
minutos e dias.
João Teixeira
de Medeiros
"Monólogodo relógio" - poema do dia dito por Fátima Sousa e comentários de Marta
Costa e Urbano Bettencourt. Carregado a 21/12/2011.
João Teixeira de Medeiros nasceu em Fall River, no dia 16 de Novembro de 1901, mas com
apenas 9 anos idade “emigrou” para a Pedreira do Nordeste, na ilha de São
Miguel, acompanhando os pais.
Depois, aos 29 anos, regressou a Fall
River, onde era conhecido como “o teixeirinha de Nordeste”.
Fazia quadras sobre os mais variados temas
e tem uma poesia popular publicada, depois de ter sido descoberta por Onésimo
Almeida, que o ajudou a publicar dois livros: Do tempo e de mim e Ilha em
Terra.
O poeta já foi alvo de várias
homenagens, quer nos EUA, quer em Nordeste.
Embora residindo nos EUA nunca esqueceu
a sua ilha, até morrer, em 25 de Julho de 1995.
Sobre S. Miguel, deixou estas duas quadras:
Se
fosses ó ilha bela,
Flor
que eu pudesse colher,
Pendurava-te
à lapela,
Pra
todo o mundo te ver!
Saudade
é filha da dor,
Que
a triste ausência me deu.
Pai
da saudade é o amor,
Escravo
dela sou eu.
Diário dos
Açores, Ano 146º, Nº 40.701,2015-06-05
DO TEMPO E DE MIM, João Teixeira de Medeiros
Seleção, organização e prefácio de
Onésimo Teotónio Almeida. Gávea-Brown, Providence, Rhode
Island, 1982.
Chega-nos da LUSAlândia um apaixonante livro de versos de um açoriano (por
direito de cultura), americano (por direito de nascimento e de uma longa vida
de trabalho). Aos 82 anos, esse homem nascido em Fall River, Mass., com parte
da infância, a adolescência e a juventude passada em S. Miguel, na sua Pedreira
do Nordeste, dá-nos um pouco da sua alma, dessa alma portuguesa, para sempre
ligada à terra dos seus pais. Porque Teixeira de Medeiros ficou culturalmente
sempre nos Açores; só emigrou o homo
faber. A aproximação com António Aleixo (e o organizador disso se apercebe)
impõe-se logo no primeiro folhear: a preferência pelo nosso género nacional – a
quadra –; a satirização do mundo da hipocrisia, onde o falso oiro brilha como o
autêntico («Os Neros do séc. XX», «Sátira», «Mentiras»); a evocação dos quadros
bucólicos e aldeãos («Guitarra», «Cravo vermelho», «Fada do moinho»,
«Lavadeira»). E a mulher portuguesa idealizada ou quedada num passado
mitificado, numa idade de Oiro situada no S. Miguel dos princípios do século
(«Mulheres», «A graça do teu olhar», «Feira de Beijos», etc.). E o testemunho
do jovem que vê, pela primeira vez, um automóvel na sua aldeia («Satanás em
quatro rodas») e acaba, muito portuguesmente, com um prognóstico-participação:
«Ouvi meus avós falar / Que antes do mundo acabar, / Deus mandaria sinais… /
Vou para casa, vou-me embora, / Rezar a nossa Senhora / E a outras santinhas
mais»?
Como escolher, como citar tanto verso
que nos toca, a nós portugueses sempre insulares, porque habitantes de um
recanto isolado que foi a nossa infância e cujo caminho para sempre perdemos? Só
podemos dizer: leiam o pequeno livro que em boa hora, com carinho filial,
Onésimo T. Almeida lança a este mundo tantas vezes adverso à poesia, porque
ocupado nas «contas da vida».
Nesta cova onde se vaza
Minha estória até ao fim,
Uma simples pedra rasa
Tanto basta para mim.
O peso já não me assusta,
Já me não inspira medo;
Depois de morto não custa
Uma areia ou um penedo.
Aqui nesta cova jaz
O filho dum português;
O nome ficou atrás,
O corpo foi-se de vez.
Aqui nesta cova jaz
Um velho l(usa)landês
Nesta mesma se desfaz
Quanto foi e quanto fez.
*
O dinheiro é um truão,
Quando se quer divertir,
Arrasta o pobre no chão
E faz o rico subir.
É um demónio, um traidor,
Um rufia, um vendilhão!
Troca ódios, compra amor,
Vende quem lhe der a mão.
*
A beleza só é
beleza Para quem na beleza crê A beleza é só certeza Conforma a vista que a vê
João
Teixeira de Medeiros
Em
memória de João Teixeira de Medeiros
(profeta
da simplicidade poética)
(Nov. 16, 1901 – Julho 25, 1995)
Creio
que o ser humano-poeta é portador de memórias tecidas pelo tempo no tear da sua
existência. Estou a reviver o episódio daquela manhã de Julho de 1995, quando o
Sol fizera questão de se “levanta”’ cedo para não falhar a tarefa de aquecer o
silencioso chão de St. Patrick’s Cemetery, em Fall River. Já se passaram 20
anos: naquela manhã procurei caminhar (sem trocar o passo) na longa fileira
d’Amizade, rumo à “derradeira” morada terrestre do saudoso poeta João Teixeira
de Medeiros – ou seja, ficámos bem pertinho do pedaço de chão que iria ser a
testemunha silenciosa do sua existência física (1901-1995).
Apesar
da provecta idade que tinha quando nos deixou, o seu testemunho poético não
receia sugerir que a morte teimou em interromper a sua juventude
artístico-emocional. Seja-me permitido recordar a quadra que lhe dediquei aquando
da celebração dos seus 90 anos:
Nenhum poeta merece
Ter uma vida
esquecida:
Poeta não envelhece
Jamais se cansa da
vida…
Sabemos
(por experiência própria) que o latejar das ausências nem sempre faz o poeta
esquecer a sua condição de “remendo cerzido no pano da utopia”… Confirmo: ainda
sinto a falta das nossas frequentes conversas ao telefone (amistosos
comentários alusivos ao conteúdo do memorandum). Mais: desde há muito que o
carteiro parou de nos brindar com a entrega dos postais cíclicos escritos na linguagem
poética afinada pela simplicidade. Jamais esquecerei o convívio proporcionado
pelas amigáveis tarefas de chauffeur nas frequentes viagens, de pendor
cultural, rumo aos vários centros culturais da Comunidade Luso-Americana,
sediados na costa leste dos EUA.
Através
da medida exacta das suas quadras, o poeta Teixeira de Medeiros foi capaz de
enfrentar o ‘bom-combate’ das ideias, sem usar rimas de agressividade gratuita.
Embora não familiarizados (academicamente falando) com a densa doutrina do
filósofo canadiano, Marshall Mcluhan, atrevo-me a recordar que, por várias
vezes, fomos surpreendidos a citar frases do citado filósofo, como esta, por
exemplo: “Segredos! Segredos! Insignificantes segredos só precisam de protecção;
grandes Descobertas são protegidas pela incredulidade (e ignorância) pública”.
Alguns
episódios que (para muitos) pareciam ‘sinais do fim do mundo’, para o nosso
poeta, tais sinais eram apenas o princípio dum Novo mundo! O poeta João
Teixeira de Medeiros era apreciador entusiasta das conhecidas frases de sabor
anteriano, como por exemplo: “a humanidade é mais ignorante do que má”. De
certa feita, o nosso Poeta ficou deveras ‘impressionado’ com a virilidade
psico-cultural dos “dizeres” do saudoso filósofo, Agostinho da Silva (falecido
há 21 anos), como esta, por exemplo: “… o grande defeito dos intelectuais
portugueses tem sido sempre o só lidarem com intelectuais. Vão para o povo.
Vejam o povo. Vejam como eles reflectem, como eles gostariam que a vida fosse
para eles…”
…/…
Seja-me permitido repetir que, naquela manhã de 25 de Julho
(1995), cerca de meia centena de familiares e amig@s caminharam em silêncio pelas
alamedas do St. Patrick’s Cemetery. Não houve despedidas: apenas o habitual
‘até mais ver, querido Poeta’! De repente, senti a memória despertada pelo
conteúdo duma das cartas arquivadas no arquivo emocional, que regista o
seguinte: “… terá o meu bom amigo, após a minha morte, uma pequena lembrança do
velhinho que nasceu para ser poeta, mas que não chegou ao topo da escada”…
Está bem visto! Cá temos mais uma quadra do valoroso profeta
da simplicidade poética a tentar esconder o tamanho real da sua estatura
artística atrás da ‘pequenez’ da silhueta física:
Achar um amigo certo
Neste mundo de
alvoroço
É como achar num
deserto
Um diamante num poço…
João-Luís
de Medeiros, Rancho Mirage, CA
Correio dos Açores, Ano 96, n.º 30691,
2015-07-29.
CARREIRO, José. “João Teixeira de Medeiros (poeta popular)”.
Portugal, Folha de Poesia, 05-06-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/joao-teixeira-de-medeiros-poeta-popular.html